O braço sacudia o ar como faz alguém que sabe que inventou algo importante. Era um golo histórico. O povo, eufórico na bancada, reagiu em conformidade. As colegas engoliram Diana Silva, obreira de um momento especial, num prolongamento ainda por cima. Rapidamente chegaram os reforços, as colegas que estavam no banco. Até Fátima Pinto, com um saco de gelo na mão, ao pé coxinho e depois a coxear. Estas futebolistas, que golearam a poderosa Islândia esta noite (4-1) e que mantêm a possibilidade de ir ao Mundial 2023, representaram os portugueses do jeito que suspiram os suspiros. Isto é, jogando futebol e marcando golos.
Mas este desfecho belo, belo teve uma história densa no retrovisor. Viu-se tudo o que marca os grandes jogos. Boas combinações, correria, duelos, ideias, choques, o senhor VAR a reverter golo e penálti – ou seja, drama –, bolas nos ferros, dribles, outros tipos de céus e, claro, angústias várias. E prolongamento. Tatiana Pinto foi eterna, Diana Silva com categoria semeou a ideia arrojada e Kika, artista que compreende o tempo, foi uma agente da descomplicação (que chegou quase fora de horas).
Portugal entrou com o mesmo 11 que derrotou a Bélgica, na quinta-feira. Paços de Ferreira, perante a organização e rijeza da Islândia, transformou-se na capital da mobilidade. O losango lusitano foi ganhando um gostinho por manter a bola. Dolores Silva, a capitã, ia participando mais no meio-campo alheio do que no início das jogadas. Tatiana Pinto, quem sabe com uma energia imortal, e Fátima Pinto, que jogavam por fora no miolo, assinariam uma exibição importante, com qualidade com bola e sobretudo com disponibilidade para tapar buracos e morder a toda hora. Andreia Norton, importante com as belgas, esteve discreta desta vez.
Na frente estavam Diana Silva e Jéssica Silva, que foi a maior pedra nas botas das futebolistas islandesas, a defenderem normalmente num 4-5-1. Jéssica, que normalmente agarra as luzes e os olhares pela arrojo e coragem que lhe escorrem das chuteiras, estava focada em ser decisiva. Criou inúmeras jogadas de perigo, rematou várias vezes, uma delas de primeira, para grandíssima defesa de Sandra Sigurðardóttir. Fez quase sempre tremer a defesa islandesa.
Hernani Pereira | FPF
Atrás dava a sensação de haver muito respeito pela adversária, principalmente pela contenção de Ana Borges e Joana Marchão, as jogadoras que jogam perto da linha de cal (e supostamente fundamentais num losango). Isto acontecia sobretudo pela ação da categórica e incansável de Sveindís Jane Jónsdóttir, uma extrema do Wolfsburg. No centro da defesa, Carole Costa e Diana Gomes, que jogava na sua cidade, estiveram quase sempre insuperáveis, anulando Berglind Thorvaldsdóttir, a avançada do PSG. Os duelos aéreos iam favorecendo as visitantes. Na sequência de uma bola parada, Gunnhildur Yrsa Jónsdóttir enviou uma bola ao poste da baliza de Patrícia Morais.
Ao golo da Islândia, já na segunda parte, invalidado pelo VAR, Portugal respondeu com uma bola no ferro. Tatiana Pinto cabeceou timidamente e quase foi feliz. A partir daqui, a lenda de Tatiana só cresceria. Estaria em todo o lado, a morder como ela tanto morde, sempre disponível para tocar e, apesar do cansaço, para manter a fineza técnica e a chegada à frente.
O golo de Portugal chegou de penálti, aos 52’, por falta de Áslaug Gunnlaugsdóttir sobre Jéssica Silva. Carole Costa assumiu e enganou a guarda-redes. Depois, tocou no rosto de quem festejou com ela com um carinho maternal. Mas o empate chegou pouco depois, aos 59’, e de bola parada, pois claro. Glódís Perla Viggósdóttir, do Bayern Munique, desviou ao primeiro poste.
Não se notava muito a superioridade numérica. Não se tomavam as melhores decisões. Os duelos continuavam a ser duros. E as linhas islandesas subiram um pouco, não havia assim tanto espaço por dentro. Talvez por isso, Andreia Jacinto entrou pela esgotada (e tocada?) Fátima Pinto, a autora do golo importante contra a Bélgica.
Antes do VAR reverter mais um penálti para Portugal, as jogadores portuguesas tentavam serenar e ter mais a bola. Norton estava desaparecida, entraria pouco depois Kika Nazareth, aos 83’. Jéssica continuava a ganhar metros, derretendo o ânimo alheio. As 5.500 pessoas naquele estádio, em Paços de Ferreira, vislumbrariam o que é arte líquida: as ações de Kika tinham e teriam quilos de intenção venenosa. Mas, e apesar de tudo, o sufoco final foi em vão e haveria prolongamento.
Hernani Pereira | FPF
Quando Jéssica tocou para Kika, já com dois minutos dentro dos 30 que teríamos, esperava-se tudo. Havia uma avenida imensa pela esquerda. Kika esperou e Diana correu. Kika tocou e Diana, com a memória de todos os treinos e jogos que já fez, foi paciente. Desviou para dentro, ultrapassou uma defesa. Depois, simulou e a guarda-redes sentou-se. A seguir, tocou com a serenidade e candura que normalmente são testemunhadas na realeza. A celebração foi tudo e tanto.
Ana Borges, amarelada há muito, continuava a fazer cortes decisivos. Ana Capeta já estava em campo, por Jéssica Silva, revelou um quase heroíco compromisso. Diana quase marcou outro. E Portugal marcou mesmo: Andreia Jacinto, móvel e soltinha, apareceu pela direita e cruzou. Tatiana Pinto, talvez a melhor futebolista em campo, porventura tentou dominar a bola, rodando, mas aquela ferramenta redonda, musa de tantos poemas, preferiu mesmo foi beijar-lhe o calcanhar e fazer dela a mulher mais feliz do mundo. A bola, com uma alma imensa, também tem gestos destes. As jogadores deixavam detalhes bonitos, como a forma como festejavam ou amparavam falhas, com beijos, abraços e cumplicidades memoráveis e emocionantes.
Diana Silva voltou a marcar, mas estava fora de jogo. A goleada estava iminente, havia espaço por todo o lado. Convém vincar que a Islândia, com 10 desde os 52’, foi de uma dignidade imensa e tentou tudo até ao último segundo. Já muito perto do tal derradeiro apito da árbitra, que transformaria finalmente esta noite num momento muito especial, Kika disse “esperem”. Não disse, mas foi como se dissesse.
Tatiana Pinto voltou a estar na jogada. Kika recebeu na área, com a sola, atenção, como que convidando alguém a tirar-lhe a bola. Travou a bola com a bota, sentando uma adversária. Desequilibrou-se, talvez seja demais, deitou tudo a perder, pareciam dizer os braços abertos de Carole Costa, lá ao longe. Kika recuperou, voltou a enfeitiçar a bola e, mais uma vez, fez um gesto cheio de engano, puxando para o lado, sentando outra defesa. A seguir, bateu com o pé direito, que vê mais do que 30 olhos, e celebrou como uma garota que faz o que mais gosta. Quatro-um.
Graças ao formato pouco habitual do play-off e da caminhada para o Campeonato do Mundo de 2023, na Austrália e Nova Zelândia, as vitórias com Bélgica e Islândia, número 19 do ranking FIFA, não foram suficientes. Pelo menos, para já. Segue-se agora um derradeiro play-off intercontinental, em fevereiro, com outras nove seleções, todas com rankings inferiores ao das portuguesas.
Enfim, o sonho está vivo. E a imparável vontade de ser feliz também.