Os futebolistas sabem quase tudo sobre as pequenas coisas do jogo. Muitas vezes detetam detalhes que escapam aos adeptos e, ocasionalmente, aos árbitros. O capricho de uma bola. A rotação dessa ferramenta que permite adivinhar o futuro. As rotas nas viagens aéreas. O significado de algumas mudanças de rumo. O barulho da caneleira, o som de algo a estalar na bota. Os movimentos. As tentações. A malandrice.
Os futebolistas sabem quase tudo sobre pequenas coisas do jogo e Howard Webb, o ex-árbitro inglês que agora é o responsável por aquele departamento da Premier League, quer chamá-los para essa labuta de apito na boca. O senhor que impunha respeito nos jogos da Liga dos Campeões e da Liga Inglesa, de 51 anos, quer promover uma espécie de revolução na arbitragem britânica.
“Temos de ver como podemos atrair pessoas. Sempre tivemos dificuldade em ter ex-jogadores envolvidos na arbitragem”, admitiu em entrevista à BBC. “Mas tenho a certeza de que alguém vai querer ser pioneiro.”
Howard Webb, que apitou a final do Campeonato do Mundo de 2010, aponta para uma pessoa que tenha jogado nas ligas profissionais do futebol inglês, não necessariamente aqueles que jogaram “ao mais alto nível”. O ex-árbitro procura, sim, “alguém que tenha tido uma carreira razoável, com um bom conhecimento do jogo, que talvez perto dos 30 tenha tido uma lesão ou que tenha deixado de jogar com regularidade”.

Clive Mason
Vítor Pereira, ex-árbitro português e que recentemente era o responsável da arbitragem russa, cargo que abandonou após a invasão do país à Ucrânia, vê “muito bem” este cenário magicado por Webb.
“Quando eu era dirigente, incluímos no regulamento essa possibilidade, inclusive com um shortcut na progressão da carreira dada a experiência e o conhecimento dos jogadores. Sem sucesso”, lamenta em conversa com a Tribuna Expresso. Webb admitiu que em Inglaterra foram pelo mesmo caminho, sem subestimar a importância da experiência e do conta-quilómetros para ser adquirida uma carapaça importante para estar na elite deste desporto.
Vítor Pereira, de 65 anos, apitou nos Mundiais de 1998 e 2002, em França antes de na Coreia do Sul e no Japão. Conhece muito bem o que os futebolistas têm para oferecer. “Esse conhecer por dentro pode ser uma mais-valia importante para a atividade e para o jogo”, garante. “Nos países do sul da Europa não tem acolhimento. Nos países do Norte e Leste existe mais adesão a esta ideia, havendo vários árbitros nessa condição. Como exemplo mais flagrante, refiro o polaco Szymon [Marciniak], o árbitro da última final do Mundial, que jogou na 2.ª ou 3.ª divisão.”
Os argentinos são uma espécie rara, uma qualquer pináculo de gente que convoca a intervenção divina e as coincidências por tudo e por nada, então o polaco lá caiu nas boas graças dos sul-americanos porque estabeleceram um paralelo entre Marciniak e Romualdo Arppi Filho, o árbitro da final de 1986 que coroou Diego Maradona: ambos nasceram num 7 de janeiro. Num jeito mais térreo, Vítor Pereira vê neste polaco, com 50 jogos na Liga dos Campeões, uma boa referência para personificar a ideia de Howard Webb.
Vítor Pereira em 2002
Gary M. Prior
Marciniak era um médio defensivo trabalhador do Wisla Plock, complicado também, e subiu rapidamente na arbitragem porque na Polónia foi permitido o tal shortcut referido por Pereira, que beneficiava ex-jogadores.
Mas a ligação de Marciniak à arbitragem começou bem lá atrás, depois de uma expulsão, quando ainda jogava nas camadas jovens. “Falei com o árbitro depois do jogo e ele disse-me uma frase muito importante: ‘Se achas que este é um trabalho fácil, vai lá e tenta’”, contou ao site da FIFA, uns dias antes da final que colocou França e Argentina frente a frente. “Eu pensei: por que não? Então, inscrevi-me imediatamente para um curso de arbitragem e comecei a apitar.”
E vê alguma utilidade em ter sido jogador? “Ajuda, isso posso garantir. Eu era um líder, jogando no centro do terreno, e era um jogador louco, para ser sincero”, admitiu em 2015, então numa entrevista ao site da UEFA, antes da final do Europeu de sub-21 entre Portugal e Suécia. “Se há muitos anos me tivessem perguntado se gostaria de ser árbitro, teria respondido ‘claro que não’. Eu era um jogador difícil de controlar. Isso agora facilita-me bastante a tarefa de lidar com jogadores conflituosos, pois eu era igual. Ajuda-me a saber o que diria ou não em certas situações. Às vezes, não faço nada porque sei que a frustração de um jogador pode ser tanta que é melhor não dizer nada, e pouco tempo depois fazer uma piada ou dizer algo engraçado.”

Chris Brunskill/Fantasista
Segundo o “The Guardian”, num artigo de 2010, puxando a fita longamente para trás até se descobrem alguns “pioneiros”. Ainda no século XIX, Sam Black e Herbert Dale jogavam no Newton Heath, o clube que daria lugar ao Manchester United, e depois tornaram-se árbitros. O primeiro até foi um dos primeiros capitães do clube, na década de 1880, e mais tarde, noutra função, anulou um golo ao Arsenal porque a bola furou a caminho da baliza, tornando-se imparável para o guarda-redes. O caso fez correr muita tinta.
Também Steve Baines, ex-futebolista de Huddersfield Town, Bradford City e Chesterfield, pendurou as botas em 1987 e, depois de se aventurar no mundo das seguradoras, agarrou no apito. Em 1995, chegou à lista dos árbitros do futebol profissional de Inglaterra.
Finalmente, mais dois casos: Dick Jol, que apitou a final da Liga dos Campeões de 2001, jogou no NEC Nijmegen, nos Países Baixos, e depois na Bélgica, com as camisolas de Menen, Berchem Sport e KV Kortrijk. O diário britânico conta ainda a história de Ben Haverkort, saído da mágica academia do Ajax, o clube pelo qual nunca jogou a nível profissional, prosseguindo a carreira nos campos de Telstar, Cambuur Leeuwarden e Emmen. Antes de se tornar árbitro, acumulou 73 cartões, seis deles vermelhos, como futebolista. E porquê? Por esticar a corda com os árbitros. Depois passou para o outro lado.
Duarte Gomes, um mui experiente ex-árbitro do nosso futebol, revela que a ideia nem é nova, mas que “é muito gira”. Seria uma forma de atrair mais árbitros para os cursos, explica, “sobretudo jovens árbitros e jovens árbitras”, pois há uma grande escassez em Portugal ao nível do recrutamento. “Temos menos de 5.000 árbitros no ativo”, conta, sendo que a necessidade aponta para 10.000.

Adam Davy - EMPICS
“Todos os fins de semana, em vários distritos do país, e isto nota-se muito no futebol distrital, regional e de formação, há jogos que não têm árbitros nomeados. Isto de recrutar primeiro e manter depois é o maior dilema da arbitragem neste momento”, reflete.
O ex-árbitro e cronista da Tribuna Expresso mostra até uma variante da ideia de Howard Webb, que visa o recrutamento de ex-futebolistas profissionais, mirando, sim, para jovens atletas no início da caminhada no futebol. Duarte Gomes revela que “há algum tempo” procurou-se recrutar eventuais futuros árbitros, entre os 14 e 16 anos, nos clubes, visando aqueles com menos queda para o futebol jogado. “Há até conselhos de arbitragem e associações distritais que chegaram a fazer protocolos e regulamentos no sentido de obrigar cada clube a apresentar um elemento para a arbitragem, o que não é saudável. Esta obrigação causava restringimentos.”
Mas a solução deste problema poderá estar mesmo nos clubes, aponta. “É uma forma excelente de aumentar os quadros de árbitros, que está sempre em défice, e também de termos árbitros com sensibilidade para o jogo, porque a experiência de jogar, ainda que pequena ou mínima, é uma experiência importante para acrescentar qualidade à decisão e à arbitragem. É uma situação win-win. Isto já foi feito aqui há algum tempo, nem sempre com a consistência que devia ser feito, nem sempre em todos os distritos e associações de futebol. Mas é algo que devia ser pensado para ser feito de uma forma mais consistente.”