Treinadores, treinem os tenistas (quase) à vontade: ATP vai autorizar o coaching a partir de julho e até o US Open se juntou à “experiência”

Editor de Desporto
O ato de conversar é dar e receber. Implica uma troca, que perguntas e respostas vão e voltem não necessariamente vindas sempre da mesma boca, mas pressupõe que haja mais do que um falador. Mas e se, entre duas pessoas e durante 20 segundos, uma falar e a outra se limitar a ouvir, anuindo em concordância com a cabeça, isso constitui uma conversa? Será um curto monólogo? Ou é uma instrução de sentido único?
Questões como estas talvez possam surgir a partir de 11 de julho e até ao final do ano em torneios ATP, porque, esta terça-feira, a entidade que rege o principal circuito do ténis masculino anunciou uma “experiência” para a segunda metade da época que fará cócegas ao tradicionalismo que acompanha a modalidade — vai permitir que os treinadores deem instruções aos tenistas durante os jogos, algo proibido desde há muito.
O afamado coaching existia nas regras da ATP, até hoje, como um malefício punível e a evitar pelos jogadores. “Comunicações de qualquer tipo, audíveis ou visíveis, entre um jogador e um treinador podem constituir coaching”, lia-se no rulebook da entidade, que dava poderes aos árbitros para inicialmente darem um warning (aviso) ao tenista caso detetassem uma instrução, podendo depois chegar à retirada de pontos ou até de jogos conquistados se houvesse reincidência durante o jogo.
Na segunda fatia desta época, um treinador poderá corrigir ou aconselhar a partir do seu ‘canto’ — lugar no estádio destinado à equipa técnica do respetivo tenista — e só quando o seu jogador estiver desse lado do court. Depois, terá de cumprir uma série de regras com que a ATP vai testar esta permissão. Qualquer instrução “não pode interromper o jogo ou criar um obstáculo ao adversário”, nem deve acontecer se “o jogador, por alguma razão, sair do campo”.
Todos os “gestos” e “coaching não-verbal” é “permitido a qualquer momento” e a estas nuances junta-se outra que será a mais dúbia quando a experiência tiver ordem de soltura no ténis masculino.
Porque a parte verbal desta experiência “pode consistir” só de “poucas palavras e/ou frases curtas” e “conversas não são permitidas”. Ou seja, os tenistas não poderão responder, perguntar e sequer reagir às instruções? Se for um pequeno monólogo do treinador? E o que são “poucas” frases curtas? Duas, três ou quatro, cinco? O comunicado da ATP em nada específica o que deve ser encarada como “conversa”.
Mas informa, contudo, que o US Open também participará neste teste do off-court coaching, como lhe chama a entidade. Será o primeiro Grand Slam a fazê-lo na história do ténis — os quatro majors regem-se autonomamente, fora da esfera da ATP —, que historica e tradicionalmente limita a participação dos treinadores até ao momento que os jogadores entram em campo. O objetivo de honra não escrito sempre foi estimar o conceito de modalidade individual e prevenir injustiças entre tenistas: quem convive nos 10 ou 20 primeiros lugares do ranking tem prémios de jogo e patrocinadores que lhes permitem contratar treinadores ou fisioterapeutas a tempo inteiro, coisa que nem sempre acontece quanto mais se for descendo na cadeia alimentar do ténis.
Ser o US Open o Grand Slam que se juntou à ATP neste teste a um formato de coaching é curioso pelo facto de ter acolhido a polémica mais recente e de maiores estribeiras que aconteceu no ténis mundial.
Em 2018, Carlos Ramos deu um coaching warning a Serena Williams durante a final em Nova Iorque devido a gestos feitos por Patrick Mouratoglou, então o seu treinador, decisão que enfureceu a americana e a fez discutir, repetidamente, com o árbitro português — a dona de 23 majors chegou a acusá-lo de sexismo, já depois de perder o encontro para Naomi Osaka.
A tenista ainda seria penalizada mais duas vezes, por destroçar a raquete contra o chão e chamar “ladrão” ao juiz de cadeira. Perdida a final onde a japonesa vencedora, com a timidez que lhe é reconhecida, pediu desculpa por ganhar à ídolo, Serena Williams seria multada em 17 mil dólares (cerca de 16 mil euros) pela conduta em court e, para seu espanto, o treinador admitiria ter-lhe dado instruções durante o jogo.
Patrick Mouratoglou disse que “100% dos treinadores” faziam coaching “em 100% dos jogos” e apelou a que se “parasse com esta hipocrisia”. O francês até considerou “estranho” que Carlos Ramos fosse “o árbitro na maioria das finais” jogadas por Rafael Nadal, onde o seu tio e então ainda treinador lhe dava instruções “em todos os pontos e nunca recebeu um aviso”. No ano seguinte, o treinador garantiu à “ESPN” que faria o mesmo de novo — estimando já só que “90% dos treinadores fazem coaching” e que tal “deveria ser permitido”.
Apesar da alergia tradicional a treinadores poderem dar indicações ou corrigir tenistas durante o jogo, a decisão da ATP não é desértica na vida com uma raquete na mão: quase ano e meio depois da tal final do Grand Slam americano, a WTA autorizou o coaching mais ou menos no mesmos moldes agora definidos pela ATP. Já em 2008, a entidade que regula o circuito feminino autorizara as tenistas a chamarem o treinador ao court uma vez por set.
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