Futebol internacional

Thierry Henry também tinha medo e lutava contra os seus demónios

Thierry Henry também tinha medo e lutava contra os seus demónios
Adam Davy - EMPICS

O ex-futebolista e agora selecionador sub-21 de França foi o convidado do podcast de Gary Lineker, Alan Shearer e Micah Richards, no qual confessou que também lidava com os seus receios. “Cresci com o sentimento de não ser bom o suficiente por causa do meu pai. As pessoas diziam que eu não festejava os golos, mas eu estava a pensar no que falhei antes e que era mais fácil. Durante muito tempo, a única coisa que esperava era a aprovação do meu pai. Recebi isso de biliões de pessoas. Só queria a do meu pai.”

As miradas e os holofotes que lambiam Thierry Henry eram fábricas de poesia muda traduzida para todos os idiomas que existiam no mundo e para outros que hão de ser inventados. Ninguém precisava de perceber ou conhecer as virtudes do jogo para ficar impactado com este futebolista. Naquele homem viam uma matéria rara. Gracioso, supersónico e belo. Impetuoso, arrogante e digno. Potente, avassalador e imaginativo. Pés delicados, alma de rude gigante.

Bastava entrar em campo. E ele, sabedor de todos os livros escritos no fluido que respiramos, atirava contra os outros aquele olhar que atormentava qualquer pobre que acabava de receber a ordem para parar o seu exercício de grandeza. Como é que se pára o vento?

Mas nem sempre Thierry Henry sentia o que o seu corpo transparecia. Houve vezes, antes dos jogos, que sentia medo, que não estava bem. Afinal, o implacável e supostamente imperturbável futebolista também tinha fissuras nos tecidos internos. Incertezas e questionamentos assombraram-lhe a calma antes de subir ao relvado. Mas ele não podia entrar no balneário do Arsenal e admitir tal coisa a homens como Martin Keown, Tony Adams e Dennis Bergkamp. Não era possível. Então, mudamente, continuou a ser quem era no jogo sem reconhecer que não estava num bom lugar.

Foi isso mesmo que o agora selecionador sub-21 de França admitiu no podcast “The Rest is Football” onde Gary Lineker é anfitrião de Alan Shearer e Micah Richards.

Micah Richards, um ex-futebolista do Manchester City, e Henry numa emissão para a CBS
James Gill - Danehouse

O francês, de 46 anos, reconheceu, por outras palavras, que tinha de vestir a farda de super-homem - e como lhe ficava larga. Ou seja, não poucas vezes, o hesitante Thierry teve de ser Henry. “Quando passamos a linha, passamos a linha. Temos de atuar ao nível esperado. Tens de ir para matar. Mas por outro lado percebia que, às vezes, estava a borrar-me nas cuecas antes do jogo”, disse, assim mesmo. Alan Shearer, outro goleador histórico da Premier League, soltou um incrédulo “a sério!?”.

Henry prosseguiu: “Eu não estava bem, estava assustado. Essas emoções são normais num ser humano. Agora é fácil dizer, não estou a jogar, estou em sintonia comigo. Continuo a tentar ser melhor, tenho os meus demónios. Se antes dos jogos não tens medo, estás a fazer algo errado. Tens esse nível de medo…” Como se fosse uma sombra que desperta a responsabilidade.

A eloquência verbal do antigo atleta é tão admirável quanto o seu futebol de besta com patas de veludo. A razão para aquele buraco no departamento da serenidade teve a ver com a infância. Quando nasceu, contaram-lhe, o pai pegou nele no hospital e disse que ia ser um grande futebolista. Era como um projeto pessoal. A educação foi salpicada com “tough love”. Foi duro, agora entende-o melhor que ninguém, embora ilibe o pai de responsabilidades ou culpas. Afinal, fazia o que sabia com as ferramentas que tinha.

“Foi difícil”, continuou perante os silenciosos Lineker, Shearer e Richards. “Era sempre sobre o que não tinha feito, não sobre o que fiz. Por isso as pessoas diziam que eu não festejava os golos, mas eu estava a pensar no que falhei antes e que era mais fácil. Na celebração, estava a pensar ‘f***-se, marcaste este e falhaste um de encostar’. Estava sempre nisso. Como era sempre o Thierry do que não fiz, o que fazia era normal. As pessoas achavam-me convencido, sei lá, mas eu tinha de fazer o que tinha de fazer. Não havia nada de excecional.”

O silêncio dominava a sala. Thierry Henry estava a escancarar as portas da sua tenra verdade. Foi de seguida, quando lhe perguntaram se as pessoas confundiam aquele modo de operar com arrogância, que admitiu a tal história dos olhos. “Joguei contra ti, Alan, e estavas a dizer [com o olhar] ‘isto é o meu maldito campo, isto é a minha casa, vou fazer com que saibas isso antes de começarmos’. Marcavas antes de marcar. Fazes o outro perceber, com os olhos, que ‘eu sou melhor que tu’. O que não podia explicar, porque não tinha ferramentas, tempo e não percebia, era que a minha reação a raiva e fúria era mais rápida do que ao ‘és bom’. Não podia evitar.”

Jerome Prevost

Alan Shearer fez então a pergunta que foi como uma seta no coração de Henry: “Porque tinhas medo? Tinhas medo de falhar porque tinhas umas qualidade incríveis?” A certa altura, o francês, depois de admitir que era uma bela pergunta, pediu desculpa porque ia ser profundo.

“Cresci com o sentimento de não ser bom o suficiente por causa do meu pai”, confessou. “Durante muito tempo, a única coisa que eu esperava era a aprovação do meu pai. Recebi isso de biliões de pessoas. Só queria a do meu pai.” Convém não esquecer que falamos de alguém que fez 175 golos em 258 jogos pelo Arsenal, metendo a mão em quatro Botas de Ouro. Convém dizer o óbvio e lembrar que este senhor, além da beleza no seu jogo técnico e veloz, juntou campeonatos em três ligas a uma Champions com Pep Guardiola no Barça e, ainda, às custas de Portugal a certa altura, um Mundial e um Campeonato da Europa. Fez e ganhou quase tudo o que havia para ganhar.

“Ainda que ele mo tenha dito depois, era o pequeno eu que queria ter ouvido. Estou a perseguir algo que nunca vou alcançar, percebem? Digo sempre: o que temes vai dominar-te. O pequeno eu estava à espera do autocarro, mas esse autocarro não ia chegar. Ouvi-o de toda a gente. Toda a gente. Como era bom, arrogante, ou que não era arrogante, sei lá, ‘i love you’, mas não era da voz que queria ouvir. Foi por isso que tinha medo. Quando estás preso entre o que sabes e o que sentes… Vou ser honesto, Alan, isso deixou-me louco à noite. Muitas vezes, o futebol salvou-me para fugir dessas coisas na minha cabeça.”

A seguir a este brutal desabafo, Gary Lineker, uma lenda de Inglaterra com passagens por Leicester, Everton, Tottenham e Barcelona, admitiu que viveu algo semelhante com o pai. Eram outros tempos, com proximidades diferentes. Só nas últimas conversas com o pai, já na cama do hospital, é que Gary Lineker lhe perguntou se lá atrás na história ele sabia que o filho se ia dar bem no futebol. “Nunca tive dúvidas”, ouviu. E as lágrimas caíram-lhe drasticamente pelo rosto abaixo. A enfermeira perguntou-lhe se estava tudo bem.

“Eu disse que sim, que estava muito feliz”, declarou Lineker.

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