Um irmão ver a irmã, a dado dia, ambos sorrindo ao de leve no cumprimento, e uma das primeiras coisas que lhe diz ser “a tua cara dá-me dores de cabeça” parece, contado assim de chofre, um desamor de irmandade se escrito sem as pantufas do contexto. Soa, também, a exagero sensorial: por que raio haveria uma face de causar dor nos olhos de quem vê, apenas por a avistar, além de uma razão de pura hipérbole? Se abraçarmos a hipótese sem filtros, durante o quarto de hora inicial em Guimarães, as jogadoras portuguesas terão igualmente sentido dolorosas consequências da proximidade com galesas.
Foi um ver se te avias para a seleção sair da sua metade do campo. Cada receção de costas valia um quase abalroamento, qualquer repetição de um passe para o lado despertava a pressão de uma adversária e toda o duelo, pela relva ou no ar, era uma certidão de contacto físico. E na beleza das tantas coisas que o futebol jogador por mulheres não tem por comparação aos vícios vistos na versão dos homens, viram-se várias portuguesas no chão, a rebolar ou estendidas, a queixarem-se de pancadas um pouco por toda a anatomia. Não era fita, mas dor.
A asfixiante entrada das galesas, muitas habituadas à rotação da Womens’ Super League inglesa recheada de qualidade, desamigaram o segundo jogo amigável de Portugal no pós-qualificação para o Mundial e pré-anúncio das convocadas para o torneio de se parecer ao mimo ficcional, visto e ouvido em Succession. Nada temais, a intenção não é spoilar a série que está na berra por estes dias, nem o inventado inglesismo assenta da mesma forma: pelos vinte minutos, já Portugal gritava para se libertar dessas correntes de brutidão física das adversárias.
O remate de Ana Rute à barra, tirado à boca da área (21’), o sprint de Telma Encarnação nas costas da linha defensiva, a perseguir um pontapé de longo curso da guarda-redes Patrícia Morais que quase alcançou (23’) e a frouxa tentativa de Carolina Mendes, com o pé esquerdo (31’), a fechar uma rápida transição de combustível em passes curtos, viravam o espelho das sensações no jogo. A primeira parte acabou com dores nas cabeças galesas, elas a caçarem sombras de caras a meio-campo e a recorrerem à rudeza dos encostos físicos.
Entrando em funcionamento, o habitual losango de Portugal engatou o jogo de toque, passes no pé no nervo do campo, as talentosas a combinarem e uma em especial no oásis das entre linhas, à espera de bolas com que se virar para depois colocar as avançadas a correr. Não foi a tarde mais inspiradora de Kika Nazareth, a caxemira calçada nas suas botas rosa sofre contra adversárias mais duras, mais afins de ‘pancada’, que encostam em duelos a preceito, mas, quando a seleção respirou com bola, ela melhorou a qualidade do ar a cada toque dado.




O golo da seleção teve-a no último passe, que desencantou após receber um passe a rodopiar com a bola colada à sola, bailando na cara de uma adversária que ainda se rasteirou para a desarmar e a viu a lançar Telma Encarnação, a madeirense dos intuitos simples e práticos: correu para a direita da área, encarou a defesa, tocou rápido para o pé esquerdo e rematou com força (50’). Rápida, sem artifícios, cheia do que o momento pedia.
Cabelo apanhado, sorriso a ligar orelhas e aparelho nos dentes, era a cara da avançada a provocar dor nas cabeças das combativas galesas que carregaram na tecla da sua versão de um kick and rush apesar de terem Jess Fishlock, Hannah Cain ou Rachel Rowe, jogadores de demasiado critério no pé para ser absorvido em constante jogo direto. As portuguesas contrariaram-nas, Andreia Norton viu um túnel por entre pernas, Fátima Pinto simplicava os passes para as talentosas da frente, Catarina Amado e Ana Borges davam a largura que lhes compete com um losango a meio-campo.
A seleção jogou, por momentos, à seleção, bola sempre no pé, toca-e-vai, duas setas na frente em constantes diagonais e atrair no miolo para depois acelerar. Foram outros vinte minutos em posse sob pressão - e dureza, as mãos nas caras, os encostos fortes, os dentes das solas das chuteiras à mostra - em que Telma Encarnação ainda pedalou com uma bicicleta à baliza (60’). Mas, males antigos despertados, num canto defensivo como os que tantas mazelas causaram no Europeu, um corte vindo de um ressalto atabalhoado, sucedido de uma alívio tímido de Sílvia Rebelo para a entrada da área deu a Rachel Rowe o remate (73’) que empatou o jogo.
A revisita a fragilidades passadas fixou o resultado, apesar do tempo que ainda restava. Já sem o critério no passe de outrora, mais com pressa do que com certeza, a seleção já com três médias e um trio de atacantes, a seleção terminou em fogachos. Cheia de esticões no jogo e bolas na profundidade enquanto as galesas prosseguiram com as suas caras de guerra, a entrarem a cada bola, inofensiva ou em que zona do campo fosse, com a faca entre os dentes. Um segundo cartão amarelo para capitã Sophie Ingle surgiu antes do último dos remates de Ana Dias, a avançada do Zenit da Rússia chamada para ser vista, como não é costume.
Não há dores de técnica, de pés e de trato da bola na seleção nacional, é Portugal que jogará o Mundial daqui por uns meses e não o estilo metaleiro de Gales. As caras assim-assim das portuguesas no final deste empate juntam-se às vistas na derrota com o Japão, essas e outras darão dores à cabeça de Francisco Neto. Há trabalho por diante até ao Campeonato do Mundo, o bom é que sobra ainda tempo para matutá-lo sem ofensas de bolso à Roman e ‘Shiv’ Roy, que quanto mais se batem mais gostam um do outro. Outro falso ponto em comum com este jogo - as galeses não pareceram gostar muito das portuguesas.