Poderia ser o caneco dos caçadores da redenção perdida, lugares há onde a Taça da Liga é de somenos, encarado como um pedaço de prata, estanho ou seja lá o que for, não em Inglaterra, lá é desculpa meritória para se peregrinar até ao santuário de Wembley em honra do primeiro troféu da época discutido no inverno. É condizente, de facto, esta final ser partilhada por duas equipas em posse das suas versões mais invernosas das últimas décadas, reencontradas agora que buscam ares mais veraneantes como aqueles dos anos 90, das camisolas largueironas e dos futebolistas icónicos.
Era o Manchester United em ascensão rumo ao seu apogeu com Alex Ferguson, já a colecionar títulos com os jovens adultos Beckham, Giggs e Scholes sob a alçadas das golas para cima do efervescente Eric Cantona, e era o Newcastle cogitador de esperanças no trabalhador norte de Inglaterra, treinado por Kevin Keegan e espetacular nas tropelias de David Ginola a fornecerem golos a Faustino Asprilla. A equipa do berçário da Revolução Industrial foi tudo ganhando até 2013, ano da fatídica reforma do seu técnico mais que tudo, após a qual só quatro títulos se ganharam - o último em 2016 - quando os listados a preto e branco já viviam em plena decadência.
A chegada de ambos a Wembley transmutava o estádio num palco de desejos e redenções, de saudade e sarar de feridas. Só a história de Loris Karius o justificaria. Barbado e com o seu loiro cavalo apanhado a florear a mesma cara de desamparo que adquiriu quando enterrou o Liverpool consigo na final da Champions, o alemão desenterrou asas para negar um espantoso remate de Weighorst quase no intervalo. A palmada voadora do desgraçado guarda-redes acentuou o lado libertador desta final: sem um minuto sequer de competição há dois anos e praticamente uma quarta opção com luvas no Newcastle, reaparecia em estilo, a intuir que uma péssima noite não define a carreira de um homem.
Nem uma defesa estilosa perfaz um guarda-redes. Antes do seu voo, o alemão nada pôde contra um fulminante cabeceamento de Casemiro, nem membros suficientes teve para reagir ao desvio à queima-roupa que fez de um frouxo remate rasteiro de Marcus Rashford um cambalacho que lhe sobrevoou o corpo. O menos atacante Manchester United alegrava-se com uma vantagem marcada por homens que, por fim, parecem epitomizar a conversão de uma instituição à benfeitoria necessária para se gerir um clube de futebol apostado em ganhar coisas. O brasileiro recheado com Ligas dos Campeões foi a contratação-fetiche da época, a que mostra ambição endinheirada mas necessária pela valia desportiva; o inglês das ótimas causas fora do relvado por mostrar, de novo, como está a render como nunca.


Ambos ligam à cabeça pensadora que está a elevar o United e que tão vilipendiada pela cegueira de legiões de fãs quando teve a coragem de decidir sem olhar a nomes. O calvo Erik ten Hag abdicou de Ronaldo e abraçou a necessária polémica é quem pediu o brasileiro, recuperou inglês, reciclou Harry Maguire para o banco (capitão, mas longe de ser um dos dois melhores centrais da equipa) e, aos poucos, pôs uma equipa a jogar o seu futebol, tornou-a competitiva, deu-lhe alguma fibra entusiasmante. Sobretudo, calcetou-a com sinais que fazem crer em algo quiçá especial a ser forjado.
Se fosse mero acaso, não teriam os capitaneados por Bruno Fernandes resistido e dado a volta ao Barcelona a meio da semana, sobrevivente na Liga Europa, nem estariam em 3.º da Premier League ou aguentariam a contínua investida deste Newcastle com outros meios, por enquanto mais humildes no relvado se bem que elevados à estratosfera dos milhões há 18 meses, quando um consórcio munido do Fundo Público de Investimento da Arábia Saudita comprou o clube. Foram os assalariados desse braço do regime de “um ditador que literalmente se passeia a chacinar jornalistas”, assim descrito pelo ‘Democracy for the Arab World Now’, associação criada por amigos e familiares de Jamal Khashoggi, a carregarem sobre o United.
O esguio Joe Willock, o fintador musculado Alain Saint-Maximin e o ex-avançado agora médio Joelinton deram as suas marradas na bola com mira na baliza ao longo da segunda parte. Por corpos no caminho, má pontaria ou pelas mãos de David de Gea nenhum deu em golo, mas insistiram, não conseguiram e voltaram a tentar, com Bruno Guimarães, Alexander Isak e Kieran Trippier envolvidos também nesse barulho. Entre eles estão dois recordes de transferência do clube recentemente batidos. Mas não há, nos citados, nomes de sonância futebolística de elite a que os clubes recém-milionários recorrem como primeiro sintoma da urgência em quererem comprar grandeza e isso - os pés e a cabeça antes da pressa em esbanjar - será de saudar.
O treinador ser Eddie Howe, inglês com algum nome na praça feito no pequeno Bournemouth, ao invés de um qualquer congénere de passado titulado e presente assim-assim, atesta à, até ver, paciência nas mãos dos trilionários sauditas cujas caras são as da inglesa Amanda Staveley e do iraniano marido Mehrdad Ghodoussi, chefes do consórcio que consolaram os jogadores do Newcastle na tribuna de Wembley, ao receberem as medalhas reservadas aos vencidos. Por mais que tenha insistido, não venceu o Newcastle que obrigou o Manchester United a recuar para aguentar, às tantas o seu jogo virou redundante e, no final, até um contra-ataque nos pés de Bruno Fernandes lhes poderia ter engordado o peso da derrota.



É o primeiro troféu em mais de seis anos, desde as três taças colecionadas pelo quezilento José Mourinho, que sucedeu ao embirrento Louis Van Gaal e precedeu o amado, mas tecnicamente insuficiente Ole Gunnar Solskjær, a quem se seguiria o desacreditado Ralf Rangnick. Foi um neerlandês metódico, de pulso firme, sem medo de decidir contraventos e preocupado somente com futebol a devolver o United aos títulos sob o controlo dos Glazer, a família norte-americano cheia de anti-corpos nos adeptos que pretende vender o clube, um dos que mais receitas tem no planeta. Diz-se que os eventuais compradores poderão vir do Catar, de onde estamos anciões de ouvir dúvidas acerca de democracia e direitos humanos ou das mulheres.
Deveriam os adeptos, os hoje festivos do Manchester United ou os tristonhos do Newcastle, estar preocupados com injeções financeiras de agulhas carregadas no Médio Oriente? Será a eles, que em nada são consultados nestes negócios, que deveria ser imputada a responsabilidade de serem guardiões da sua alma? Muitos estarão, como estiveram no Mundial, outros tantos nem por isso, como os que se viram vestidos com trajes árabes à porta do St. James Park, a celebrarem quando o clube foi comprado pelos sauditas. Quando Bruno Fernandes e Harry Maguire partilharam o levantamento da Taça da Liga inglesa, haveria algum neurónio deles a ocupar-se da origem do dinheiro que lhes sustenta o salário? Deveria sequer a haver?
As respostas não são fechadas, nunca o poderiam ser quando a Premier League deu o aval ao negócio que fez o Newcastle mudar de donos, ou a UEFA e a FIFA assistem, recostadas, à realocação dos investidores de clubes para outras partes do mundo. Em Wembley, uma das catedrais do futebol, o Manchester United venceu e pôs-se no caminho da primeira oportunidade dos milhões da Arábia Saudita terem canecos no país-fundador da modalidade mais popular que existe. Por enquanto, já que é esse o jogo a que cada vez mais se parece jogar dentro do futebol.