Futebol feminino

Megan Rapinoe, a última vez pelos Estados Unidos e a luta justiceira fora de campo que quase ofuscou as medalhas

Megan Rapinoe, a última vez pelos Estados Unidos e a luta justiceira fora de campo que quase ofuscou as medalhas
Maddie Meyer - FIFA

Aos 38 anos e depois de 203 jogos, Megan Rapinoe despediu-se da seleção norte-americana, em Chicago, contra a África do Sul. Sai orgulhosa pelas lutas e conquistas, agradece às colegas por a terem deixado ser quem ela é (louca e a tentar coisas loucas) e confessa que esta foi uma geração de futebolistas especiais que usou o talento e o dom para deixar o mundo e o futebol em lugares melhores

Com os olhos na reforma dourada, Megan Rapinoe já criou uma empresa de produção que dará a conhecer histórias de revolucionários que levaram a cultura para a frente. É como ver-se ao espelho. Se há atleta que aproveitou a plataforma que o futebol lhe proporcionou foi esta futebolista, agora com 38 anos, que esta madrugada disse adeus à seleção norte-americana, uma camisola que vestiu em 203 ocasiões. O 2-0 à África do Sul, os 54 minutos que jogou e a assistência saída de uma das suas botas, é o que menos importa. O futebol internacional diz adeus a uma das mais importantes futebolistas da história.

Tal como Bill Russell ou Billie Jean King, atletas que extravasaram os seus propósitos meramente desportivos e lutaram por algo na sociedade ou na sua modalidade, também Rapinoe recebeu, das mãos de Joe Biden, a Presidential Medal of Freedom, a mais importante distinção civil nos Estados Unidos. Não só foi excelsa num campo de futebol, onde ajudou o país a conquistar dois Campeonatos do Mundo e uma edição futeboleira dos Jogos Olímpicos, como se juntou a causas sociais e humanitárias que engordaram o seu perfil e legado.

Na final do Campeonato do Mundo de 2019, onde as norte-americanas celebraram mais um título, ouviu-se das bancadas “equal pay”. As palavras de ordem do povo haviam caído antes de futebolistas como Megan Rapinoe e Alex Morgan. Se a batalha por pagamentos equiparados com a seleção masculina lhe trouxe alguns dissabores, já depois de se ter assumido como homossexual e vociferado a favor da comunidade LGBTQ+, talvez nenhuma luta lhe tenha trazido tanta agrura alheia como quando se solidarizou com Colin Kaepernick, o jogador de futebol americano que colocou o joelho no chão, durante o hino nacional, contra o abuso de força policial contra os negros.

Como contou a “Time”, ela foi a primeira atleta caucasiana a ajoelhar-se durante o hino nacional. Donald Trump e a sua turba mais apaixonada caíram em cima dela. Rapinoe recebeu ameaças de morte. Foi um período violento e primário. “Sendo uma americana gay, sei o que significa olhar para uma bandeira e não ter todas as tuas liberdades protegidas”, explicou em setembro de 2016. “Foi algo pequeno que eu podia fazer e algo que eu planeio continuar a fazer esperando fomentar uma debate significativo. É importante ter pessoas brancas a apoiar as pessoas de cor nisto. Não precisamos de ser a voz que lidera, obviamente, mas apoiá-los é algo realmente poderoso.”

Alex Wong/Getty

Este tipo de postura tornou-a alguém muitíssimo política, uma carreira que ela descarta. Mas conduziu a bate-bocas com Trump, por exemplo, quando disse que jamais iria à Casa Branca se ganhasse o Campeonato do Mundo, em 2019. O governante, ao seu estilo, ridicularizou-a dizendo que estava a falar muito para quem ainda não tinha ganhado o torneio. Mas ela, e as companheiras claro, acabaram mesmo por ganhar esse Mundial, o segundo consecutivo, e recusaram o convite que em surdina saiu dos gabinetes da Casa Branca.

Sempre provocadora debaixo dos seus cabelos estridentes, chegou a dizer que desconfiava que Trump e tantos supostos haters até gostavam dela. Afinal, é “exatamente a atleta impetuosa e arrogante que os americanos adoram”, confessou à revista “Time”, antes do Campeonato do Mundo este verão, disputado na Nova Zelândia e na Austrália, um palco onde só não se despediu contra Portugal porque um poste se meteu no caminho dessa lengalenga.

Foram 63 golos e 73 assistências em 203 jogos pela seleção, com a qual se estreou em 2006, mas o que vai fazendo eco mesmo é a voz desta senhora que conquistou a Bola de Ouro em 2019. “ Lutámos tanto fora do campo para criar mais espaço para sermos quem somos, mas esperamos criar mais espaço para vocês serem quem vocês são”, disse no domingo, na ressaca do derradeiro jogo pela seleção.

“Tem sido uma grande honra vestir esta camisola e jogar com todas estas incríveis jogadoras, e viver o meu sonho de infância, casualmente, quer dizer, em frente ao mundo inteiro”, continuou. “Eu não me vou embora para sempre, não se preocupem. Sou uma de vocês agora. Vou ser a maior fã desta equipa. Obrigado a todas as jogadoras por terem permitido que eu fosse eu própria, louca e tentando coisas loucas no campo.”

Na véspera do jogo, como tantas vezes faz, porque pode, Rapinoe virou a narrativa ao contrário. Em vez de falar num final, mencionou o começo de algo. Está ansiosa pelo que vem aí. É que o desporto feminino está numa fase especial, “está num lugar excitante”. Prometeu manter-se vocal a favor do desporto feito por mulheres, pois sabe umas coisas sobre o assunto.

Megan Rapinoe e Alex Morgan, a cantarem o hino dos EUA antes de defrontarem Portugal, a 29 de agosto de 2019
Hannah Foslien/Getty

“Penso que temos sido uma parte importante na promoção e na discussão, quer se trate dos direitos dos homossexuais, de justiça racial ou dos direitos dos transexuais, em todas as conversas sobre desporto e, em particular, sobre o desporto feminino”, declarou no sábado. “Temos sido um grande impulsionador disso e tornámos isso tão importante quanto o que estamos a fazer em campo. Acreditamos que isso é igualmente importante.”

O discurso prosseguiu com a magnitude que está já incrustrada há muito na forma de estar desta mulher. Não sacrificaram quem são, lutando pelo que achavam justo, e continuaram a dignificar o ofício, que obriga a calçar umas botas e a tocar na bola com todas as partes do corpo menos braços e mãos. Está orgulhosa por isso mesmo, pelo equilíbrio, por um lado não ter perdido para o outro. A luta fez-se dentro e fora do campo. Com a mesma fome e compromisso com a justiça.

“Obviamente, temos sido uma geração de jogadoras muito especial”, continuou a reflexão, “mas penso que diz muito sobre nós o facto de tudo o que fizemos em campo parecer insignificante em comparação com o que alcançámos fora dele”. E falamos de campeãs mundiais e olímpicas. Mas nunca deixaram de sentir a pressão, garante. Contra tantos e porventura algumas, colocaram o “maior dom” e “todo o talento” para “tentar transformar o mundo num lugar melhor e para deixar o jogo no lugar muito melhor do que aquele em que o encontrámos”.

Seguiram-se variadíssimas lutas de muitas jogadoras contra as suas federações, nomeadamente o que se vai vendo agora na seleção espanhola, e a inspiração parece estar ali, no coração e na garganta de Rapinoe e de quem estava ao seu lado.

A história da futebolista Megan Rapinoe vai esticar-se até meados de outubro, quando jogar pela última vez com a sua equipa, OL Reign, contra as Chicago Red Stars, mas é provável que a ativista Megan Rapinoe continue por aí. Ainda assim, apesar de ter levado nas entranhas tanto, tanto fogo para iluminar tantas guerras justiceiras, até ela precisa do que todos precisamos a certa altura: “Estou ansiosa por descansar um bocadinho”.

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