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Fórmula 1

Fórmula mágica: entre velhos fãs e cristãos-novos, a F1 está de volta

A nova época da Fórmula 1 arranca no domingo (15h, Sport TV) e Pedro Boucherie Mendes escreve como na vida em velocidade nesta era da Netflix, onde os pilotos procuram todos a mesma coisa, andar extremamente depressa não é muito difícil: mas é mais difícil do que parece

Pedro Boucherie Mendes

Mark Thompson/Getty

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A Fórmula 1 começa a sério neste domingo, no Bahrain às três da tarde em Portugal continental.

Os vinte carros das dez equipas começam uma temporada sem que haja grandes e óbvias expectativas. O grande favorito é o holandês Verstappen, que conduz um Red Bull, com um powertrain (ou seja, um motor) Red Bull, que na prática é um Honda. De seguida, talvez a Mercedes e talvez a Ferrari (nos dois casos com motores próprios) são os únicos candidatos ao pódio e, quem sabe, a ganhar uma ou outra corrida. No ano passado, em 66 posições de pódio (três por cada uma das 22 corridas), apenas uma equipa que não estas três conseguiu lá chegar (foi a McLaren, em Imola).

Posto isto, a expectativa é grande, enorme, sem que se saiba muito bem o motivo a não ser esse de a Fórmula 1 se ter tornado num desporto excitante.

Nos últimos anos, os fãs antigos, os que ficavam em casa ao domingo para ver as corridas – ou até às sextas e sábados, para ver os treinos e as qualificações – viram-se rodeados pelos cristãos novos deste desporto, criados quase só inerência da série “Drive to Survive”, que há cinco temporadas estreia na Netflix em vésperas de cada nova época. Sendo um documentário fortemente editado, é na verdade uma doc-reality, naquele modo fly on the wall, que faz os espetadores lambuzarem os dedos com revelações, conflitos, intrigas e espetacularidade.

Para lá do jargão irritante, o que isto quer dizer é que alguém conseguiu convencer equipas, pilotos, a Netlix e os proprietários da Fórmula 1 (um fundo de investimento chamado Liberty) a concordarem em produzir e emitir um documentário sobre Fórmula 1, até então um desporto de elite, que na origem era feito por e para homens que tivessem (ou desejassem ter) um Rolex no pulso. O que aconteceu é fascinante. Hoje, a Fórmula 1 vale muito mais dinheiro, as equipas também, os pilotos são muito mais reconhecidos e há muitíssimo mais mulheres e mais jovens a quererem saber da Fórmula 1. E por causa disso, uma época dura quase um ano inteiro e na prática para aqueles que gostam de F1 a sério torna-se muito complicado marcar um almoço a um domingo.

Clive Mason/Getty

Em 2023 viveremos o segundo ano das mudanças regulamentares supostamente revolucionárias que se deram no ano passado e que fundamentalmente tornaram os carros mais simples, pelo menos à vista desarmada. Sendo uma competição em que todos as equipas recebem o mesmo livro de regras e são livres de desenhar e construir os carros como entenderem (dentro dessas regras), é inacreditável como consigam andar tão perto uns dos outros, por vezes com diferenças de centésimos ou milésimos de segundos.

É tão inacreditável e inconcebível que os comentadores e os fãs passam por cima disso e continuam a conversa como se nada fosse. Para que se perceba melhor, por ser assim e por causa destas regras e regulamentos, nenhuma das equipas sabe porque é que a Red Bull é tão melhor (como a Mercedes foi durante anos). Se soubessem, fariam a mesma coisa. A maneira que existe para nivelar a competição de repente é quase sempre através de mudanças das regras, por isso já há muita gente com os olhos postos em 2025, altura em que os motores serão diferentes.

Até lá, as equipas terão de evoluir para apanhar a Red Bull. Custa tempo, dinheiro, recursos humanos, requer apostas, sorte e circunstâncias. Lando Norris, o piloto muito promissor da McLaren e que nunca venceu um grande prémio, terá cometido o erro de ter assinado um contrato longo com a equipa, porque não se prevê que a McLaren apanhe a Red Bull tão cedo. Norris corre o risco de não ganhar uma corrida sequer na sua carreira, a não ser que consiga ir para uma equipa que lhe dê maquinaria capaz disso.

Engenheiros e técnicos de aerodinâmica procuram essencialmente tempo e para isso perseguem performance. Se reparar numa qualquer imagem de um carro deste ano, fique a saber que as partes pretas são ausência de tinta e não motivação artística. Porquê? Porque a tinta tem peso e quanto mais leves forem os carros, mais depressa chegam à meta.

Os pilotos procuram a mesma coisa: tempo. Ou seja, procuram travar o menos possível e quando têm de o fazer, procurarão travar o mais tarde que conseguirem, sempre uns metros mais à frente.

Com carros diferentes, adequam a sua forma de pilotar às características do carro, da temperatura da pista, ao vento, aos pneus ou até aos modos de motor. Ao contrário do que acontecia dantes, as equipas têm hoje um número limitado de unidades de potência e não podem andar sempre a fundo, terão de pensar que partes daquele motor têm de aguentar quatro ou cinco grandes prémios.

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Dan Istitene - Formula 1

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Mark Thompson/Getty

Ao nível dos pilotos de Fórmula 1, não é difícil andar extremamente depressa. Mas é mais difícil do que parece: andar extremamente depressa durante 70 voltas, não falhar no arranque, saber ultrapassar no menor espaço de tempo possível, ter um estilo de condução que poupe pneus (os da frente e os de trás, os da esquerda e os da direita), saber fazê-lo à chuva, ao sol, de noite, de dia, em pistas largas, estreitas, curtas ou longas. Para resumir, a consistência é o mais importante numa equipa e num piloto de Fórmula 1, controlar bem as mil e uma variáveis é fundamental.

Por exemplo, o que fazer quando dois colegas de equipa se detestam e não obedecem às ordens do chefe de equipa que pede a um que deixe o outro passar? No ano passado, na Red Bull, Max Verstappen não quis saber do seu colega Pérez e não fez nada para que este conseguisse maior probabilidade de ficar em segundo no Mundial. Duas notas: Max disse-o explicitamente durante a corrida através do rádio e quando já era campeão do mundo. Podia ter ajudado Pérez que nada lhe aconteceria. Na verdade, não ajudou Pérez e nada lhe aconteceu, é hoje o mais bem pago piloto da modalidade, corre para um terceiro título e tem a História à sua frente, destronando Lewis Hamilton ou Michael Schumacher como os mais titulados de sempre.

Como aquelas pessoas que viveram a vida a passar o verão numa praia tão incrível como vazia, os velhos fãs da Fórmula 1 têm agora de conviver com multidões que pouco ou nada querem saber dos tempos antigos. Tal como Max Verstappen.