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Hoje como em 1996: Graeme Souness, uma bandeira gigante do Galatasaray e o reviver de uma provocação ao Fenerbahçe

Hoje como em 1996: Graeme Souness, uma bandeira gigante do Galatasaray e o reviver de uma provocação ao Fenerbahçe
Anadolu Agency

Quando chegou a Istambul, após vários anos nos bancos de Rangers e Liverpool, Graeme Souness foi insultado de forma “deselegante” por um dirigente do Fenerbahçe. Alguns meses depois triunfou na final da Taça da Turquia no campo do grande rival e cometeu uma afronta que poderia ter resultado numa guerra campal. Pouco mais de 27 anos volvidos, a memória daquela manobra está intacta, por isso o escocês foi convidado pela direção do Galatasaray para a festa do 23.º título nacional, após vitória por 3-0 contra a equipa de Jorge Jesus. Esta é a história de 1996

Um golo de Aykut Kocaman levou a final da Taça entre Galatasaray e Fenerbahçe para prolongamento. Estamos em abril de 1996. Depois de ter feito o único golo na primeira mão, no Ali Sami Yen, Dean Saunders meteu uma bala na baliza de Rüştü Reçber, no campo do maior rival do país. Esse tipo de desfecho costuma imortalizar e apontar os holofotes para os que desenrolam nós com as botas em jogos importantes. Saunders, o avançado que Souness levou para Liverpool, Galatasaray e Benfica, foi ofuscado pelo treinador escocês. Num desvario inflamável e depois de afagar o céu com aquele tecido esvoaçante, Souness pegou numa bandeira gigante do Galatasaray e enfiou-a no coração do relvado do Şükrü Saracoğlu.

Foi “um momento de loucura”, admitiria muito tempo depois à BBC. Vinte e sete anos depois desse gesto inolvidável para os adeptos do Gala, Souness foi convidado para a festa do título do gigante de Istambul, depois de um 3-0 na derradeira jornada da liga turca contra o Fenerbahçe de Jorge Jesus, para agitar uma bandeira enorme com as cores vermelha e amarela. A provocação foi, a muita distância de 1996, quase graciosa e inofensiva. Souness, impecável aos 70 anos e com um blazer cor de vinho, era todo sorrisos e graciosidade a abanar aquele pedaço de história memorável.

Por cá, o grandíssimo futebolista Graeme Souness ficou intimamente ligado ao herege afastamento de João Vieira Pinto do Benfica e à chegada de um lote quiçá questionável de futebolistas britânicos, mas na Turquia jamais será esquecido pelo que fez naquela noite de abril. É preciso recuar até ao verão de 1995, quando foi contratado, depois de vários anos no banco de Rangers e Liverpool, para se perceber a ira que lhe invadiu a alma após o triunfo contra o Fener na final da taça.

“Um dos vice-presidentes do Fenerbahçe disse: ‘O que é que o Galatasaray está a fazer ao contratar um aleijado?’”, contou na tal entrevista à BBC. O treinador escocês fora operado ao coração um par de anos antes, então considerou aquela declaração “deselegante”. Foi por isso que, após os golos de Saunders e lhe terem passado para a mão aquele símbolo enorme, Souness olhou para a bancada que se ia esvaziando à procura de uma certa pessoa.

Alguns movimentos depois e sem ninguém para passar a bandeira, porque os jogadores já se posicionavam para receberem o troféu, uma faísca trincou-lhe a gaveta do cérebro que ajuíza o que é e não é aconselhado. Desatou então a correr para o meio-campo com a grande bandeira. Viu o tal dirigente que o insultou. “Num momento de loucura, pensei, ‘vou mostrar-te quem é o aleijado’, então fui para o centro do campo e tentei meter [a bandeira] no círculo central”, lembrou.

Com o piso duro, duríssimo, a estaca só entrou à terceira espetadela.

Quando levantou a cabeça apercebeu-se de que não tinha sido “a coisa mais inteligente” que havia feito na vida. “Muitos adeptos do Fenerbahçe tentavam saltar a vedação e invadir o relvado”, revelou o cidadão de Edimburgo, 20 anos depois, à BBC. O treinador escondeu-se então debaixo dos escudos protetores da polícia, como se estivesse no filme “300”. Quando chegou ao túnel julgou estar a salvo, mas ainda receberia uma pancada na cabeça. Um adepto conseguiu furar a segurança e chegar ao corredor que permite a ligação entre os balneários e o jardim que importa. Depois de discutir com o aficionado do maior rival que se sentiu insultado por ver enfiada no miolo do relvado a bandeira do grande adversário do futebol da Turquia, Souness abrigou-se no balneário.

Apesar de ter a carapaça a salvo, o treinador julgava que, assim que os dirigentes do Galatasaray chegassem, seria despedido imediatamente. “Foi exatamente o oposto”, contou. “Alguns deles estavam em lágrimas nos olhos e eu nunca fui tão beijado e abraçado por tantos homens em tão curto espaço de tempo. Eles estavam absolutamente maravilhados, claro, por termos ganhado a Taça, mas pareciam ainda mais maravilhados por eu ter plantado a bandeira no estádio do Fenerbahçe.”

Afinal, para este agora comentador e histórico futebolista, turcos e escoceses não são assim tão diferentes. "Ligeiramente loucos, emocionais e capazes de fazer coisas loucas”, resumiu.

Aquela afronta semeou o amor das gentes do Galatasaray por ele. Fez o oposto do outro lado. Foi por isso mesmo que, no início da época 1997/98, Okan Guler, ou Rambo Okan, magicou um plano vingativo. Antes de um dérbi entre os gigantes turcos, no campo do Gala, Rambo meteu-se nas entranhas do estádio, escondendo-se dentro de um painel de publicidade. Algumas horas depois, momentos antes do primeiro apito do jogo entre Fenerbahçe e Galatasaray, Okan, com um bigode épico, saltou para o relvado, fardado de amarelo e azul e espetou uma bandeira do seu clube no centro do relvado. Erguendo uma faca, não queria ninguém por perto. Agitou a faca, talvez para os futebolistas do Galatasaray ou para os seus adeptos, como quem diz “não voltem a brincar com coisas sérias”. A polícia aproximou-se, um deles não permitiu que outros fossem violentos com o adepto mítico, e a história acabou ali. Enfim, o dia em que Souness inspirou Rambo. O futebol é capaz de tudo.

Tantos anos depois daquele gesto que poderia ter resultado numa tragédia, os dirigentes do Galatasaray decidiram barrar com mel o orgulho e a lembrança dos seus adeptos, recuperando, na festa do 23.º título nacional e num ambiente mais favorável, o arrojado herói escocês que cometeu uma loucura por eles.

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