Quando Sara Björk Gunnarsdóttir descobriu que estava grávida, em março de 2021, o que lhe invadiu o corpo não pertencia apenas à felicidade. Havia também reticências e dúvidas. E um nefasto sentimento de culpa, como se estivesse prestes a deixar outros desiludidos. Afinal, nunca uma futebolista do poderoso Lyon, um clube com oito troféus da Liga dos Campeões no museu, anunciara uma gravidez.
“Foi tudo uma carga de nervos”, admitiu a jogadora islandesa, numa carta publicada esta terça-feira no “The Players Tribune”, onde revela o seu lado da história que promete ser um ponto de inflexão no futebol feminino. É nesse texto, com o título “O que aconteceu quando engravidei”, que explica os detalhes do que viveu. Resumindo, a história navega por esta trama: descoberta em casal da gravidez, os treinos e segredos com doutores e fisioterapeutas do clube, o medo, o anúncio ao grupo, o processo, o desaparecimento dos dirigentes, a angústia, os salários que deixaram de pingar na conta bancária, as ameaças, o parto, os treinos para manter a forma, a luta burocrática e o envolvimento de sindicatos.
E conta mais: é aí que, depois dos inúmeros acontecimentos relatados e da queixa à FIFA que contou com a colaboração do FIFPro, a entidade que reúne os sindicatos de futebolistas de cada país, a jogadora celebra finalmente a vitória nos tribunais e revela o porquê de ter atuado como atuou.
“Damos os parabéns à Sara Björk Gunnarsdóttir pela queixa bem-sucedida contra o Olympique Lyonnais por o clube não ter pagado a totalidade do seu salário durante a gravidez”, pode ler-se numa publicação das redes sociais do FIFPRO. O organismo que reúne jogadoras de vários sindicatos destaca ainda que foi a primeira decisão desta natureza desde que a FIFA implementou, em janeiro de 2021, as novas regras para proteger as jogadoras que querem ser mães.
A história
Ao segredo das primeiras semanas de gravidez juntou-se o desconforto com o aproximar do jogo importante contra o PSG. No treino na véspera, Gunnarsdóttir vomitou três vezes. O treinador de então perguntou-lhe se estava tudo bem, já no dia da partida, questionando depois se ela podia entrar ao intervalo. Sara disse que não. Era altura de contar à equipa.

James Gill - Danehouse
O plano da jogadora era passar a gravidez na Islândia, uma ideia que foi aceite pelo clube, que nas redes sociais e no site oficial congratulou a sua futebolista por aquele momento bonito da vida dela. O plano, conta na tal carta publicada esta terça-feira, passava sempre por voltar ao clube depois do parto. “Acreditava que ser a primeira jogadora do Lyon a regressar de uma gravidez seria algo que poderíamos celebrar juntos”, pensou então. O plano foi colocado em marcha (papéis do seguro assinados e viagem para a Islândia). Por lá, sentiu-se finalmente aliviada, teria por perto a mãe e perceberia exatamente o que os médicos lhe diziam.
Mas as coisas não correram exatamente como previa. O salário, o primeiro a receber desde que estava grávida, não apareceu no extrato bancário, tendo recebido apenas um dinheiro da segurança social. “Para ser sincera, havia muita logística para lidar, por isso não pensei muito nisso. Provavelmente tinha sido um erro. Mas eu perguntei às outras jogadores para ter a certeza. Elas receberam na altura certa.”
Não era um erro e Gunnarsdóttir não recebeu o salário seguinte, algo que se verificaria durante a gravidez. Teve de retirar dinheiro das poupanças para pagar as suas despesas e também a um treinador pessoal para manter-se em forma, conta. O agente pediu contas ao clube, que não respondia. O diretor-desportivo finalmente respondeu, a certa altura, dando conta de que receberia o que tinha a receber, mas que a partir do terceiro mês já não teria direito a nada, alegando que era o que dizia a lei francesa.
A jogadora sabia vagamente que estava protegida pelas mais recentes leis da FIFA em defesa da maternidade. Introduzidas a 1 de janeiro de 2021, as novas normas preveem, por exemplo, uma licença de maternidade mínima de 14 semanas, das quais pelo menos oito devem seguir-se ao nascimento do bebé, garantindo ainda dois terços do salário, no caso de a legislação nacional ou contrato coletivo de trabalho não estabelecerem um valor mais elevado.
Entraram então em campo o sindicato de jogadores francês, assim como o FIFPro. O dinheiro continuava sem aterrar na conta da futebolista da Islândia. Quando os representantes da atleta revelaram ao clube que pretendiam apresentar queixa à FIFA, o diretor-desportivo disse: “Se a Sara for para a FIFA com isto, não terá futuro no Lyon, de todo”.

James Gill - Danehouse
“Só queria desfrutar da minha gravidez, (...) mas em vez disso sentia-me confusa, stressada e traída”, desabafou na carta publicada no “The Players Tribune”. A certa altura disse ao companheiro que admitia deixar o futebol. Sentia-se abandonada, pois ninguém no clube olhou por ela.
O parto foi “o mais maravilhoso”, contou ainda a agora jogadora da Juventus, era algo especial tornar-se mãe. “Sentes-te como um super-herói depois de um parto assim.” O trio, Sara, Árni e Ragnar, companheiro e bebé, voltaram em janeiro para Lyon. A ideia dela, esvaziada a vontade de gritar a insatisfação por toda aquela história malfadada, era voltar a ser o que era. Sonia Bompastor, a atual treinadora, disse que ela seria ajudada. Mas as dificuldades sucederam-se: disseram-lhe, primeiro, que não podia levar o bebé nos jogos fora, para não perturbar as colegas. Depois, recusada essa hipótese pela jogadora, disseram-lhe que testariam tal cenário em dois jogos forasteiros. Gunnarsdóttir abanou a cabeça nas duas ocasiões. Não havia entendimento. “Eles fizeram-me sempre sentir como se fosse negativo ter tido um bebé”, reconheceu.
A jogadora manteve firme a vontade de se defender e o FIFPro estava no terreno. “O diretor-desportivo disse-me que não era pessoal, apenas negócio”, contou ainda. A luta fatigava-a e o futuro no clube era impossível, apercebeu-se.
A decisão do processo levantado pelo FIFPro foi conhecida em maio, e era favorável à jogadora: o Lyon teria de pagar à jogadora todos os salários que lhe deviam. O clube movimentou-se para conhecer as entranhas daquela deliberação, para decidir se avançava ou não para um recurso. Optaram por acatar a decisão inicial.
“A vitória foi maior do que eu. Serve como uma garantia de segurança financeira para todas as jogadoras que queiram ter um filho durante a carreira”, pode ler-se ainda na carta. “Que não é um talvez, ou o desconhecido. (...) Eu queria garantir que ninguém passava pelo que passei. E queria que o Lyon soubesse que não é OK. Isto não é só negócio. Isto é sobre os meus direitos como trabalhadora, como mulher e ser humano. Merecemos melhor.”