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As altas luzes do talento de Nick Kyrgios

As altas luzes do talento de Nick Kyrgios
Thomas F. Starke/Getty

Bolas respondidas quase à chapada, esbofeteadas com pancadas sem preparação, ou uma direita batida por trás costas, foram gestos com que o australiano venceu Stefanos Tsitsipas para, esta sexta-feira, jogar os quartos-de final em Halle, num dos mais importantes torneios de relva pré-Wimbledon. Eis o volátil Nick Kyrgios, um dos tenistas menos convencionais e constantes do circuito, de novo a mostrar o melhor que tem

As altas luzes do talento de Nick Kyrgios

Diogo Pombo

Editor de Desporto

Os highlights são um fenómeno abonatório para a grande maioria das fatias do bolo de desportistas, chegam até a ser quase um abono de reputação para muitos face ao que se propõem a ser: uma colagem de pedaços soltos de brilhantismo de um certo atleta, uma miscelânea de melhores momentos que compõe um vídeo feito para apenas mostrar o maior dos brilhos reluzentes do futebolista, do basquetebolista, do surfista ou do tenista em causa. De certa forma, são também mágicos devido à sua génese ser tão clara enquanto é tão ignorada por quem os consome.

Saísse Marty McFly do seu DeLorean em 2022, vindo de décadas atrás e de um tempo pré-internet, para lhe mostrarem a invenção do YouTube com um exemplo de highlights, ele julgaria que Nick Kyrgios seria um deus entre os tenistas se o vídeo apresentado fosse do australiano a derrotar Stefanos Tsitsipas na relva de Halle, na Alemanha.

Cheio de bolas incríveis e batidas quase à chapada, sem preparação e com gestos tecnicamente anti-escola que treinadores teimariam em não deixar miúdos replicar, agarrando na raquete com um braço bambo e tudo lhe saindo por instinto, desprezando gestos técnicos retirados de manuais do ténis, Nick Kyrgios levou dois sets depois do grego lhe ficar com o primeiro. E fê-lo ao seu estilo. No vídeo do melhor do australiano neste jogo consta uma dessas bolas esbofeteadas por ele, um winner tenso de fora para dentro do court, e uma direita batida por trás das costas que desamparou Tsitsipas e o forçou a devolver a bola para fora.

Kyrgios estava em dia de as suas ‘altas luzes’ reluzirem sem filtros.

O que o vídeo não mostrou, nem se propunha a tal, foram os momentos que ao longo dos 27 anos do australiano sempre acompanharam o tenista que balanceia o seu talento sem rédeas com uma predisposição voraz para a falta de auto-controlo.

Após perder o primeiro set, Nick destruiu uma raquete ao batê-la repetidamente contra o seu banco posto ao lado do campo; já durante o segundo parcial (ganhava por 2-0), pôs-se a discutir com o árbitro quando este o advertiu por considerar que retardou o serviço de Tsitsipas. “Ao Rafa [Nadal] não dizem nada. Cada vez que jogamos tenho de esperar por ele”, ouviu-se do australiano, quando reagiu ao warning do juiz de cadeira.

Kyrgios ganharia para avançar rumo aos quartos-de-final de Halle, um torneio ATP 500 que se estende pela relva antes de o circuito chegar a Wimbledon, a terra prometida dos tapetes verdes do ténis. Vai defrontar, esta sexta-feira, Pablo Carreño Busta, mais amigo do pó de tijolo como bom espanhol que é e sobre quem, há quase dois anos, o australiano escreveu, no Twitter: “Se a terra batida não existisse, o gajo nem estaria perto do top 50”. O seu próximo adversário é o 19.º classificado do ranking e Kyrgios ocupa a 65.ª posição.

Essa escritura que a internet para sempre guardará, porém, é exemplo do que um compêndio de ‘lowlights’ do australiano poderia incluir, mesmo que a definição de tal vídeo possa ser difícil de precisar — os segundos que um tenista discute com árbitros e adversários, serve por baixo, responde ao público e faz caras de espanto com as próprias pancadas que logra, devem ser considerados maus momentos?, ou são laivos de frescura numa modalidade onde o formalismo impera e a tradição parece, às vezes, um garrote contra o progresso?

Nick Kyrgios tem 23 vitórias na carreira contra jogadores do top-10 do ranking ATP
picture alliance

Nick Kyrgios não é, nunca foi um jogador convencional. O próprio admite-o há muito, sendo já quase uma sombra que o acompanha. Em tempos, disse preferir ver e jogar basquetebol a ténis — “não amo este desporto”, confessou quando tinha 20 anos — e a cândida postura com que costuma falar voltou a surgir em Halle, depois de ganhar a Tsitsipas: “É um dos melhores jogadores do mundo, terá resultados incríveis e, tenho a certeza, muitos e muitos Grand Slams. Não sei se posso dizer o mesmo de mim, mas estou feliz por ainda conseguir produzir este nível nos torneios em que jogo”.

A modéstia do tenista natural de Camberra, a capital da Austrália, veio alguns sons de exagero: tem 23 vitórias na carreira contra jogadores do top-10 do ranking, apesar de nunca ter estado nessa dezena de melhores tenistas da hierarquia. Quando quer e se sintoniza com ele próprio, Kyrgios é capaz de produzir coisas espetaculares no ténis.

O australiano até já tem um Grand Slam conquistado este ano, em Melbourne, onde espantou quem o viu a dividir campo com o compatriota Thanasi Kokkinakis para ambos vencerem em pares no major da terra dos cangurus. Nick Kyrgios vinha de uma lesão que o parou durante quatro meses e já então não trabalhava com um treinador, opção que tem mantido durante grande parte da carreira que, por estes dias, já não o tem a aparecer no court assim tantas vezes.

O torneio de Halle é apenas o quinto em que joga este ano: antes de chegar às meias-finais em Estugarda, na semana passada, não competia há dois meses. O tenista do brinco sempre posto na orelha, a caminho do segundo braço integralmente coberto por tinta e com equipamento a lembrar a ausência de alças da NBA, aplica no seu calendário a parcimónia que raramente se lhe observa no comportamento em campo.

Esses momentos tão Nick Kyrgios não costumam aparecer nos seus highlights, mas são esses que muito compõem o tenista que o australiano é.

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