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Há 10 anos, a semente do cholismo aterrava em Madrid: “Tenham esperança e tranquilidade, agora há que trabalhar”

Diego Simeone foi anunciado como o novo treinador do Atlético Madrid a 23 de dezembro de 2011. Quando a equipa estava mais perto da descida de divisão do que da Europa, eliminada da Taça por um clube da 3ª divisão, o argentino cedo transmitiu o seu mantra: “O que me encantaria era ver uma equipa forte, aguerrida, contra-golpeadora… o que nos identificou a todos os atléticos. A nossa história é isso”

Hugo Tavares da Silva

David Ramos/Getty

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A derrota com o Albacete, da terceira divisão, para a Copa del Rey, ditou a mudança. Gregorio Manzano foi despedido e o telefone de uma lenda do clube tocou, do outro lado do charco. Diego Pablo Simeone foi anunciado, no site oficial do clube, como novo treinador do Atlético de Madrid no dia 23 de dezembro de 2011. Passados três dias, aterrou em Madrid, com óculos escuros, o agora tradicional blazer preto e uma quase inexistente barba agreste. “Estou muito feliz, venho com ilusão e alegria”, admitiu, aproveitando para transmitir o mantra por implementar para os desiludidos adeptos: “Tenham esperança e tranquilidade, agora há que trabalhar”.

Assim nascia, ainda não sabíamos, o cholismo, aquela arte de viver no agora, um dia de cada vez, um jogo de cada vez, um treino de cada vez, uma ação de cada vez. O esforço era inegociável, repetiria Simeone tantas vezes.

O Atlético de Madrid, com Sílvio, Tiago e Pizzi no plantel, estava então mais perto da zona de despromoção (sete pontos) do que das competições europeias (oito), estacionando na 11.ª posição. Estava fora da Taça, como vimos, e teria nos 16 avos de final da Liga Europa um terrível desafio contra a Lazio, um clube onde também tinha sido figura.

Um dia depois de aterrar na capital espanhola, Simeone foi finalmente apresentado aos sócios, no Vicente Calderón. Agora, 10 anos depois, é admirável que as suas palavras pareçam quase como uma profissão, goste-se mais ou menos do estilo de jogo dos colchoneros.

Apelando ao “orgulho”, semeando como ninguém a cultura do esforço e do trabalho, o homem que conquistou a tremenda dobradinha por ali, em 1996, disse o seguinte: “O que me encantaria era ver uma equipa forte, aguerrida, contra-golpeadora… o que nos identificou a todos os atléticos. A nossa história é isso. Para isso há que potenciar as debilidades que mostrou a equipa e continuar a construir o bom que se fez. Não creio que tudo tenha sido negativo. Por isso, o primeiro que farei é falar com a equipa”.

Fintando uma polémica em forma de pergunta sobre José Antonio Reyes, Diego Simeone começou ali a afinar a maquinaria coletiva. “Interessa-me contar com os jogadores que querem estar no clube.” O argentino, que jogou três Campeonatos do Mundo (1994-2002), dava ares de que sabia para onde ia. Na Europa só treinara o Catania, que logrou até então o melhor desempenho de sempre, mas na Argentina já estivera Racing, Estudiantes (campeão do torneio de abertura 2006), San Lorenzo e River Plate, um gigante onde ganhou um torneio de clausura e onde ficou também associado à histórica descida de divisão.

Alex Grimm

“Sempre gostei de ser realista e viver no dia a dia”, aí está el cholo implementando o cholismo. “O mais importante para o Atlético é o jogo com o Málaga. Não há nada além disso. Vivo da realidade, não de fantasias, e a realidade é esse jogo contra o Málaga. A exigência é absoluta e há que sentir uma [sensação de] pertença, um sentimento quanto à camiseta.”

No tal jogo de estreia contra o Málága, a contar para a 17.ª jornada da Liga Espanhola, os colchoneros empataram sem golos. Fica para a história o primeiro 11 de Diego Simeone: Thibaut Courtois, Diego Godín, Filipe Luís, Álvaro Domínguez, Luís Perea, Tiago, Eduardo Salvio, Gabi, Juanfran, Diego e Radamel Falcao.

O ano acabou com um sabor doce para os lados do Vicente Calderón. Na verdade, Madrid era toda ela felicidade. É que José Mourinho, na tal época dos 100 pontos, conquistou a Liga Espanhola contra o super Barcelona de Pep Guardiola; Lionel Messi fez 50 golos e Cristiano outros 46. Que tempos.

Mas o Atlético também recuperou o orgulho, a esperança e a competitividade que o trabalho diário por vezes pressupõe: 5.º lugar, com direito a apuramento para as competições europeias, e conquista da Liga Europa, depois de um 3-0 na final contra o Athletic Bilbao de Marcelo Bielsa, que eliminara o Sporting nas meias-finais. Falcao fez dois golos e Diego o outro.

Na primeira época completa no Atlético, Diego Simeone confirmou ser um homem especial. À Supertaça Europeia (4-1 vs. Chelsea) juntou a Copa del Rey, batendo o eterno rival na final. O terceiro lugar na La Liga assegurava que o vento era diferente e que haveria um competidor diferente por aquelas bandas.

Puxando a fita à frente, 10 anos depois daquele anúncio do homem que montaria a equipa como jogava enquanto futebolista, a história é fácil de resumir: o Atlético nunca, com o argentino, ficou abaixo do terceiro lugar na La Liga. Em 2013/14 e 2020/21 conquistou o campeonato e noutras duas ocasiões, em 2017/18 e 2018/19, foi vice-campeão. Pelo meio, à Liga Europa conquistada no ano de estreia juntou outra, em 2017/18.

Manuel Queimadelos - UEFA

O pináculo da sua missão de recuperação de orgulho e de engrandecimento de um clube associado com a classe trabalhadora de Madrid quase aconteceu em duas ocasiões na Liga dos Campeões. Em três anos conseguiu colocar o Atlético em duas finais da Liga dos Campeões, em 2014 e 2016, mas perdeu ambas, depois de um golo tardio que permitiu o prolongamento e das dramáticas grandes penalidades.

O cenário só ficou digno de um filme de terror porque o rival nos dois jogos foi o Real Madrid. Na altura da segunda derrota, o argentino, demonstrando o seu lado mais fundamentalista e resultadista, escolheu o termo “fracasso”.

O estilo de jogo de Simeone tem sido um dos grandes debates do futebol internacional, por adeptos, apaixonados do jogo, jornalistas e comentadores.

Uns apreciam o brio combativo, a utilidade de cada ação ou a inexistência de um qualquer desvario artístico, outros pediam mais liberdade para a essência dos talentosos futebolistas, menos medo no fundo. Mas há uma identidade vincada e um mérito enorme em colocar jogadores de altíssimo gabarito a correr mais pela equipa do que por eles próprios. Isso também fala na liderança do treinador. É difícil de imaginar aquele processo de sedução e convencimento, mas é admirável vê-lo em prática.

Scott Heavey

Recentemente, com a chegada sobretudo de Lemar, Luis Suárez, Antoine Griezmann, Ángel Correa, João Félix e Matheus Cunha, criou-se a expetativa de que o Atlético poderia tornar-se mais ofensivo. Simeone chegou a admitir, no início da época passada, que daria esse passo. Não se verificou especialmente, mas a equipa continuou a competir à el cholo e foi campeã.

Em conversa com Vicente del Bosque, para o “El País”, em outubro, o ex-futebolista deixou algumas pérolas que o ajudam a desenhar e a definir. Questionado sobre o facto de aceitar ouvir os jogadores e quão débil poderá isso parecer nos dias de hoje para um treinador, foi fino na resposta.

“Escuto muito. Não é, de todo, uma debilidade. Abro-me sempre para ouvir as necessidades deles, para escutar o que vem, mas depois decido eu”, começou por dizer. “Se tenho algo é que não sou tonto. Posso ser mau treinador, mas tonto seguramente que não sou e procuro o caminho que me leva [ao objetivo] mais rápido.”

CRISTINA QUICLER

Sobre a liderança e a qualidade da relação com os jogadores, que o podem seguir ou não, o argentino disse ainda o seguinte: “Percebe-se o ambiente. É difícil explicar o que se sente, mas sente-se a atenção, concentração e então flui. Depois veem-se os feitos ou não. Uma coisa é acreditar em ti, mas depois não executo. O que procuramos é que eles se sintam cúmplices do que fazemos. Que o sintam. Eu digo-lhes sempre que o que melhor me faz como treinador é poder refletir os meus sentimentos dentro do campo e eu procuro gente que os reflita. Quando não acreditam em ti, vê-se logo. As pessoas etiquetaram-me e isso considero uma falta de respeito, nem sequer veem se evoluis. Olham para o que foste”.

Atualmente, o apaixonado e exagerado Diego Simeone vive talvez o momento mais conturbado da sua estadia em Madrid. O Atlético, que com dificuldade passou o grupo da Liga dos Campeões (eliminando o FC Porto, ao qual não foi superior), regista quatro derrotas consecutivas na La Liga, o que não acontecia desde fevereiro de 2011, antes da sua chegada portanto.

Uma coisa que parece certa, esteja como estiver o vento agora no Wanda Metropolitano, é que Diego Pablo Simeone ganhou o direito a decidir quando vai embora. E isso só as maiores lendas o podem fazer.