Futebol internacional

Cuidado, fujam rápido, Jamie Vardy voltou

Cuidado, fujam rápido, Jamie Vardy voltou
Catherine Ivill - AMA

O eterno avançado regressou, com o Leicester, à primeira divisão e fez questão de marcar ao Tottenham na 1.ª jornada, fazendo logo das suas: virou-se para os adeptos adversários, apontou para o símbolo da Premier League, lembrou que já a conquistou naquela época do conto de fadas e que os londrinos continuam com zero títulos. Aos 37 anos, uma das personagens mais icónicas desta geração do futebol inglês mostrou outro laivo da sua excêntrica personalidade - e marcou o 137.º golo da carreira na prova

Já não parece tão escanzelado como há 12 anos quando ele, um espeto humano, os membros a imitarem fios de esparguete, irrompeu na Premier League e os olhos elitistas se arregalaram com espanto ao verem um magérrimo avançado correr esbaforido atrás de uma bola como se fosse a última bola de futebol que pudesse chutar, diziam então comentadores que era sintoma do seu passado no pântano dos campeonatos não profissionais onde se guerreia mais do que joga, se bate primeiro nas canelas e faz-se perguntas depois e o escárnio no trato é o idioma corrente.

O terraço panorâmico da pirâmide do futebol viu chegar Jamie Vardy e, aos poucos, descascou as camadas da sua história, de repente havia um tipo na mais mediática das provas nacionais da Europa que meros anos antes tivera que jogar com pulseira eletrónica por andar à pancadaria num bar nos meandros temporais em que trabalhava numa fábrica de próteses ortopédicas para amealhar os trocos que o non league football lhe escondia. As corridas relâmpago do delgado avançado também eram impelidas por esses tempos em que os chutos na bola não eram suficientes como ganha-pão e uma certa pressa o urgia, fogo no olhar, com uma pressa muito dele.

No ocaso em que já vive por ir soprar 38 velas em janeiro, essa azáfama teve-o, na segunda-feira, parado dentro da área do Tottenham, escondido por entre corpos e a farejar uma nesga de desatenção, a simplesmente desviar o golo que salvou um empate para o seu Leicester ao primeiro encontro do retorno da equipa à Premier League. Mesmo se através de tamanho contraste de estilos, foi o éter celestial do futebol a recompensar quem tanto teve de correr atrás do que pretendia: o 137.º golo de Jamie Vardy na competição não veio de um galope incessante em direção à baliza, nem de uma perseguição em sprint a uma bola para se esgueirar de alguém.

O inglês estará no tempo em que o futebol lhe sorri bem mais do que foge, como fugia a sete pés de quem chegou tarde ao palco e décor todo montado para jogadores que nasceram já na classe alta. Vardy estreou-se no mais milionário e mediático dos campeonatos apenas aos 27 anos e, na época seguinte, com o Leicester salvo por um triz da despromoção, desatou a fuzilar balizas na estelar campanha do clube até à conquista da Premier League. Na raríssima epopeia de um pequeno a fazer desfeitas aos grandes, o avançado bateu um recorde de Ruud Van Nistelrooy, ao marcar em 11 partidas consecutivas.

Ainda antes de ser campeão, o seu telemóvel disparava com SMS de celebridades e de um realizar a querer basear um guião na sua história para o tentar vender em Hollywood. O homem terreno que tinha pints de cerveja como amigas diárias e a quem, lá atrás, os nervos fizeram faltar ao primeiro treino da sua vida numa equipa sénior e a fria selva da modalidade o levou a pensar em desistir quando o Sheffield Wednesday, seu clube da sua terra, o dispensou - empurrando Vardy para o anónimo Stocksbridge Park, então no oitavo escalão do futebol inglês -, conhecia o sabor da tramada pirâmide do futebol britânico que, apesar das suas agruras, ainda será a mais democrática.

Nesta segunda-feira, no primeiro jogo do Leicester na Premier League de 2024/25, pôde dar soltura à sua saudável loucura em mais um festejo que cimentou no 15.º posto dos melhores marcadores da história da prova o avançado que se reconhece como “provavelmente um idiota” para os adversários, mas um inofensivo idiota. “Sou um pesadelo no campo, não sou? Ouço ‘abuso’ dos adeptos adversários e devolvo-o. Isso sou eu, mas é assim que devia ser, é apenas um pouco de gozo”, descreveu, faz seis anos, ao The Guardian, o goleador que carrega no botão das suas específicas celebrações quando a bola entra e até tem cantos preferidos nos estádios alheios onde prefere ir provocar amigavelmente quem se farta de lhe esticar os dedos do meio da mão.

A excentricidade sempre veio incluída no pacote que é Jamie Vardy, o motivo da maior quantia paga (um milhão de libras) por um futebolista não profissional no Reino Unido. Também hoje ainda é o único a ter posto o pé em todas as fases da Taça de Inglaterra, a mais antiga prova do mundo em que ele chafurdou com as chuteiras nas catacumbas das primeiras eliminatórias e as calçou, mais tarde, na final em Wembley depois de algum técnico de equipamentos as ter limpado impecavelmente. Se há jogador que representa uma ascensão a pulso é ele, que foi a tempo de aparecer num Europeu (2016) e Mundial (2018) antes de achar que 26 internacionalizações e sete golos pela seleção bastavam. Tinha então 32 anos, queria dedicar-se à mulher e aos filhos, que definitivamente lhe acalmaram o espírito.

Mas não por completo: de novo nesta segunda-feira, ao ser substituído e ouvir uns grunhidos dos adeptos do Tottenham, virou-se para essa secção da bancada, apontou para o símbolo da Premier League no braço, levantou o dedo indicador e apontou para ele próprio, depois direcionou o gesto à bancada e fechou a conversa com um zero feito na mesma mão. Eu já fui campeão, vocês não, agora até já. O mais velho jogador a ser melhor marcador do principal campeonato da Europa (fez 23 golos em 2020, aos 33 anos) está de volta, cuidado com ele.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: dpombo@expresso.impresa.pt