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Beckham: os 48 anos do futebolista que deu ao jogo um pé direito, holofotes e purpurinas

Para lá daquele pé direito que colocava a bola onde bem queria, dos livres perfeitos, dos cruzamentos teleguiados, David Beckham deu ao futebol aquilo que até aos anos 90 ele não tinha: holofotes e purpurinas. O inglês pode não estar no restrito grupo de melhores da história, mas a sua face também mudou o jogo: com ele, o futebol tornou-se mais global. Este artigo foi publicado originalmente a 2 de maio de 2020, quando Beckham completou 45 anos

Lídia Paralta Gomes

Karwai Tang/Getty

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No início, ele era um miúdo como outro qualquer. O pai, nos intervalos que o trabalho a arranjar cozinhas lhe permitia, enrolava meias, como tantos outros pais, e dava ao filho para ele tentar os primeiros remates. Aos quatro anos, David Robert Beckham já passava horas a chutar bolas improvisadas, naquela casa londrina em que todos eram adeptos não do Arsenal, do Tottenham ou do Chelsea, mas sim do Manchester United. Mais tarde, Ted, o pai, metia-o em frente à televisão durante os jogos dos red devils e dava-lhe um conselho e apenas um: segue o Bryan Robson. Porque Robson trabalhava no duro, não tinha medo de ir ao choque, de tentar o desarme.

Robson era um bom exemplo.

David Beckham, que este sábado completa 45 anos, não entrará na história como o melhor desarmador que o futebol já viu. Talvez não seja até uma escolha óbvia no grupo restrito de melhores de sempre. A doutrina diverge - e já lá iremos.

Mas David Beckham entrará certamente na história do futebol. E do desporto. Porque antes da massificação das redes sociais, antes de Cristiano Ronaldo ou Lionel Messi, antes de Lewis Hamilton desenhar roupas para a Tommy Hilfiger enquanto aviava uns quantos Mundiais de Fórmula 1, antes de tudo isso houve David Beckham, que para lá daquela parte interior do pé direito, que marcou alguns dos mais espectaculares livres diretos do futebol e colocou redondinha a bola em tantos avançados, para lá daquele jeito de colocar o corpo para trás na medida certa a cada remate, foi, certamente, a primeira celebridade global do futebol.

Não nos enganemos: o futebol já era um desporto de massas muito antes de David Beckham nascer, em Leytonstone, nos arrabaldes de Londres, a 2 de maio de 1975. Mas sem ele talvez o futebol não tivesse chamado a atenção daqueles que, além do jogo jogado (ou se calhar nem gostando tanto assim dele), apreciavam um boa mão-cheia de purpurinas. E tudo isto sem deixar de ser figura importante para aquilo que deixa o rastro mais puro no futebol: títulos. Em Inglaterra, Espanha, Estados Unidos e França.

Mas voltemos àquela casa londrina cheia de adeptos do Manchester United. Na meninice, Beckham ainda começou por jogar em equipas de Londres, inclusive no Tottenham, mas aos 14 anos, e no preciso dia em que fez 14 anos, deu uma alegria à família ao assinar com o Manchester United, viajando para norte onde foi encontrar a mítica "Class of 92": Ryan Giggs, Gary Neville, Phil Neville, Nicky Butt, Paul Scholes. E ele próprio. Em 1992, eles eram o núcleo da equipa do Manchester United campeã da FA Youth Cup. E foi em 1992 que um David Beckham de 17 anos se estreou com os grandes, num encontro da Taça da Liga, antes até de assinar contrato como profissional com o Manchester United, algo que só aconteceu meses depois, em janeiro de 1993.

Beckham em 1996, ano de afirmação United

Beckham em 1996, ano de afirmação United

Mark Leech/Offside/Getty

O primeiro jogo na Premier League só aconteceria a 2 de abril de 1995. Pelo meio, passou uns meses emprestado ao Preston North End, já depois até de se ter estreado na Liga dos Campeões, em 1994. Uma estreia com golo, apesar da fraca figura do Manchester United naquela edição da Champions - ficou-se pela fase de grupos.

A época 1995/96 marca o regresso definitivo de Beckham a Old Trafford, com vitória no campeonato e taça. No ano seguinte, chegou a afirmação e logo com um cartão de visitas daqueles: na 1.ª jornada do campeonato, e ainda com o 10 nas costas (porque naquela equipa havia Cantona), Beckham vê o adiantamento do guarda-redes do Wimbledon e da linha de meio-campo remata, fazendo a bola planar como perfeito avião de papel até ao fundo da baliza adversária. Aquele golo, que fez dezenas de milhares de respirações parar por alguns segundos antes da explosão da alegria do festejo, mudar-lhe-ia a vida. Porque, a partir dali, Beckham tornou-se na face do futuro do Manchester United. No final do ano seria considerado o melhor jogador jovem da Premier League.

No ano seguinte torna-se finalmente no 7, a pesada camisola que estava com Cantona, antes com George Best e Bryan Robson e que viria a estar, anos depois, com Ronaldo. E em 1998/99 chega a temporada perfeita do United, com vitória no campeonato, taça e Champions, naquela final dos diabos em que Beckham marcou os dois cantos que deram origem aos dois golos nos descontos que deitaram abaixo o Bayern Munique no Camp Nou.

Mas, aí, já a estrela de Beckham ultrapassava em muito o futebol. Desde 1997 que the next big thing do futebol inglês namorava com Victoria Adams, uma das cinco Spice Girls, então a girlsband mais famosa do planeta. E, de repente, Beckham estava em todo o lado, em passagens de modelos, em espectáculos, nas capas de revistas, envergando arrojadas peças de moda - nos anos 90, o futebol ainda não estava propriamente habituado a tal.

OS PROBLEMAS COM FERGIE

E tão pouco habituado estava que é depois de se casar com a Posh Spice, em 1999, já o casal era pai do primeiro filho, que começam os problemas entre Alex Ferguson, homem à antiga, e David Beckham. "Ele nunca foi um problema até se casar. Costumava trabalhar com os treinadores da academia à noite, era um rapaz fantástico. Casar e entrar no mundo do entretenimento foi complicado - a sua vida nunca mais seria a mesma a partir daquele momento. Ele é uma celebridade, o futebol é apenas uma parte", diria Ferguson sobre o antigo jogador em 2007, já Beckham estava longe de Manchester.

Ferguson e Beckham, uma relação de altos e baixos

Ferguson e Beckham, uma relação de altos e baixos

Neal Simpson - EMPICS/Getty

Depois daquele 1999 de sonho, em que Beckham só perdeu para Rivaldo na eleição para melhor jogador do ano da FIFA, a relação entre jogador e treinador mudou. Mesmo que dentro de campo o Manchester United continuasse a dominar a Premier League, Ferguson não apreciava quão exposto estava Beckham, que naquele início de século era o mais mediático jogador de futebol do planeta, um influencer quando a palavra ainda nem sequer fazia parte do nosso léxico. As marcas adoravam-no, as câmaras também, porque aquela cara vendia tudo. Fotógrafos juntavam-se à porta do centro de treinos do United quando surgiam rumores de um novo corte de cabelo ou mudança de visual. A negociação de um novo contrato com o Manchester United em 2002 arrastou-se e o problema chamava-se "direitos de imagem". Quando as canetas assinaram o novo acordo, Beckham tornou-se, entre salários, publicidade e imagem, no jogador mais bem pago do mundo.

O ponto de rutura definitiva de Ferguson e Beckham chegou em 2003, após o famoso incidente da chuteira. Depois da eliminação na Taça de Inglaterra, o treinador escocês entrou esbaforido no balneário, irritado com o desempenho dos seus jogadores, principalmente com Beckham. No meio do ataque de ira, Ferguson pontapeou uma bota, que foi parar ao sobrolho esquerdo do então capitão da seleção inglesa, que teve mesmo de ser travado pelos colegas para não reagir. Dias depois, e apesar de tudo ter acontecido na caixa-forte que deve ser um balneário, a história estava nos jornais, tal como as fotos do jogador com o sobrolho suturado.

"Foi nesse dia que eu disse à direção que o David tinha de ir embora", explicou Alex Ferguson na sua autobiografia, lançada em 2013, onde justifica a sua irritação com o jogador, que acusa de se ter aproveitado do incidente: "O principal problema era que o nível de aplicação do Beckham tinha baixado muito do seu tradicional nível de trabalho, que era estratosférico".

Na época seguinte, Beckham estava no Real Madrid.

DE MADRID A LOS ANGELES

No Real Madrid, o britânico chegava à realeza do futebol mundial. Na era dos Galáticos, juntou-se a Figo, Zidane e Ronaldo. Cinco centenas de jornalistas de 25 países assistiram à apresentação. Na pré-temporada, os merengues, treinados por Carlos Queiroz, voaram para a China e, de acordo com os relatos do "The Independent" em agosto de 2003, cerca de mil milhões de chineses viram pela televisão a estreia de Beckham com a nova camisola, num particular frente a uma seleção de jogadores locais, em Pequim. Só por esse jogo, o Real Madrid ganhou 4 milhões de dólares, dinheiro que seguramente pagou as medidas de segurança extra necessárias para proteger o jogador dos milhares de fás que se aglomeravam em êxtase por qualquer hotel por onde a equipa passasse. E mesmo que naquela equipa estivessem os três últimos vencedores do prémio de melhor jogador do Mundo para a FIFA (Figo, Ronaldo e Zidane), os gritos eram quase todos por Beckham.

No dia da apresentação no Real Madrid

No dia da apresentação no Real Madrid

Matthew Ashton - EMPICS/Getty

Se os quatro anos em Madrid não foram exatamente pródigos em títulos - Beckham apenas foi campeão em 2007, no seu último ano no Santiago Bernabéu - a contratação do inglês tornou o Real Madrid, que já não era exatamente um clube remediado, num colosso financeiro. Em 2007, com Beckham de saída, a "Forbes" fez as contas: com o inglês na equipa, o Real Madrid vendeu 400 milhões de euros em merchandising, um aumento de 137% face aos anos anteriores. Só nos primeiros seis meses de Beckham na capital espanhola, o clube vendeu 1 milhão de camisolas.

Mas o tempo dos Galáticos no Real Madrid teve o seu fim: em 2005 saiu Figo, no ano seguinte Zidane acabou a carreira. Em 2007 seria a vez de Ronaldo e Beckham, depois de uma época de altos e baixos na relação com Fabio Capello, que chegou mesmo a apartá-lo da equipa depois do inglês anunciar em janeiro que não iria renovar com os merengues e que, aos 32 anos, iria abraçar a aventura americana, nos Los Angeles Galaxy. Contudo, o empenho que continua a mostrar nos treinos levou o italiano a reconsiderar e Beckham tornar-se-ia mesmo peça essencial para o título na fase final da época. De acordo com o livro "The Beckham Experiment", do jornalista norte-americano Grant Wahl, o Real Madrid ainda tentou num movimento desesperado convencer o LA Galaxy a revender o inglês, mas a equipa da MLS foi intransigente.

Até porque Beckham não era um joker apenas para a equipa californiana: era a cara que poderia mudar todo o soccer, num país habituado ao football jogado com as mãos.

O JOGADOR-CELEBRIDADE

O anúncio da chegada de Beckham à MLS teve efeitos praticamente imediatos para os LA Galaxy, que encaixaram 20 milhões de dólares por cinco anos com um novo contrato publicitário para as camisolas e vendeu mais 11 mil bilhetes de época. Os camarotes do estádio voaram e em breve receberiam visitas de estrelas de Hollywood como Tom Cruise ou Will Smith.

A entrada de um jogador de tão alto perfil na liga obrigou ainda a MLS a mudar as regras, com a introdução da Designated Player Rule, que permitia exceções em cada equipa ao teto salarial instituído e que é uma das pedras basilares do desporto norte-americano. Em menos de nada, a regra receberia o carinhoso apodo de Beckham Rule. A apresentação, na primavera de 2007, teve 700 jornalistas acreditados e as semanas que antecederam a estreia do britânico com a camisola dos Galaxy desenvolveram-se à boa maneira de Hollywood: com documentários na televisão, festas de boas vindas à família com a fina flor angelina e até Victoria teve direito ao seu reality show, "Victoria Beckham: Coming to America" (não confundir com o filme de John Landis com Eddie Murphy).

Aos 32 anos, Beckham mudou-se para os EUA. Foi duas vezes campeão da MLS com os Galaxy

Aos 32 anos, Beckham mudou-se para os EUA. Foi duas vezes campeão da MLS com os Galaxy

Victor Decolongon/Getty

Apesar de ter chegado aos Estados Unidos senão no auge, pelo menos não muito longe dele, ao contrário de outras estrelas europeias, em campo o efeito Beckham demorou um pouco mais a sentir-se: só conseguiu levar os LA Galaxy ao título da MLS em 2011 e 2012, no final de uma caminhada que, pelo meio, ainda o viu regressar duas vezes à Europa para empréstimos ao AC Milan, onde mostrou que os EUA tinham sido, de facto, uma opção e não uma escapatória.

Dizer que o soccer explodiu nos Estados Unidos com a chegada de Beckham talvez possa ser exagero, mas é com o inglês que a MLS ultrapassa a NBA na lista de desportos com mais espectadores ao vivo. E o número de equipas da MLS também aumentou exponencialmente: quando Beckham chegou, o campeonato disputava-se entre 13 equipas; hoje, em 2020, são 26. A última expansão, já este ano, incluiu o Inter Miami CF, equipa da qual David Beckham é um dos acionistas. Beckham abriu ainda as portas à chegada à MLS de jogadores como Thierry Henry, David Villa, Andrea Pirlo ou Zlatan Ibrahimovic.

Após deixar os Galaxy em 2012 como campeão, Beckham jogou ainda cinco meses num Paris Saint-Germain que se começava a agigantar. Todos os salários foram entregues a projetos de solidariedade locais e, no final da época, sagrou-se também campeão francês, título nacional que juntou aos conseguidos em Inglaterra, Espanha e EUA, tornando-se no primeiro jogador inglês a ser campeão em quatro campeonatos distintos.

O LEGADO

Hoje, aos 45 anos, Beckham é muito daquilo que já era enquanto jogador de futebol: um homem de família, pai de quatro filhos com Victoria Beckham, cara de inúmeras campanhas publicitárias, empresário, filantropo, embaixador da UNICEF, celebridade. Mesmo tendo já deixado os relvados há sete anos, continua a ser dono de uma popularidade planetária: só no Instagram, rede social nascida um par de anos antes de Beckham se reformar, tem 62,6 milhões de seguidores. De acordo com a "Forbes", mantém ainda acordos publicitários na ordem dos 40 milhões de euros anuais.

O legado esse, será muito mais do que uma capa de revista ou uma sessão fotográfica para uma qualquer marca de roupa, mas nem todos os seus pares colocam David Beckham no Olímpo do futebol. Alex Ferguson, na sua autobiografia, diz acreditar que a vertigem da fama terá desviado o jogador desse grupo dos melhores entre os melhores. Já George Best foi um pouco mais cáustico, dono da mais lapidar frase sobre Beckham: "Não sabe rematar com o pé esquerdo, não sabe cabecear, não sabe fazer um desarme e não marca assim muitos golos. Tirando isso, não está mal".

Beckham é um dos proprietários do Inter Miami, que entrou este ano para a MLS

Beckham é um dos proprietários do Inter Miami, que entrou este ano para a MLS

Eric Espada/Getty

Talvez a frase de Best seja demasiado dura para alguém que ajudou o United a vencer seis títulos nacionais e uma Champions, para alguém que tem 115 internacionalizações pela Inglaterra (mais que ele só o guarda-redes Peter Shilton), que foi duas vezes segundo classificado na votação para melhor do ano da FIFA. E, para lá das quatro linhas, a sua influência levou o futebol onde ele nunca tinha chegado.

"Acho que agora é mais aceitável fazer as coisas que eu fazia, capas de revista, sessões fotográficas, patrocinadores. Mas mesmo naquela altura o meu foco era o de ganhar troféus, ser bem-sucedido no Manchester United e nunca deixar o United. Tudo o que estava para lá do futebol era bónus", revelou Beckham numa entrevista à "GQ" em 2019. Afinal de contas, antes de cara bonita, Beckham sempre foi um jogador de futebol, a quem colegas e treinadores gabam quase unanimemente o profissionalismo e capacidade de sacrifício.

"O meu ganha-pão sempre foi aquilo que eu fiz dentro de campo e a razão pela qual eu era conhecido fora dele era pelo o que eu fazia no futebol. Mas naquela altura não era muito normal fazer sessões fotográficas, não era algo para um desportista. Mas eu sabia que se nada afectasse o meu desempenho, podia continuar", disse ainda à mesma publicação.

E muitos hoje terão de lhe agradecer por isso.