O túnel que William Carvalho fez às adversidades: “Ainda não tínhamos visto esta versão dele em Espanha”
O português tem sido um dos destaques da excelente temporada do Betis, única equipa espanhola ainda a disputar três competições. Depois de anos de críticas e irregularidade, o grande golo de William ao Rayo culminou meses repletos de elogios para o médio
Em Vallecas respira-se um ar especial. Em distância contada pelo relógio, este bairro de Madrid não fica muito longe do centro da capital espanhola, dos seus edifícios reais e senhoriais. Mas, em distância medida pelo sentimento, Vallecas fica bem longe do toque faustoso que muitas vezes se encontra em Madrid. Afinal de contas, não é por acaso que muitos dos que lá vivem dão ao bairro um muito sugestivo nome: República Popular Independiente de Vallekas.
Em Vallecas não têm especial apreço por reis nem nobres. No entanto, num dos jogos mais importantes da história recente do Rayo, um dos centros da vida daquela gente livre de espírito, surgiu em Vallecas um gesto técnico que poderia ser emoldurado e exposto num salão elegante de um palácio real. Ou, para se enquadrar com o cenário, colocado numa qualquer parede dos bares que rodeiam o estádio, ao lado de bandeiras republicanas ou de símbolos anti-fascistas.
No minuto 68 da primeira mão da meia-final da Taça do Rei entre o Rayo e o Betis, a bola chegou a William Carvalho à entrada da área. Na zona onde todos se apressam, o português foi fiel a si mesmo. Subtil e sereno, deixou que o central à sua frente se aproximasse. Catana, o rival de William, percebeu o que ia na cabeça do médio dos andaluzes, fechando as pernas. Mas o mais incrível das obras de arte é que há qualquer coisa de inevitável nelas.
Com Catana à sua frente, Carvalho fez-lhe a bola passar por entre as pernas, num túnel quase em câmara lenta, preciso mas suave, como que descrevendo a personalidade futebolística do seu autor. Perante a saída do guardião, o português finalizou com essa mesma tranquilidade, como se não estivesse perante a iminência de assinar o melhor golo da sua carreira.
A bola entrou, William sorriu, o banco do Betis levou às mãos à cabeça. Atrás da baliza do outro lado, lê-se “sempre na nossa memória”. Na Taça do Rei, em plena
República Popular Independiente de Vallekas, acabava de acontecer um golo que ficaria na recordação de monárquicos e republicanos.
O golo de William Carvalho levou a uma chuva de elogios em Espanha. A “Marca” escreveu que o português se “transformou em Messi” naquela ação; o “AS” considerou que o gesto do médio entrou “diretamente no Olimpo dos melhores túneis do futebol”; Roberto Palomar, um dos cronistas de maior prestígio do país, escreveu na “Marca” que a ação de William pertence à “categória” dos “túneis suaves”, aqueles que, depois de feitos, “soam como quando se fecha a porta de um Bentley”.
A proeza do ex-Sporting em Vallecas colocou, definitivamente, o momento de forma do centrocampista no foco mediático espanhol. À sua quarta temporada no Betis, e depois de campanhas irregulares e com algumas críticas pelo meio, entende-se no país vizinho que estamos a viver uma espécie de renascimento de William.
O espanto pelo rendimento de William, peça fundamental num Betis a realizar uma grande temporada, advém do facto de, há bem pouco tempo, o internacional português ter estado com um pé fora do clube andaluz. Contratado ao Sporting, em 2018, por 16 milhões de euros mais quatro em objetivos, o impacto do médio no Betis foi decrescendo: em 2019/20 só foi titular por 11 vezes e em 2020/21 só jogou de início em 14 ocasiões.
(Foto: Diego Souto/Quality Sport Images/Getty Images)
No começo desta temporada, a porta de saída parecia aberta, como recorda Joaquín Piñero, jornalista sevilhano que acompanha a atualidade do Betis: “No final do mercado de verão, William chegou a estar nas instalações do Betis, porque o clube queria vendê-lo ao Fulham. Se tivesse surgido uma oferta melhor, ele teria saído”, diz Joaquín.
“As três primeiras temporadas de William em Espanha foram pobres, e às vezes más”, opina Miguel Quintana, diretor dos programas “La Pizarra de Quintana”, na “Radio Marca”, e “Mister Underdog”, no Youtube. O comentador indica que o menor rendimento do centrocampista se devia a que “o Betis não tinha um verdadeiro médio defensivo”, o que levava a que os sevilhanos “colocassem William nessa função”, pedindo ao português “coisas que não são compatíveis com o seu futebol”.
“Carvalho teve encontros brilhantes nas suas primeiras épocas no Betis, como em Camp Nou em 2018, mas no geral vimo-lo a sofrer por questões coletivas. Ele não é um médio recuperador que defenda bem e se encarregue dos primeiros passes”, indica Quintana, numa ideia partilhada por
Piñero, que vai mais longe ao entender que “os adeptos, a imprensa e talvez alguns dentro do clube não conheciam William”, achando que, por ser “um médio alto e encorpado”, era um “especialista defensivo”.
“Ele não foi feito para defender espaços grandes e andar a travar transições em velocidade. Quanto mais lhe pedirem isso, pior jogará”, remata Joaquín.
Para que William realizasse uma quarta temporada no Betis quando muitos, no verão passado, davam uma saída como certa, houve outro fator importante além de não ter chegado ao Benito Villamarín uma proposta plenamente satisfatória. Manuel Pellegrini, o experiente técnico da equipa, mostrou renovada confiança no jogador. “Para esta época, um plantel sem William Carvalho é pior do que um plantel como William Carvalho”, chegou a dizer o chileno.
Manuel Pellegrini e William Carvalho, com Fékir em segundo plano (Foto: CRISTINA QUICLER/AFP via Getty Images)
Nesta campanha, o Betis de Pellegrini tem feito uma “temporada perfeita”, defende
Piñero, estando em 3.º na La Liga, nas meias-finais da Taça do Rei — nas quais bateu, na primeira mão, o Rayo por 2-1 — e em competição na Liga Europa. É a única equipa de Espanha ainda presente em três competições e, para este rendimento, o contributo de William — que já leva 20 desafios a titular, apenas a cinco partidas de igualar o total acumulado das duas últimas épocas — tem sido decisivo.
“É o melhor William desde que chegou ao Betis, ainda não tínhamos visto esta versão dele em Espanha, plena de regularidade”, declara Joaquín
Piñero. Para esta subida de nível do internacional português, Miguel Quintana encontra causas nas dinâmicas coletivas.
“Da mesma maneira que não culpo totalmente William pelo desempenho de temporadas passadas, quando o contexto não o ajudava, agora não podemos ignorar esse mesmo contexto. Há uma peça crucial para este rendimento, que é Guido Rodríguez, o argentino que é o médio defensivo que o Betis durante muito tempo não teve. Guido, que tem feito uma época impressionante, assume tarefas de contenção e recuperação, libertando, assim, Carvalho”.
A presença de Guido Rodríguez no meio-campo tem sido fundamental para que William possa apresentar o seu melhor futebol (Foto: Jose Luis Contreras/DAX Images/NurPhoto via Getty Images)
Além do auxílio de Guido Rodríguez, William tem formado importantes parcerias com o muito talento que se coloca à sua frente, seja o futebol mágico de Nabil Fékir ou a criatividade consistente e inteligente de Canales. Quintana argumenta que Pellegrini criou o “contexto perfeito” para um jogador como William, que está a ter “muitos direitos e poucas obrigações”, podendo subir no terreno sem amarras táticas. O analista entende que Carvalho beneficia das “muitas atenções que os adversários do Betis concentram sobre Canales e Fékir, dando muito tempo e espaço” ao português, que tem aproveitado essas circunstâncias com mestria.
Com dois golos e três assistências nos últimos nove encontros, a preponderância de William tem-se sentido, cada vez mais, perto da área adversária. Joaquín
Piñero indica também uma “estabilização da condição física” do jogador, que num passado recente sofreu bastante com lesões que, esta época, não o têm limitado. “É um William mais solto, em todos os sentidos da palavra”, diz o jornalista andaluz.
“Temos visto arrancadas de William a que raras vezes assistíamos. Ele embala e, depois de ganhar velocidade nos primeiros metros, ninguém lhe tira a bola, com a sua conjugação de técnica e envergadura. A assistência para o primeiro golo contra a Real Sociedad, nos quartos da Taça, é um bom exemplo disto”, recorda Joaquín, que diz ser “incrível” que Carvalho “descubra passes onde nem Canales nem Fékir, dois maravilhosos criativos, encontram”.
Mas se este renovado William é aplaudido por todos, ainda há bem pouco tempo não era assim.
Piñero, que há muitos anos é presença assídua nas partidas do Betis em casa, assinala que os adeptos “já perceberam que tipo de jogador é o português”, já não “esperando que ele vá abarcar muito campo nem defender todas as transições”, mas sim que “saia da pressão e faça a equipa jogar”.
(Foto: by Marius Becker/picture alliance via Getty Images)
Ainda assim, Joaquín alerta para o facto de “William ser sempre um alvo fácil quando os resultados não aparecerem”. O jornalista diz que “a gestualidade lenta ou não atirar-se para o chão para recuperar bolas” não defendem o médio perante as críticas. Se a personalidade e qualidade de Carvalho são elogiadas quando o Betis ganha, “quando a equipa perde um jogador assim é o primeiro a ser criticado”.
Com contrato a terminar em junho de 2023, o “El País” noticiou, esta semana, que o Betis se prepara para apresentar uma proposta de renovação ao jogador até 2026. “É uma excelente pessoa e um enorme profissional. Contribui muito no jogo ofensivo e defensivo e é muito inteligente na tomada de decisões”, indica Antonio Cordón, diretor desportivo dos andaluzes, citado pelo diário de Madrid.
Lutando para estar na Liga dos Campeões da próxima temporada e ainda na disputa de dois troféus, Miguel Quintana salienta que o Betis pode “fazer uma das melhores temporadas do seu passado recente”. No centro da bela equipa de Pellegrini — que, depois de elevar o nível futebolístico de Villarreal e Málaga, volta a deixar a sua marca em Espanha — está o regresso de William Carvalho ao seu melhor nível.
As críticas e adversidades colocaram-se à frente do português, mas, tal como fez com Alejandro Catena, William fez-lhes um túnel para seguir em frente. Sempre com aquela suavidade, que nos parece tão bela quando a equipa ganha e tão enervante quando perde.