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Nico e Iñaki, os irmãos que têm nos pés a memória da areia do deserto que queimou os da mãe

Um dia, numas férias no Dubai, a mãe de Nico e Iñaki Williams, futebolistas do Athletic Bilbao, chorou porque recordou como a areia do deserto do Gana lhe queimou os pés numa travessia que, por uma vida com mais dignidade, culminou em Espanha. Esta é a história da família que se abraçou depois do triunfo contra o Atlético Madrid, na meia-final da Supertaça, na Arábia Saudita. O abraço, inevitável, deu-se mesmo com uma grade pelo meio

Rita Meireles

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Apesar do despropósito de uma Supertaça de Espanha ser jogada na Arábia Saudita, o som do derradeiro apito tem a mesma validade a mais de 4.500 quilómetros. O golo de Nico, o mais novo dos irmãos Williams, aos 81’, colocou o Athletic Bilbao na final contra o Real Madrid. Já despidos de adrenalina e tensão, Iñaki e Nico vestiram-se antes, um ao outro, num abraço. E procuraram a mãe na bancada.

O indicador de Nico, um rapaz de 19 anos a fazer-se futebolista, cessou a busca e indicou o caminho terrestre para a terra do amor, os braços da mãe. Chegados à grade, tiveram de convencer os seguranças de que aquela senhora era a culpada pelo segundo golo dos bascos. Mãe e tia, num desaforo terno e fintando o aço em xadrez, desataram a rir enquanto tocavam nos dois jogadores com as mãos de quem ama, cheias de orgulho e compreensão.

“Estou super emocionado por partilhar o meu primeiro golo com a minha mãe, porque ela não pôde ir ver com o Mancha Real”, disse Nico Williams, no final do jogo, lembrando o adversário contra o qual marcou dois golos para a Taça. “Estou super orgulhoso que ela tenha visto o meu primeiro golo aqui na Supertaça. Espero continuar a trabalhar assim, que não suba às nuvens…”, ia falando, entre risos, até ser interrompido por Iker Muniain, um futebolista que nunca vestiu outra camisola.

😍 Momentos mágicos que nos dejó la noche de ayer.

El orgullo de la familia Williams. #GeuriaDa 🏆 #AthleticClub 🦁 pic.twitter.com/olQmAG8j2S

— Athletic Club (@AthleticClub) January 14, 2022

As mãos de mãe que hoje confortam e celebram alegremente os irmãos foram usadas, noutra época, para galgar muros e fronteiras, quando a desassossegada juventude implorava por uma vida com mais dignidade. Antes de Iñaki renovar o contrato por nove temporadas, em 2019, a família Williams foi passar férias ao Dubai. Maria, beliscada brutalmente pela memória, desabou. “Pôs-se a chorar porque isso recordou-a do que sofreu quando era jovem, quando nem sentia os pés devido ao que queimava a areia [no deserto, no Gana]. Isso revira-te o estômago porque sabes que os teus pais viveram o que não desejas a ninguém”, desabafou há sensivelmente dois anos, aqui citado pela “La Voz de Galicia”.

Iñaki revelou ainda que, quando os seus pais saltaram a vedação de Melilla, uma cidade autónoma espanhola, situada no norte de África, a sua mãe estava grávida dele. “Quis o destino que eu nascesse em Basurto”, já em Bilbau. A espinhosa rota de Félix e Maria começou em Acra, no Gana, passou por Melilla, Málaga, Madrid e culminou finalmente em Bilbao, onde agora, graças aos seus filhos, sacodem com delicadeza os corpos de quem escuta a história deles. Pelo meio, a mãe lavou escadas em Pamplona, onde Iñaki jogou nas camadas jovens até chegar ao Athletic, e o pai trabalhou num armazém em Londres.

Em tempos, ainda por causa daquela longa e incomum renovação, perguntaram a Iñaki se a família era tida em conta nestas decisões. Ele, que explicou que ganhar mais títulos e dinheiro não é sinónimo de felicidade, admitiu que sim.

“Foram os meus pais que me inculcaram, a cada dia, com o seu exemplo, o que é o esforço, o trabalho, o sacrifício”, explicou, em agosto de 2019, ao “El País”. “À minha mãe devo tudo. Esteve sempre aqui, sempre me apoiou. A opinião dela é a que tenho mais em conta, a que sigo rigorosamente. Trabalho para ver a família unida porque estivemos muito tempo separados. Além disso, a minha mãe é do Athletic e não contempla que me vá embora”.

No fundo, quer fazê-la feliz. “Isso é primordial. Tanto eu como o meu irmão temos a sorte de que nos tenha inculcado o esforço e a dedicação no que fazemos. A minha mãe é uma guerreira e eu quero que seja feliz e que esteja orgulhosa dos seus filhos. Eu estou muito orgulhoso dela”, disse, na mesma entrevista.

Iñaki Arthuer Dannis Williams, hoje com 27 anos, recordou ainda um episódio da infância, quando ainda estavam a viver em Pamplona. “Quando tinha 12 anos, um dia cheguei a casa e não havia comida, e nem sequer funcionava a luz porque não chegávamos [com dinheiro] ao fim do mês e cortavam-na. São coisas que te fazem continuar a esforçar-te todos os dias. Eu sonhava com melhorar a vida da minha família”, contou. O sonho transformou-se, há vários anos, em realidade. “Ela já trabalhou e sacrificou-se o suficiente para nos dar comida todos os dias.” Dificilmente Iñaki vai chutar uma bola com a força que têm estas palavras. O futebol funcionou como o elevador social, mas, bem antes disso, alguém caminhou sobre o fogo para chegar ao mesmo edifício desse improvável elevador.

Talvez inspirado pelo bom exemplo em casa, Nico também acabou por conquistar um lugar na primeira equipa do Athletic. É futebolista profissional aos 19 anos e isso vai dando uma certa folga a Iñaki, nem que seja nas entrevistas. O importante é não ter pássaros na cabeça, disse-lhe, mais ou menos com estas palavras, o irmão mais velho.

Mais tarde, em entrevista à “Efe”, em setembro, Nico refletiu sobre o assunto: “É verdade que, para um chaval da minha idade, é difícil gerir todas estas coisas que me estão a acontecer, mas os meus pais, a minha família e o meu entorno passaram-me valores essenciais e não tenho nenhuns passaritos na cabeça. Há que seguir em frente e trabalhar muito.”

SI TE QUIERO MÁS ME MUERO ❤️🩸🤩 pic.twitter.com/0sHujWOA8A

— IÑAKI WILLIAMS (@Williaaams45) January 13, 2022

Rafael Alkorta, o atual diretor desportivo do clube — jogou muito tempo no Athletic, de onde escapou quatro anos para o Real Madrid, nos anos 90 —, elogiou o caçula da família Williams. “O Nico está bem. Está em progressão, cada dia vemos coisas difíceis de ver num miúdo da sua idade. O Iñaki faz um trabalho fantástico com ele e, cada vez que joga, traz velocidade e valentia”, disse sobre o extremo na quinta-feira, à “Onda Cero”, após o jogo.

Ao sonho de jogar ao lado do irmão mais novo, Iñaki juntou a responsabilidade de irmão mais velho, ou de pai às vezes, que lhe puxou as orelhas e lembrou que “aqui ninguém oferece nada a ninguém”. Afinal, apesar de tudo, viveram vidas diferentes. Nico, demonstrando consciência pelos grãos de areia que vão pisando os Williams, admitiu recentemente que a sua infância foi diferente da do irmão, que “sofreu um pouco mais” do que ele, sobretudo pela falta de dinheiro. “Somos de uma família humilde. Estou super agradecido aos meus pais e ao meu irmão por tudo o que fizeram por mim.”

O passado da família Williams trata de amolecer também aqueles que olham com desconfiança para os migrantes e refugiados. A esses, Iñaki, que já sofreu na pele a tragédia do racismo, pede “empatia”. E a razão é simples, explicou numa entrevista ao “La Vanguardia”, há quase um ano. “Ninguém deixa o seu lugar e a sua família e arrisca a vida para vir para aqui de férias. São conscientes do muito que arriscam. Se existisse mais empatia, estaríamos melhor como sociedade”. Era por isso também que achava importante jogar um dia ao lado do irmão, não só por obediência ao amor fraterno, mas por serem negros, por terem uma história para contar e, quem sabe, converter um desconfiado e um preconceituoso de cada vez.

Depois de tanto, um jogo de futebol parece quase uma relato insignificante. Mas não é. Trata-se da plataforma onde existem e colocam em prática o que lhes ensinaram. É por tudo isto que, depois do triunfo contra o Atlético Madrid, numa terra onde se espreguiça outro assombroso deserto, Iñaki e Nico não precisaram de estrelas para encontrarem o destino atrás daquela grade, entre a multidão que vestia vermelho e branco. O único céu que conhecem existe nas mãos de Maria, a mãe. E é inevitável.