Futebol internacional

Em 1977, Banks foi o melhor guarda-redes, mas não conseguiu parar novamente Pelé - estava cego de um olho

Em 1977, Banks foi o melhor guarda-redes, mas não conseguiu parar novamente Pelé - estava cego de um olho
Clive Mason

Os personagens da “Defesa do Século” reencontraram-se na liga americana em 1977. Pelé foi campeão novamente, mas Banks reviveu sua carreira após a grave lesão no olho direito

Evandro Furoni

A história de Gordon Banks, que morreu vítima de um cancro no fígado na passada terça-feira, estará sempre ligada à de Pelé. O lendário guarda-redes inglês fez a chamada “Defesa do “Século” diante do brasileiro no Mundial de 1970, no México. Não foi a única vez que se enfrentaram: Banks e Pelé foram rivais no futebol do EUA em 1977, e a narrativa foi semelhante à do México, sete anos antes. O “Rei” sagrou-se campeão e Banks foi o grande guarda-redes do torneio.

O detalhe é que o britânico conseguiu o feito apesar de estar praticamente cego de um olho.

Apenas dois anos depois da fantástica defesa no Estádio Jalisco, Banks viu a sua carreira ser tragicamente interrompida após um acidente de automóvel. Foi assim: em outubro de 1972, o guarda-redes voltava de carro após um treino com a equipa do Stoke City e colidiu com uma carrinha. Alguns estilhaços de vidro entraram no seu olho direito e, após receber mais de 300 pontos e micropontos, perdeu a visão binocular.

Sem a capacidade de ver perfeitamente o jogo, Banks anunciou o fim de sua carreira em 1973 e ali começou uma luta de quatro anos para voltar aos relvados. Houve tentativas de retorno em amigáveis, mas sem sucesso, e quando aceitou o cargo de adjunto no Stoke City, parecia que o sonho de voltar às balizas tinha acabado.

Até que recebeu um telefonema. Era dos EUA.

A muralha do forte

Apesar de existir desde 1968, a NASL (sigla em inglês para North American Soccer League) só se tornaria popular na década seguinte, graças a um plano ousado. A liga, que nasceu como amadora, decidiu dar sumptuosas quantias de dinheiro para jogadores internacionais lendários. Ninguém representou isso como o New York Cosmos, que em 1977 contava simplesmente com Pelé e Franz Beckenbauer na equipa.

O Fort Lauderdale Strikers, equipa que tinha acabado de se estabelecer na Flórida, queria fazer parte do projecto. Coube ao técnico Ron Newman ligar para o seu amigo pessoal e convidá-lo para mais uma chance. Banks, então com 37 anos, aceitou.

De início, a contratação do britânico era mais uma manobra para atrair publicidade do que para adquirir um guarda-redes fiável. Exemplo dessa suspeita está no relato dado por Steve Ranking, responsável pela comunicação do clube, para a revista americana “Sports Illustrated”. Rankin teve a missão de escrever o comunicado a anunciar que o Strikers tinham trazido um “guarda-redes zarolho”. Após múltiplas revisões, decidiu por isto: “com uma séria lesão no olho”.

O trabalho de Steve ficou mais fácil nos meses seguintes. Com o apoio de uma forte defesa, Banks não só foi titular da equipa como um o segundo guarda-redes com menos golos sofridos na época. Ao todo, foram 26 partidas e apenas 29 as vezes que a bola passou pelo seu atento olho esquerdo. No fim da época, o britânico foi eleito o melhor guarda-redes da competição, com 276 votos. Banks chegou ao “All-Star Team” com mais votos que jogadores como Pelé, George Best e Beckenbauer.

“Obviamente, foi-se uma das três dimensões. Eu posso colocar a minha mão num lado e não a vejo, e em algumas situações eu tenho que concentrar-me num jogador com a bola próxima do golo e não consigo ver os outros atletas em condição de finalizar. Então, eu tenho que ler o jogo melhor do que fazia; tenho julgar se posso ou não cobrir caso o atleta com a bola passe para outro avançado. Eu sempre expliquei o que tinha a quem jogou comigo; portanto, eles ajudam-me de formas que não fariam com outro guarda-redes. Eles percebem que posso compensar com experiência que tenho”, resumiu Banks sobre o segredo de seu sucesso para a mesma “Sports Illustrated.

A defesa sólida fica provada nos números do Fort Lauderdale Strikers: a equipa terminou a época não só com a melhor campanha no geral como também como a que menos golos sofreu. O problema é que, como é tradição nos EUA, o campeão não é decidido pela melhor campanha, mas sim no sistema de playoffs. E, do outro lado, havia uma equipa mais do que habituada a estas decisões com decisões.

Desta vez, sem defesa do século

Os Strikers conseguiram aproveitar a crise no Cosmos, que via a rivalidade interna entre Pelé e o italiano Giorgio Chinaglia prejudicar o jogo da equipa, para serem os melhores durante a fase regular, mas nem isso foi suficiente para Banks levar a melhor diante de Pelé.

Foram dois jogos durante o campeonato. No primeiro, no Giants Stadium, não houve chance para mais uma defesa do século de Banks diante de Pelé. O Rei fez os três golos na vitória por 3-0 e o jornal americano “The New York Times” destacou em suas páginas que foi o reencontro das duas lendas após a infame defesa em Guadalajara – só que desta vez Pelé usou os pés, não a cabeça, para superar o rival.

“Ele não comete erros quando está próximo do golo”, comentou Banks para o jornal americano. Os três golos de Pelé foram remates rasteiros dentro da área, o que fez o New York Times questionar se o problema de visão de Banks não teria sido um fator decisivo na partida.

“Banks, cuja visão do olho direito é dita estar severamente prejudicada, também não teve chance os outros dois golos de Pelé, marcados nos minutos 52 e 88 de jogo. Assim como no primeiro, eles foram feitos através de remates rasteiros. Talvez Pelé soubesse algo sobre o problema de Banks, pois o guarda-redes mostrou autoridade diante de chutes altos e cruzamentos”, escreveu o jornal.

O melhor guarda-redes da NASL sofreu diante da equipa de estrelas do Cosmos. Na partida na Flórida da segunda volta, outro 3-0, com um golo de Pelé. Mas nem o primeiro nem o segundo 3-0 se comparam aos 8-3 da primeira-mão dos quartos de final da competição. O New York Times culpou em parte Banks pelo resultado exagerado, classificando a partida como a pior do guarda-redes desde que chegara aos EUA.

[O jogo também entrou para a história por ter sido o jogo de soccer com mais gente nas bancadas. O Giants Stadium recebeu 77.691 adeptos, supostamente 1,2 mil a mais do que a capacidade do estádio naquele momento. “Eu não consigo explicar o que estou a sentir. Quando atraímos 62 mil adeptos, chorei que nem um bebé. Isso eu não consigo explicar. É uma das minhas maiores emoções. Provavelmente é possível trazer o Maracanã aqui e ele ficará cheio de adeptos”, comentou um emocionado Pelé.]

O resultado desnivelado pouco valeu para o segundo jogo, já que a melhor campanha do rival obrigava que o Cosmos também vencesse na Flórida para avançar– os americanos e as suas ideias para nivelar desportos. Os Strikers venciam por 2-1 até os 81 minutos, até que o técnico Eddie Firmani, tomou uma atitude drástica: tirou Pelé (autor do golo do Cosmos até então) e Beckenbauer do jogo. A aposta correu bem. Com jogadores mais jovens, o Cosmos não só empatou o jogo como ficou muito próximo do terceiro golo, mas Banks foi decisivo para segurar o resultado, com pelo menos quatro defesas nos minutos finais.

Com a partida empatada também no prolongamento, a classificação foi decidida na maior particularidade da NASL: em vez dos penáltis, houve uma decisão por shootout, que é coisa parecida com a grande penalidade do hóquei. Ou seja, o jogador carrega a bola desde o meio-campo com o objetivo de superar o guarda-redes rival cara a cara.

Nesta disputa particular, o herói não foi Banks, mas sim Shop Messing, guarda-redes do Cosmos. Messing fez duas defesas e forçou mais um remate para fora. A equipa de Nova Iorque sagrou-se campeã naquela época, o último título na carreira de Pelé.

Respeito do Rei

Pelé retirou-se de vez dos relvados após o título de 1977 com o Cosmos. Já Banks voltou para mais uma época nos EUA, mas sem o mesmo sucesso do ano anterior. O britânico participou em apenas 11 partidas e sofreu 22 golos, incluindo uma goleada de 7 a 0 diante do... Cosmos na abertura do torneio. Mesmo assim, a equipa da Flórida, então reforçada com George Best, chegou às meias-finais dos playoffs, sendo eliminada pelo Tampa Bay Rowdies. O Cosmos , mesmo sem Pelé, conquistou o tricampeonato.

Com 38 anos, Banks decidiu-se retirar-se e começar uma curta carreira de treinador em equipas menores da Inglaterra. O guarda-redes passou os anos seguintes a fazer trabalhos como orador e como membro do “Pools Panel”, um conselho que decide o provável resultado de um jogo caso ele seja adiado, para tornar todas as apostas válidas. Entre 2000 até a sua morte, Banks foi presidente do Stoke City.

A própria NASL não durou muito após o festival de lendas que levou aos relvados americanos. Os salários fora da realidade começaram a debilitar cada vez mais as equipas, e a liga encerrou após a época de 1984. O soccer só voltaria a ter uma liga bem estabelecida nos EUA em 1996, com a criação da MLS.

Pelé nunca escondeu sua admiração pelo homem que o parou no México. Em 2008, participou na inauguração de uma estátua de Banks a fazer a “Defesa do Século” no estádio do Stoke City. O Rei divulgou um comunicado ao saber da morte de seu rival e amigo: “Eu marquei muitos golos na minha vida, mas, muitas pessoas, quando me conhecem, perguntam-me sobre a defesa. Embora tenha sido de facto fenomenal, a minha memória de Gordon não é definida por ela - é definida pela sua amizade. Ele era um homem bom e caridoso, que deu muito às pessoas”, escreveu Pelé.

“Então, eu sou grato dele ter defendido o meu cabeceamento - pois aquela defesa foi o início de uma amizade nossa que eu sempre valorizei. Sempre que nos encontrávamos, era como se nunca tivéssemos ficado distantes”, concluiu.

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