Expresso

“Quando estalou a guerra na Ucrânia às vezes tinha ansiedade, não dormia. Mas o cônsul dizia que tinha um carro e um avião preparados para nos levar”

“Quando estalou a guerra na Ucrânia às vezes tinha ansiedade, não dormia. Mas o cônsul dizia que tinha um carro e um avião preparados para nos levar”

Após lançar a sua carreira no SC Braga, o brasileiro Matheus foi para o Dnipro da Ucrânia, onde acabou por conhecer a sua atual mulher, de quem tem dois filhos. Disputou a final da Liga Europa e desmaiou quase no final do jogo, pouco depois de levar uma cabeçada. O avançado brasileiro rumou a seguir para a China e lá permanece, vai para seis anos. Ainda sem saber o que fazer depois de pendurar as chuteiras, confessa que não pratica mais nenhum desporto e nem sequer gosta de assistir a jogos de futebol

Depois de tantos anos como jogador do SC Braga, como foi parar ao Dnipro da Ucrânia?
No final dessa época 2009/10, apareceram muitos clubes interessados, muitos empresários com conversa e mais conversa. Eu disse que não queria mais conversa, se houvesse algum interesse tinha de vir num papel. Jorge Mendes surgiu com o papel do Lille da França, se não me engano, já não recordo bem. Assinei pré-contrato com esse clube, mas o avançado que eu ia substituir, porque ele ia sair para outro clube, acabou por lesionar-se e não saiu como previsto. Acabaram por cancelar esse pré-contrato. 

O que aconteceu a seguir?
Continuei a jogar e a fazer golos e a partir daquela noite contra o Arsenal, em que fiz dois golos, começaram a “chover” muitas propostas. Tinha empresários a querer reunir todos os dias, a dizer que havia clubes novos e eu sempre a querer esperar para ver qual era a melhor opção. Eu já estava com 28 anos, não podia pensar em disputar campeonatos top, de Inglaterra, Espanha, tinha de pensar em ganhar algum dinheiro porque não tinha ganhado muito até aí, ou seja, queria um bom campeonato e um bom salário. Apareceram muitos clubes mas quando se falava em salário, era a mesma coisa que o SC Braga e como o Salvador queria renovar, eu decidi renovar. Só que eu queria como bónus que o SC Braga pagasse tudo de uma vez, mas eles só aceitavam pagar durante os quatro anos, cada ano pagavam uma tranche. Eu disse que não.

E depois?
Vim para casa. Já estava saturado de muitos empresários. Até que acabou por me ligar o empresário Marcelo Cipriano e Cabral, com quem troquei algumas mensagens. No dia seguinte encontrei-me com ele. Disse-lhe que ia acabar contrato com o SC Braga mas que eles queriam renovar. Ele disse que tinha um clube muito interessado, perguntei se não podia aguentar aqueles meses até terminar contrato, mas que não, que o treinador [Juande Ramos] queria-me logo, porque iam ter jogos importantes. Perguntei qual era o clube e não quiserem dizer logo. Eu disse que tínhamos de conversar com o presidente do SC Braga. O presidente pediu um milhão de euros. “Mas como? Faltam três meses para terminar contrato, estou com 28 anos”. Ele insistiu. E o Dnipro acabou por pagar esse preço, mas com isso diminuiu um pouco o meu salário.

Aceitou mesmo assim?
Tinha que aceitar, porque mesmo diminuindo o salário, porque tinham de pagar ao SC Braga, continuava a ser uma boa proposta. 

Matheus com Marcelo, o empresário que o levou para a Ucrânia

Como foi quando chegou à Ucrânia? Um grande choque?
Pior que o choque que eu tive em Portugal, por causa do frio. Cheguei com 26 negativos, coberto de gelo. Liguei ao Marcelo e disse que queria ir embora [risos]. “Não tenho como jogar aqui não”; “Você está louco? Daqui a pouco você vai para a sua casa e com o dinheiro que você tem acaba comprando ar condicionado e o que mais precisar para aquecer a sua casa”. Acabei ficando.

Sentiu empatia com a cidade e com as pessoas?
Foi difícil. Porque em Portugal pelo menos falavam português, eu não sabia falar inglês, não sabia falar nada. Foi uma loucura. Já me tinha separado da minha ex-mulher e estava só. Mas os ucranianos são pessoas espetaculares e quando gostam de verdade são amigáveis.

O balneário era muito diferente de Portugal e do Brasil?
Sim. No balneário já nem bom dia dava, eram muito fechados. Mas a minha chegada e a de outros brasileiros acabou por melhorar um pouco o ambiente. 

Com que opinião ficou do futebol ucraniano?
Um futebol muito mais pegado, mais físico, mais rápido. Para mim não foi muito difícil adaptar-me porque eu era rápido.

Voltou a casar?
Sim, conheci a minha atual mulher, a Julia, na Ucrânia, ela é ucraniana. Eu aprendi a falar russo e ela português. 

Como se conheceram?
Eu fui a um clube de piscina em Dnipro e ela estava ao meu lado a apanhar sol. Um amigo que estava comigo disse que ela e outras raparigas com quem ela estava eram muito bonitas mas eu disse: “Não, é muito nova, parece criança”. Ele disse que não. Ficámos a conversar um pouco, esse amigo ia traduzindo. Um dia fui a casa de um amigo e ela estava lá, era amiga do amigo do meu amigo. Acabámos por nos conhecer melhor e foi aí que começou.

O que ela fazia profissionalmente?
Era modelo.    

É efetivamente muito mais nova?
Não (risos). Tem 34 anos. Mas quando olhei a primeira vez, a fisionomia, o jeito, magrinha, o rosto lindo, perfeita, no momento pensei que era muito mais nova do que [risos]. Mas é mais nova apenas cinco anos.

No primeiro ano em que chegou à Ucrânia não fez muitos jogos. Porquê?
O trabalho que eles fizeram naquele período comigo foi muito mau porque eu vinha de uma competição, fiz a pré-época com eles e acabei por lesionar-me. Abri a posterior e fiquei de fora muitos jogos. Tive uma depressão também, por não jogar, e por estar longe da minha filha. Mas acabei por sair dessa depressão. 

Como?
Com a ajuda da minha esposa, na altura namorada, dos meus amigos e família que me ajudaram bastante. Cheguei a pedir para ir embora do clube. O diretor do clube disse-me: “Não vais embora nada, vais acabar por casar com a ucraniana e ter filhos aqui”. E assim aconteceu [risos]. 

Ficou cinco anos e meio na Ucrânia. O que foi mais marcante nessas épocas?
Acho que o mais marcante foi ver o clube a classificar-se pela primeira vez para uma eliminatória da Liga dos Campeões. Foi marcante para mim como para o clube e para as pessoas da cidade, para os adeptos.

Matheus chegou ao Dnipro da Ucrânia em 2010/11

Chegaram mesmo à final da Liga Europa com o Sevilha, em 2015. Um jogo, aliás, marcado pelo seu desmaio em campo, já perto do final e que o obrigou a sair de maca. Quer recordar o que aconteceu?
Chutaram a bola e fui dividir a bola com o lateral, cabeceei mas ele acabou por cabecear o meu nariz, a testa. Voltamos a descer depois do salto, senti-me normal, só que quando regressei para defender começou a sair sangue do meu nariz, a doer-me a cabeça, a língua a enrolar-se e desmaiei. Tive de ficar no hospital um dia lá na Polónia [a final foi em Varsóvia]. E tenho um problema no nariz até hoje porque ficou cortado por dentro e costumo brincar com os meninos, digo que nunca fico com o nariz entupido do lado direito e sem respirar. Não sei o que aconteceu. Foi um momento difícil, sobretudo para a minha família, mas graças a Deus correu tudo bem. 

Foi o clube onde trabalhou mais tempo com o mesmo treinador. Gostava dele?
Não muito, mas tem que ser profissional. Eu gostava muito mais do adjunto dele, o Muniz.   

Porquê?
O Ramos era na dele mais, não conversava muito com os jogadores. O Muniz não, era mais próximo dos jogadores. 

Entretanto casou, Quando nasceu o primeiro filho desse casamento?
Casei no final de 2011. A Emily nasceu em 2012.

Assistiu ao parto?
Dela, não. Foi a minha mãe que assistiu, eu não tive coragem. Só assisti ao do meu filho Luca, que nasceu em 2015.

Em 2014 estalou a guerra na Ucrânia. Como viveu esse período?
Eu vivi normal. Claro que às vezes tinha ansiedade, não dormia. Mas o cônsul brasileiro aqui, na Ucrânia, ligava com frequência e dizia que tinha um carro e um avião preparados para nos levar. Isso dava alguma tranquilidade. Mas foi uma situação complicada, porque todos os dias havia uma novidade e era stressante.

Alguma vez apanhou um susto maior?
Uma vez fomos para um jogo na Crimeia, acho que já tinham tomado a cidade, e uns homens do exército entraram dentro do nosso autocarro e começaram a falar alto, houve alguma tensão, mas acabou por tranquilizar e jogámos sem problema. 

Porque saiu do Dnipro e foi para o Shijiazhuang Ever Bright, da China?
O clube já estava com problemas, tanto que depois acabou por fechar portas. Nas férias tive uma oferta do PAOK, da Grécia, com quem assinei um pré-contrato. Só que no período da renegociação, em que estava para assinar contrato, recebi um email do clube da China. A oferta foi bem melhor. Acabei por ir. 

Também foi um choque quando chegou à China?
Não. Por incrível que pareça não tive choque nenhum. Porque eu já sabia que era uma língua que praticamente ia ser impossível para mim, eu tinha um tradutor individual, que me acompanhava, falava muito bem o português e talvez por isso não senti um choque. As pessoas da SAD do clube gostaram muito de mim. O único choque que eu tive no início foi a comida, mas acabei por acostumar-me.

Não gostava de comida chinesa?
Não era o gostar, quando eu vi o que eles comiam mesmo, aquelas sopas, aqueles noodles, assustei-me um pouco, mas comecei a provar, a saborear, e já queria comer todos os dias. 

Quando chegou, o clube estava a disputar a Super Liga chinesa, mas entretanto desceu de divisão. 
Sim. Eles contrataram-me para tentar ajudar, creio que fiz um bom trabalho nesse período, fiz oito ou nove golos em nove ou dez jogos, mas não escapámos.

Um futebol muito diferente?
Um futebol mais rápido, muito rápido.

Mas não tão bom tecnicamente. 
Quando cheguei não, mas agora eles estão muito diferentes. Agora eles continuam rápidos, mas melhoraram bastante na técnica graças aos treinadores estrangeiros que têm ido para lá, aos treinadores chineses que olham os estrangeiros e querem aprender e aos jogadores também, que focam naquilo que o treinador estrangeiro passa e estão evoluir.

Ficou no clube cinco anos…
Sim, caímos mas no terceiro ano acabámos por voltar para a Super Liga. Eu fiz 108 jogos no clube.

Chegou a aprender a falar chinês? 
Algumas coisas.

A sua mulher e seus filhos foram consigo?
Sempre. Só agora no último período é que foi complicado porque tínhamos a quarentena e não podiam entrar crianças. Acabei por ficar sem eles lá.

Como viveu o período inicial da pandemia e do confinamento? Foi muito complicado?
Nesse período estava de férias, no Brasil. Depois o clube acabou por ir para o Dubai, para Abu Dhabi, onde ficámos três meses a treinar. 

Matheus (o 1º à direita na frente) no 11 do Dnipro que jogou a final da Liga Europa com o Sevilha

No último ano mudou de clube e foi para Zheijang Greentown.
Sim. O clube estava há cinco anos sem conseguir subir para Super Liga, e este ano acabámos por conseguir esse objetivo.

E agora? Vai continuar na China?
Acabo o meu contrato agora no dia 31 de janeiro, depois só Deus sabe o futuro.

Já tem propostas de outros clubes?
Eles querem que eu continue, mas enquanto não tiver contrato não tenho a certeza. Tenho algumas propostas, vamos ver o que vai acontecer. 

Se pudesse escolher o que é que gostava que acontecesse?
Acho que queria fazer mais um ano lá.

Para si, qual a sua mais valia enquanto jogador?
A velocidade e um para um.

Já pensou no que quer fazer depois de deixar de jogar futebol?
Ainda não. Quero continuar jogando ainda, a meta é mais um ano, ano e meio porque um objetivo que tenho é fazer meu último ano no clube onde comecei, no Itabaiana, e encerrar a carreira. A seguir então vejo se é melhor continuar no futebol ou ver outras coisas. Agora só estou pensando em jogar futebol.

A sua ideia é ficar a viver no Brasil?
Não a 100. Estou balançado 50/50. Entre o Brasil e a Ucrânia.

Onde é que ganhou mais dinheiro até hoje?
Na China.

Investiu como?
Estou investindo numa pousada no Brasil, é hotel e restaurante. Chama-se “Aconchego do Matuto” e fica próximo de uma cidade que se chama Canindé de São Francisco.

Qual foi a maior extravagância que fez na vida?
Gastar 100 mil euros num dia.

Em quê?
Nunca tinha condições de comprar e acabei comprando um relógio, umas roupas que quando era pequeno não tinha muito. Acabei entrando na loja do Louis Vuitton, Dolce & Gabanna fui gastando e quando fui ver já tinha batido acho que 100 mil.

Tem algum hóbi?
Gosto muito de ver filmes de ação, românticos, misturados.

Tatuagens. Qual foi a primeira que fez?
Fiz a primeira em Portugal, é um escorpião.

Porquê o escorpião?
Sinceramente não sei.

Tem outras com significado especial?
T
enho o nome dos meus filhos. As iniciais dos meus pais. Eles não gostam, mas eu fiz sem eles saberem. Da minha esposa e do meu irmão, que é como se fosse o meu braço direito todo.

É um homem de fé.
Sim com certeza, sem Deus não conseguimos nada. Quando estou no Brasil sempre que posso eu compareço na igreja.  

E superstições?
Nenhuma. 

Quem foi o seu maior rival?
Acho que não tive um que me fizesse medo. Tive vários e ao mesmo tempo nenhum. 

Matheus (1º à esquerda) com alguns colegas no balneário do Zhejiang Greentown, da China

Segue outros desportos além do futebol?
Não. Não curto muito. Nem assistir futebol. 

Qual a maior frustração da carreira?
Não tive nenhuma. 

Nem arrependimento?
Não. Tudo aquilo que fiz foi pensado.

O momento mais feliz da carreira?
Na verdade foram três. Quando fiz golo para comemorar o nascimento dos meus filhos. Foram os três golos dedicados a eles.

Quem são as maiores amizades que fez no futebol?
Foram muitas. Mais marcantes o Cláudio Pitbull e também Bruno Gama.

Se pudesse escolher de todos os clubes do mundo, qual aquele onde gostava de ter jogado?
No Corinthians.

Qual o momento mais difícil na vida?
Viver longe da minha filha.

Tem ou teve alguma alcunha?
Na Ucrânia chamavam-me de moto, por ser muito rápido. E na China dão-me um nome que significa que eu sou a perna mais valiosa, que sempre decide.

Tem algum talento escondido?
Tenho uma boa visão para empreendimento.

Com a mulher e os três filhos

O que pensa do VAR?
Veio para ajudar e para atrapalhar. Ajudar para equipa que leva o golo, mas a bola tocou na mão, e atrapalhar para essa equipa que poderia ter feito o golo. É bom para uma equipa e mau para outra.

Alguma lei ou regra do futebol que mudaria ou retirava?
Eu punha o lançamento lateral com o pé em vez da mão.

Se não fosse jogador de futebol, o que teria sido?
Não sei mesmo.

Viveu em Portugal, Ucrânia e China. O que levaria de cada um destes países no regresso ao Brasil?
De Portugal levaria a comida, da Ucrânia levaria a veracidade que eles têm nas relações com as pessoas de quem gostam, e dos chineses o carisma deles, são pessoas muito boas.

Tem uma história mais para contar antes de terminar?
Uma vez, eu e o Pitbull fomos passar uma noite a Paris, assim do nada, sem dinheiro, nem nada. Ele só tinha dinheiro para a passagem de avião e eu acabei arranjando forma de ficamos lá em casa de uns amigos. 

Matheus e Cláudio Pitbull em Paris

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