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Expresso

Organizações humanitárias apelam que FIFA pague “no mínimo” €418 milhões em indemnizações aos trabalhadores migrantes do Mundial 2022

Por ter "contribuído para a violação dos direitos humanos em larga escala no Catar", o organismo máximo do futebol deve canalizar "uma verba não inferior ao prémio monetário da competição" para compensar aqueles que sofreram desses abusos, incluindo compensações às famílias dos trabalhadores mortos. Amnistia Internacional Portugal pede que "agentes desportivos e também políticos" nacionais "tomem uma posição"

Pedro Barata

Matthew Ashton - AMA/Getty

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Um grupo de 10 organizações humanitárias redigiu uma carta aberta, dirigida a Gianni Infantino, presidente da FIFA, apelando a que a entidade máxima do futebol internacional pague cerca de €418 milhões em indemnizações e compensações aos trabalhadores migrantes — e respetivas famílias — que sofreram abusos de direitos na construção das infra-estruturas para o Mundial 2022, que se realizará no Catar entre 21 de novembro e 18 de dezembro. A missiva é assinada pela Amnestia Internacional, Human Rights Watch, FairSquare, The Army of Survivors, Building and Wood Workers' International, Business & Human Rights Resource Centre, Equidem, Football Supporters Europe, Independent Supporters Council e Migrant-Rights.org.

A Amnistia Internacional escreve que "não deveria ser um segredos que os trabalhadores migrantes no Catar enfrentavam abusos laborais sistemáticos e exploração". Ao atribuir a organização do Mundial ao país do Médio Oriente, prossegue a Amnistia, a FIFA "contribuiu para a violação dos direitos humanos em larga escala no Catar", pelo que, "em linha com as normas internacionais", a entidade liderada por Infantino "tem de garantir compensações pelos abusos ligados ao Mundial 2022", incluindo os que afetaram "trabalhadores que ajudaram na construção de estádios, transportes, alojamentos ou outros projetos" relativos ao torneio.

As organizações humanitárias entendem, assim, que a FIFA, "em conjunto com o Catar e outros parceiros", deveriam "criar um programa para indemnizar quem sofreu abusos" desde que, em dezembro de 2010, o Mundial foi atribuído ao estado do Médio Oriente. O valor de €418 milhões, indicado como "quantidade mínima" para estas compensações, é o mesmo do prémio monetário que será distribuído às seleções participantes. A Amnestia Internacional escreve que "será fácil" à FIFA utilizar o referido valor, dado que a entidade de Infantino "lucrará €5,7 mil milhões com a competição e tem mais de €1,5 mil milhões em reservas".

Recorde-se que o Mundial do Catar, cujo processo de atribuição originou diversos casos de suborno e corrupção que evidenciaram práticas criminosas no topo do futebol internacional, tem sido manchado por este tipo de casos. Em fevereiro de 2021, o “Guardian” informou que 6.500 trabalhadores da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka tinham morrido desde que foi atribuída ao Catar a organização do torneio.

Em abril de 2022, um relatório publicado pela Amnistia Internacional indicava que no país há profissionais de segurança que trabalham em “condições semelhantes a trabalho forçado”, estando vários deles a exercer funções em projetos ligados ao Mundial 2022. Num relatório intitulado “Eles acham que nós somos máquinas”, a Amnistia documenta entrevistas a 34 pessoas que trabalham ou trabalharam no sector da segurança privada, em oito empresas diferentes do Catar.

Este estudo, feito entre abril de 2021 e fevereiro de 2022, seguiu-se a uma outra investigação feita entre 2017 e 2018. As conclusões de ambos os relatórios são coincidentes, sugerindo que “os abusos são sistémicos e não acidentes isolados”. Entre as principais acusações, conta-se o desrespeito pelos períodos de descanso, racismo ou punições face a ausências por doença.

A questão das indemnizações aos trabalhadores migrantes que morreram tem sido, recorrentemente, levantada. Segundo investigações como a do "Guardian" ou relatórios da Amnistia Internacional, a organização do Mundial não investiga ou atribui a "causas naturais" a maior parte das mortes ou diferentes incidentes ocorridos com trabalhadores, o que impossibilita o pagamento de compensações às famílias.

Didarul Islam, irmão de Mohammad Kaochar Khan, um trabalhador do Bangladesh que foi encontrado morto na cama, no Catar, a 15 de novembro de 2017, diz à Amnistia Internacional que "todos os sonhos" da família "se desvaneceram" quando o seu irmão faleceu. "Ele esperava melhorar as condições de vida de todos nós, mas a maior parte do salário que ganhou lá foi usado para pagar os custos da imigração".

Na carta assinada pelas 10 organizações humanitárias, mencionam-se, além das compensações por mortes, o reembolso de "taxas de recrutamento e imigração" — que em muitos casos rondavam os 1.200 euros —, esquemas "ilegais" aplicados por diversas empresas para recrutar trabalhadores, sobretudo do sudeste asiático, para o Catar. Daí que se considere que a "quantia justa" a aplicar seja superior aos mencionados €418 mil milhões, devendo haver "discussões com sindicatos, organizações da social civil e a Organização Internacional do Trabalho, entre outros" para chegar a essa soma monetária.

Agnes Callamard, secretário-geral da Amnistia Internacional, diz que a "FIFA fez muito pouco para prevenir ou mitigar os riscos de abuso de direitos humanos no Catar", desde que, em 2010, a prova foi atribuída, tendo a organização "fechado os olhos", considera Callamard. "É muito tarde para apagar o sofrimento causado, mas a FIFA e o Catar podem e devem agir para dar compensações e prevenir abusos futuros", opina o secretário-geral da Amnistia.

No congresso da FIFA, realizado em março, Infantino apresentou um vídeo que fez de intervalo entre duas partes do seu discurso final. As imagens projetadas no ecrã gigante mostravam elogios às “condições de segurança” e às “inspeções feitas” à construção dos estádios e demais infra-estruturas.

"Tomem uma posição"

A 31 de março, a presidente da federação da Noruega foi ao Congresso da FIFA exigir justiça para os trabalhadores migrantes do Mundial; na Dinamarca, os patrocinadores da seleção cederam espaço nos equipamentos a mensagens de direitos humanos. Em Portugal, pouco ou nada se tem ouvido da voz de responsáveis federativos quanto a este tema.

Em declarações à agência Lusa, a Amnistia Internacional Portugal pediu que “agentes desportivos e também políticos” nacionais "tomem uma posição". Através de Paulo Fontes, diretor de comunicação e campanhas, a organização classificou como "importantíssimo" que os agentes desportivos e políticos "compreendam a sua importância e relevância" e que "tomem uma posição clara" de "colocar os direitos humanos em cima da mesa".

Paulo Fontes considera ser essencial "fazer pressão constante" sobre as autoridades do Catar, a qual "pode vir de todas as frentes", pedindo "envolvimento diplomático, com o Governo e presidente", bem como "da Federação Portuguesa de Futebol". Para a Amnistia Internacional Portugal, o Mundial "tem outras dimensões que não só desportivas", com "muitos interesses" do ponto de vista "económico e político" em jogo.