É como se, em certos momentos do jogo, entrássemos numa dimensão que é só de Erling Braut Haaland. Quando De Bruyne tem a bola e olha a defesa rival de frente, quando Bernardo Silva chega à linha final e mira a área, quando o City tem espaços para correr em transição. Nesses momentos, há um norueguês de corpo vindo do futuro, metade robot, metade animal mitológico nórdico, que dispara rumo à baliza do adversário como se tivesse sido condenado pelos deuses a perseguir eternamente aquele objetivo.
O Manchester City de Guardiola é, há muito, uma oleada máquina de futebol. Joga com critério, propósito, intenção. Agarra-se à ideia que o técnico catalão lhe deu para competir, sempre cheia de nuances, variações, alterações. A cada temporada, vem mais uma volta dada àquele jogar, mais um par de novidades que brotam da cabeça que ficou careca de tanto pensar em futebol, como diz o seu biógrafo, Marti Perarnau.
Desta máquina de futebol saíram quatro títulos da Premier League conquistadas nas últimas cinco temporadas, mas a esta equipa acrescentou-se, este verão, uma espécie de predador voraz única no futebol mundial. Um Thor do golo, de martelo sempre pronto a bater.
Se Sísifo estava condenado, para todo o sempre, a empurrar uma pedra até ao cimo de uma montanha, caindo esta, invariavelmente, monte abaixo quando o topo era atingido, levando à repetição do processo, Haaland faz o mesmo processo repetitivo com a busca do golo. Parece enfeitiçado, movida por uma força que o possui. Galopa rumo às redes com aquela envergadura enorme e um olhar de predador que tem algo de não humano.
Junta-se este jogador, vindo simultaneamente de um futuro em que os humanos foram colonizados por máquinas robóticas e do passado das lendas e mitos, ao oleado coletivo de Guardiola e o resultado é devastador. Para o Manchester United, selou-se numa embaraçosa derrota por 6-3. O pior para os red devils? Ficou a sensação de que, perante o que se viu no Etihad, o resultado foi curto.
Martin Rickett - PA Images/Getty
Cristiano Ronaldo assistiu no banco a toda a partida, na qual João Cancelo e Bernardo Silva foram titulares na equipa da casa e Diogo Dalot e Bruno Fernandes nos visitantes. Para o Manchester United, este dérbi era uma visita ao local a que o clube quer chegar.
Por força do investimento de Abu Dhabi e da boa gestão do City, conjugado com o caos de organização do United, a correlação de forças em Manchester mudou radicalmente nos últimos tempos. O City é o clube estável, com um plantel talentoso, recrutamento com sentido e um treinador com um estilo reconhecido e em torno do qual gira toda a política da entidade. Bases que permitem ganhar de maneira continuada.
O United, que está a começar um projeto com Ten Hag, quer ser tudo isto que se vê no lado azul da cidade. Mas o embate com a realidade foi estrondoso.
Martin Rickett - PA Images/Getty
Desde os primeiros instantes que se viu um City a dominar. Com uma pressão intensa e uma circulação agressiva, a equipa de Guardiola acabava as jogadas com Bernardo Silva e Kevin de Bruyne, teóricos médios interiores, muito subidos no terreno, quase como extremos que pisavam a linha de fundo. Esse movimento do belga e do português, explodindo nas costas dos laterais rivais, não foi parado pelo United.
Aos 8', Bernardo Silva, nessa zona adiantada, serviu Phil Foden para o 1-0. Num dérbi global, em que de um lado há dinheiro norte-americano, do outro de Abu Dhabi e se joga em horário amigo do público asiático, foi o rapaz da casa a abrir o ativo.
O City não tirou o pé do acelerador. Gundogan, de livre, acertou no poste. Grealish quase marcou. Nas bancadas, as imagens mostravam a apreensão de Sir Alex Ferguson.
O resultado parecia, claramente, curto, mas o desperdício dos locais terminou quando Haaland levou o jogo para a sua zona, aquela onde só ele vive. Aos 34' e 37', a visão de jogo e capacidade de execução de De Bruyne encontraram o fenómeno norueguês. Para surpresa de ninguém, este não falhou.
Cada festejo era com aquele ar obcecado e possuído. Marcado um golo, Haaland já estava pronto para correr em busca do seguinte. O Sísifo tinha de continuar a cumprir a sua feliz condenação. Em cima do descanso, o norueguês passou de marcar para assistir, dando o 4-0 a Foden.
Laurence Griffiths/Getty
No segundo tempo, o relaxar do Manchester City permitiu ao Manchester United maquilhar o marcador. Aos 56', Antony, num excelente remate de longe, fez o 4-1.
Se os campeões tiraram o pé do acelerador, Haaland nunca o fez. No seu jogo não se contempla não ir sempre de prego a fundo, não existe um momento em que o seu espírito insaciável se acalme. A condena de ir rumo à baliza contrária e voltar, ir e voltar, correr e rematar, nunca pode ser parada.
Aos 64', Haaland fez o 5-1, servindo depois Foden para o 6-1. O noruguês e o inglês fizeram três golos cada. No final, cada um levou uma bola para casa.
Nos instantes finais do dérbi, um bis de Martial tornou uma goleada de escândalo num muito pesado resultado. O marcador pode ter sido maquilhado, mas a sensação geral não. O Etihad pode não ser muito longe de Old Trafford, mas em qualidade e nível futebolístico o City está noutra galáxia face ao United. E, nessa galáxia, reside a dimensão Haaland, na qual só ele habita.