O edifício que se levanta das botas é longilíneo e complexo, embora seduzido pela simplicidade. Às vezes é elegante, noutras um mero criado da utilidade, capital sentimental de um grupo. Descobre e tapa espaços com uma generosidade valorosa e aproxima os colegas de equipa como um lógico e razoável diplomata que entende de distâncias e timings como nenhum outro. Gonçalo Ramos, um rapaz de Olhão, é um modesto e silencioso trunfo na mão do Benfica, a cola elástica e a dúvida constante semeada nas miradas dos defesas adversários.
Há dias, antes da segunda mão da eliminatória com o Liverpool para a Liga dos Campeões, o avançado de 20 anos surpreendeu e admitiu algo sobre Thomas Müller, do Bayern de Munique, uma espécie de espelho. “Penso que tenho algumas semelhanças com ele e é também um exemplo para mim. Tendo em conta o que eu faço e o que ele faz, gosto de ser comparado com ele. É uma posição em que me sinto confortável no jogo. Sempre joguei nessa posição desde que comecei”, disse ao site da UEFA.
Supostamente talhado para ser um número 9 pistoleiro, pela carapaça que se espreguiça importantemente na atmosfera e pela relação cúmplice com o golo, Gonçalo Ramos descobriu nos juvenis os encantos da função híbrida que desempenha no Benfica de Nélson Veríssimo. O responsável foi Renato Paiva, agora no Independiente del Valle, do Equador: “O grande boom que o Gonçalo tem é nos sub-17 connosco, quando começa a jogar atrás do avançado e começa a ser o melhor marcador. Era uma coisa inacreditável”, recorda. “Houve treinadores adversários que me diziam: ‘Porra, nunca sei se o Gonçalo joga a ponta ou a médio’. Eu dizia ‘exato, é esse o fator surpresa’ [risos]. A capacidade de trabalho e de esforço que ele tem, o espírito de sacrifício, de ajudar, de participar, de não ter conta-quilómetros… é uma coisa incrível”, reforça.
Mas também há futebol, muito futebol, na cabeça e nos pés do algarvio, filho de Manuel Ramos, um avançado que fez várias épocas na 1.ª Divisão, no Farense e no Salgueiros. Afinal, a comparação com Thomas Müller tem algum fundamento? Sim, diz o homem que o treinou durante quase três anos, nomeadamente na “qualidade da finalização e na ocupação de espaços”, algo que se estende aos momentos com e sem bola.
Certa vez, depois de um jogo da Youth League, em Munique, os jovens futebolistas do clube lisboeta foram ver os seniores contra o Bayern. “Eu estava sentado ao lado do Tiago Dantas e de alguns jogadores e disse: ‘Façam-me só um favor: durante algum tempo olhem só para o Müller e não olhem para a bola, a ver se percebem o que quero dizer’. Realmente, os miúdos ficaram encantados. É um dos jogadores que acho que merecia muito mais destaque do que teve”, revela.