Depois de tantos fantasmas a ruminar, gritos de desgosto, angustiadas tarjas e telefonemas para casa a dizerem-lhe para voltar para a Escócia, com a glória dos tempos do Aberdeen e o desamor sentido pelo Rangers completamente enterrados, Alex Ferguson continuava a acreditar. Os filhos já lhe pediam para desistir, estava a ser demasiadamente duro, não ia dar certo. O treinador de casca-grossa fabricada em casa e que aprendeu uma coisa ou duas sobre a vida e sobre as pessoas durante a infância e juventude em Glasgow, manteve os olhos no horizonte dourado.
Desistir não era opção. E continuou. Um treino de cada vez. Um tijolo da alma de cada vez.
No Estádio Old Trafford desde a temporada 1986/87, o primeiro título nacional só chegou em 1992/93. Mas essa época, como quase todas até ali, prometia aquele sabor a limão e consequente careta desde o início. Na primeira jornada, Brian Deane, que mais tarde jogaria no Benfica, tornou-se no primeiro homem a fazer as redes de uma baliza abanar na novinha em folha Premier League e, com os dois golos, ofereceu a vitória ao Sheffield United (2-1). No segundo jogo, a rapaziada de Ferguson, com Peter Schmeichel, Paul Ince, Ryan Giggs e Mark Hughes, voltou a perder, desta vez com o Everton, em casa, por 3-0.
As coisas melhorariam ainda antes de Éric Daniel Pierre Cantona, l'enfant terrible, chegar ao clube em novembro. Ferguson admitiu no documentário sobre a sua vida e carreira, disponível na "HBO", que foi Michel Platini que sugeriu aquela contratação, tão olhada de lado pelo historial complicado do futebolista francês. Éric encontrou um lugar onde podia expressar-se à vontade, era ele, sem camadas ou máscaras. Ferguson ganhou um soldado talentoso com a noção e compromisso de que tinha de devolver, no campo, a liberdade que recebera. E levantaram o troféu, finalmente, esvaziando as reticências do mundo inteiro e sobretudo dos descendentes de Alex Ferguson ou Fergie.
Conclusão: a história até acabou bem, o conto de fadas do escocês da mão de ferro começou ali (com 13 ligas conquistadas, superou o recorde do Liverpool), mas as duas derrotas nas jornadas inaugurais da estreante Premier League foram, até há um par de dias, a última vez que tal aconteceu aos adeptos e funcionários do Manchester United. Esta segunda-feira, os jogadores de Erik ten Hag vão procurar evitar, contra o Liverpool (20h, Eleven Sports1), no Teatro dos Sonhos, o que acontecera somente em 1930/31, 1972/73 e 1986/87, isto é, três derrotas nas três primeiras jornadas.

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O ambiente é o mais desfavorável possível, com a equipa a jogar um futebol pobre e desalmado. Casemiro, um operário que promete agarrar algumas pontas e devolver a mentalidade feroz ao balneário, custou um dinheirão mas ainda não pode jogar. Lendas do clube, como Gary Neville e Wayne Rooney, começam a cobrar severamente outro comportamento aos protagonistas. Enquanto o primeiro exigiu a presença dos proprietários, a família Glazer, após o 0-4 contra o Brentford, na segunda jornada, questionando ainda o mistério que Cristiano Ronaldo está a perpetuar à sua volta, o segundo foi mais corrosivo, ao seu estilo.
“Eu deixava o Cristiano Ronaldo de fora”, escreveu o antigo avançado inglês na sua coluna no “Times”. Rooney considera que falta energia. “O United confiou no Ronaldo frente ao Brentford mesmo com pouco tempo de treino com a equipa. Parece-me que ele necessita de tempo para estar em forma para fazer um jogo.”
Mas o ex-companheiro de Cristiano não se ficou por aí. “Se não correres, se não te esforçares, vais perder com qualquer equipa. Nunca tinha visto o Manchester United tão em falta nessas qualidades básicas”, sinalizou o ex-capitão do clube. Sobre o que vem aí esta noite, antecipou os rumores e medos de uma goleada por parte do grande rival: “Eu não creio que isso vá acontecer – não consigo imaginar o United a ganhar, mas acredito que vai haver uma reação e que vão perder por um ou até conseguir um empate”.

Catherine Ivill
O Liverpool, que até mostrou estar a voar na Supertaça (3-1 vs. Manchester City), também começou a Premier League aos soluços, somando somente dois empates, contra o Fulham de Marco Silva e João Palhinha, e o Crystal Palace.
"Escolheram-me para mudar isso"
Também Erik ten Hag, o homem que chegou do Ajax e que parecia ter dado com a tecla milagreira na pré-época, deu uma entrevista à "Sky Sports", conduzida por Gary Neville e Jamie Carragher, abordando os temas sensíveis que mordem a jugular do clube.
Como é que os jogadores do Brentford quiseram ganhar mais do que os jogadores do Manchester United?, questionou Neville, um futebolista que fez a carreira toda naquele clube. “Isso tem de mudar. Escolheram-me para mudar isso”, respondeu, não se sabendo se foi além disso porque se trata de um mero teaser, já que a entrevista completa vai passar esta segunda-feira, antes do clássico entre United e Liverpool.
Neville não deixou de perguntar sobre Cristiano Ronaldo. Aquele comportamento, em que promete desvendar a verdade absoluta dentro de duas semanas, é benéfica para o clube e equipa? “Não sei o que ele quer atingir com isso…”, diz um seco Erik ten Hag. Carragher, acusado na brincadeira de estar em território inimigo, não deixou cair o tema: não seria bom o treinador abrir a porta a um futebolista que não quer estar ali? “Não é isso que ele nos diz”, respondeu o neerlandês, alimentando o mistério à volta do português.
Aconteça o que acontecer esta noite, o United, que estaciona no lugar mais fundo da classificação, parece estar já na reta final de uma temporada, ou de um projeto, com um céu escuro, tão escuro que parece estar prestes a chorar todas as agruras que leva lá em cima. Corre o rumor de que poderá haver mais uma grande manifestação dos adeptos dos red devils contra os proprietários, ameaçando até, como aconteceu em maio de 2021, a realização do jogo.

United e Liverpool defrontaram-se na pré-época, na Tailândia
Matthew Ashton - AMA
“Espero mesmo que isso não aconteça, mas, se acontecer, eu penso que devíamos ficar com os pontos”, sugeriu, no domingo, Jürgen Klopp, o treinador do Liverpool. “Não temos nada a ver com a situação e, se os adeptos não querem que o jogo aconteça, então não podemos só reagendar o jogo outra vez e encaixá-lo num lugar numa época incrivelmente cheia.”
E o alemão ainda acrescentou: “Não sei o que poderá acontecer e não penso sobre isso. As pessoas dizem que vai correr bem, vamos lá e jogamos o jogo e voltamos para casa. Mas, em situações destas, a outra equipa deve ficar com os pontos porque não tem nada a ver com aquilo e prepararam-se para o jogo”.
De acordo com o “The Athletic”, o histórico ainda sorri ao Manchester United, impulsionado certamente durante a estadia de Sir Alex Ferguson, com 81 vitórias contra 70 do Liverpool. Nas outras 58 ocasiões, os dois colossos da Premier League terminaram empatados.
O passado recente do United, ainda assim, demonstra bem os tempos em que vivemos: os red devils só venceram uma vez nos últimos 12 duelos contra os rivais de Anfield (seis empates, cinco derrotas).
Se é certo que Erik ten Hag pode transformar-se no segundo treinador da história do Manchester United a perder os três primeiros jogos em todas as competições - imitando John Chapman, em 1921 -, Mohammed Salah poderá vestir a capa de herói. O egípcio já marcou nove golos aos maiores rivais do país e, se marcar um ou mais, será o primeiro futebolista da história do Liverpool a alcançar os dois dígitos contra este importante rival.