150 anos de FA Cup, a competição de clubes mais antiga do mundo que foi “decisiva no começo do futebol”. Século e meio depois, a magia ainda existe?
Na temporada em que a Taça de Inglaterra cumpre 150 anos, falámos com antigos campeões, protagonistas da prova e autores britânicos, numa viagem desde os primórdios do futebol até aos nossos dias. A FA Cup conserva vários dos seus rituais, mas a passagem do tempo também produziu os seus efeitos negativos no poder de sedução do torneio
Pedro Barata
Em 1872, a Football Association (FA) estava “um pouco morta”, conta-nos Jonathan Wilson, colunista do “The Guardian”, editor da revista “The Blizzard” e autor de diversos livros sobre futebol. Criada em 1863 com o intuito de unificar as regras do futebol – dado que cada escola ou universidade praticava o jogo à sua maneira -, a FA parecia, quase uma década depois, vazia de sentido, havendo quem questionasse a utilidade da sua existência após o grande objetivo da sua criação já ter sido cumprido.
Mas Charles W. Alcock tinha um pensamento diferente.
Alcock, natural de Sunderland, era um inovador e entusiasta do futebol. Em novembro de 1872, seria o organizador do primeiro jogo entre seleções, um Escócia – Inglaterra, mas, antes disso, Alcock foi a uma reunião da FA – realizada nos escritórios do “The Sportsman Newspapper” – com uma ideia: “Criar uma Taça, na qual todos os clubes pertencentes à FA sejam convidados a competir”.
Alcock havia frequentado a Harrow School, onde se jogava um torneio de futebol a eliminar entre os alunos. Basicamente, a sua ideia era replicar isso por todo o país, com o duplo objetivo de reativar a Football Association e espalhar a popularidade do jogo. Assim, em novembro de 1871 arranca a primeira temporada da FA Cup, a qual terminaria, em março de 1872, com a vitória dos Wanderers.
Em 2021/22, assinalam-se 150 anos do começo da Taça de Inglaterra, a competição de clubes de futebol mais antiga do mundo. No fim de semana em que se disputa a primeira eliminatória com equipas da Premier League na presente edição do torneio, a Tribuna Expresso falou com Gustavo Poyet, treinador uruguaio que orientou o Sunderland e o Brighton e que, como jogador, venceu, com o Chelsea, a última edição da FA Cup disputada no velho estádio de Wembley; Ricardo Rocha, ex-central português que foi finalista vencido da prova pelo Portsmouth, em 2010; Jordi Gómez, parte fundamental da equipa do Wigan que ergueu o troféu em 2013, na grande surpresa da FA Cup do presente século; e o já referido Jonathan Wilson, um dos autores mais reputados do desporto britânico.
Uma multidão concentra-se para ver a final da FA Cup de 1901, ganha pelo Tottenham. As 110 mil pessoas que viram o jogo foram, à data, a maior assistência de sempre de um jogo de futebol (Foto: Hulton Archive/Getty Images)
“A FA Cup é um torneio que dá às equipas pequenas a oportunidade de sonhar”. A forma entusiasta como Jordi Gómez nos diz esta frase evidencia bem o que representa a prova para o espanhol. Aos 36 anos, o canhoto joga no Omonia, do Chipre, isto depois de nove temporadas no futebol britânico, divididas entre Swansea, Wigan, Sunderland e Blackburn, e considera o triunfo na FA Cup com o Wigan “um dos momentos de maior orgulho” da sua vida desportiva.
Ricardo Rocha concorda com Gómez, apontando a “mística muito própria” da Taça, com “todo o cerimonial em redor da final”, com a “festa” em Wembley, a entrada em campo das equipas ou a presença da família real. Poyet, uruguaio a viver em Londres que já trabalhou no futebol em Espanha, França, Chile, Grécia ou China, diz que “a Taça em Inglaterra é a mais importante da Europa”, por transportar “uma mística inigualável”.
Parece ponto comum aos protagonistas de diferentes momentos da história da competição este apontar da “magia” – palavra de Jordi Gómez – da FA Cup, mas porquê? De onde vem este toque especial da Taça em Inglaterra? E será que o mesmo foi-se perdendo ou mantém-se intacto?
Jordi Gómez ergue a FA Cup, após o Wigan ter derrotado, por 1-0, o Manchester City na final de 2013. Foi a maior surpresa da competição no século XXI (Foto: Laurence Griffiths – The FA/The FA via Getty Images)
Voltando a Alcock, a sua ideia tornou-se rapidamente um êxito, com mais e mais equipas a entrarem na competição a cada ano que passava. E a FA Cup foi sendo protagonista de vários momentos muito importantes nas primeiras décadas do jogo, tornando-se “numa competição decisiva no começo do futebol”, defende Jonathan Wilson.
“O torneio rapidamente capturou a imaginação do país. O ponto crucial é que atravessou todo o mapa e todas as classes sociais, desde as pessoas das escolas e universidades de classe alta até à classe operária. Pela primeira vez, há pessoas das classes trabalhadoras a jogarem um desporto contra pessoas das classes mais altas, o que é algo que nunca tinha acontecido e tem um fascínio enorme. Se tu trabalhas numa fábrica e o teu colega está a jogar contra uma equipa de filhos de aristocratas, claro que queres ir ver o que acontece e queres que a equipa dos operários ganhe. Isto gera identificação e é o princípio básico da massificação do futebol”, argumenta Wilson.
Os conjuntos do Norte começaram a ir à Escócia buscar jogadores, dando-lhes trabalhos nas fábricas mas, na prática, pagavam-lhes para jogar, o que não era permitido. Este desafio das equipas das classes mais baixas aos conjuntos aristocratas teve o seu ponto decisivo quando, em 1883, o Blackburn Olympic bateu o Old Etonians na final, tornando-se na primeira equipa da classe operária a vencer a FA Cup. “É um momento crucial na história do jogo, levando à aceitação generalizada do profissionalismo”, refere Jonathan Wilson.
Em 1888, a Football League é criada, no entanto, durante muitas décadas o verdadeiro glamour do futebol inglês estava na FA Cup. “O Manchester United vence a Liga pela primeira vez em 1908, mas só se sente um grande clube quando conquista a Taça em 1909. O Sunderland ganhou a Liga seis vezes, mas ficou sempre com a espinha encravada de não ter ganho a Taça até 1937, sendo que essa Taça foi vista como algo maior que os títulos de Liga. O Liverpool ganhou a Liga em 1964, mas valorizou mais ganhar a Taça em 1965”, diz Wilson.
Nas primeiras décadas do torneio, houve imediatamente grandes epopeias, como o triunfo do Tottenham em 1901, no qual os Spurs venceram a competição estando fora do sistema de ligas nacionais inglesas, algo inédito até hoje. Na final contra o Sheffield United, os 110 mil espectadores que assistiram à partida constituíram, à altura, um recorde de assistência num jogo de futebol.
Jonathan Wilson aponta uma particularidade: “Em 2021, parece óbvio que existam competições, essa é a maneira como se disputa desporto. Mas, no século XIX e durante algum tempo, isto não era óbvio. As equipas só jogavam amigáveis, algo que se manteve noutros desportos. O Rugby Union, nos anos 70 do século XX, ainda não tinha uma liga, eram só equipas jogando umas contras as outras. O críquete, que é muito mais antigo que o futebol, só teve competições mais estruturadas nos anos 80 e 90 do século XIX. Ninguém parecia questionar ‘quem é que ganha no final da época?’. O futebol foi verdadeiramente pioneiro na criação de competições, de Taças e Ligas como as entendemos hoje. Isto parece incrivelmente básico, mas o futebol foi o primeiro desporto a fazê-lo, o que conferiu ao jogo uma popularidade enorme”.
Em 1923, já com a competição consolidada, a FA Cup ganha um parceiro que se tornaria inseparável: o estádio de Wembley. Na primeira final de sempre disputada no então estádio do Império, o Bolton bateu o West Ham por 2-0. Oficialmente, havia capacidade para 126 mil pessoas, mas os relatos apontam para a presença de mais de 200 mil almas, tendo-se tornado icónicas as imagens de um cavalo branco – chamado Billy – a tentar empurrar o público para trás.
Vista aérea da final da FA Cup de 1923, a primeira em Wembley (Foto: Hulton Archive/Getty Images)
“O velho Wembley era um verdadeiro templo”, diz-nos Gustavo Poyet. Em 1999/2000, o uruguaio foi o melhor marcador da FA Cup, com seis golos em seis jogos. Na meia-final, já disputada em Wembley, o uruguaio fez dois golos na vitória por 2-1 contra o Newcastle, num dos “jogos mais marcantes” da sua carreira.
Na última final disputada no velho Wembley, o Chelsea orientado por Gianluca Vialli e com estrelas como Desaily, Deschamps, Zola ou Weah, bateu o Aston Villa com um golo de Di Matteo, num “jogo horrível, péssimo, mas disso ninguém se lembra”, graceja Poyet, que conta que, durante os festejos “o capitão, o Dennis Wise, pegou no filho dele e meteu-o no campo, o que fez com que todos os companheiros fizéssemos o mesmo. E a FA ficou muito chateada com isso, diziam que não era permitido estarmos todos com os filhos no campo. É engraçado porque agora em todas as celebrações entram as famílias e os amigos para o relvado, e só há 20 anos era tudo diferente”.
Poyet celebra a FA Cup de 2000 com os seus filhos no relvado (Foto: Rebecca Naden – PA Images/PA Images via Getty Images)
O uruguaio destaca que o velho estádio de Wembley “transpirava história”, realçando o “relvado sempre lindo, que dava vontade de jogar”, a “entrada em campo por detrás de uma baliza, sendo preciso percorrer 80 ou 90 metros até ao meio-campo” ou o “balneário peculiar”, que tinha uma “piscina onde se celebravam as vitórias”.
Gustavo Poyet lembra a “excitação de todos no clube” nos dias anteriores à final, revelando uma história com o técnico da equipa: “Vialli tinha contactos na Armani e então eles fizeram-nos fatos à medida para a final. Deram-nos tudo: fato, sapatos, meias, camisa, gravata, óculos de sol. Tudo. Fomos fazer provas à medida e sentíamo-nos estrelas de Hollywood, a entrar em grande estilo para a última final da história naquele templo”.
Didier Deschamps e Gustavo Poyet impecavelmente vestidos antes da final da FA Cup (Foto: Mandatory Credit: Ross Kinnaird /Allsport)
No interregno entre o fim do velho Wembley e o erguer do novo, a final da FA Cup disputou-se, entre 2000 e 2007, no Millenium Stadium, em Cardiff.
No baú de memórias e heróis sem fim que é a história da FA Cup, Jonathan Wilson leva-nos até outras das mais emblemáticas finais da história, a de 1953: “A final é a 2 de maio, um mês antes da coroação da rainha Isabel. Imensa gente comprou televisões para ver a coroação, mas muitos pensaram que, se a comprassem um pouco antes, poderiam ver, também, a final da FA Cup. Então, é a primeira vez na história que há uma enorme audiência de um jogo de futebol em direto. E, para culminar, o jogo foi brilhante, um Blackpool 4-3 Bolton, com o mítico Stanley Matthews, o primeiro jogador da história ganhar a Bola de Ouro, a realizar uma exibição fenomenal. É um dos jogos mais famosos de sempre a ter sido disputado no Reino Unido”, salienta o autor.
A ligação entre a família real e o torneio foi, aliás, um ponto básico que se foi mantendo ao longo das décadas. Desde 1939, o presidente honorário da Football Association é, sempre, um membro da família real – o príncipe William, adepto do Aston Villa, ocupa o cargo desde 2006. O cumprimento de uma pessoa da realeza aos jogadores antes da partida é uma das tradições das finais, opinando Ricardo Rocha que “é algo que também contribui para a mística do acontecimento” e recordando que o príncipe William foi “muito simpático” antes da final de 2010.
Ainda quanto à final de 1953, há uma teoria bastante aceite – partilhada, também, por Wilson – que defende que é o momento em que o futebol substitui, de forma inapelável e definitiva, o críquete como o jogo nacional em Inglaterra. “Toda a gente viu aquele encontro e toda a gente passou a querer fazer parte da história daquela prova”, comenta o editor da “The Blizzard”.
Stanley Matthews recebe a medalha de vencedor de FA Cup da rainha, após a final de 1953 (Foto: Mandatory Credit: Allsport Hulton Deutsch/ALLSPORT)
A ideia da FA Cup como competição na qual tudo pode acontecer foi-se cimentando com base em histórias marcantes, como quando o Sunderland (em 1973), o Southampton (em 1976) e o West Ham (em 1980) venceram a prova não estando na primeira divisão. Ora, se desde 1980 nenhuma equipa fora do principal escalão vence a Taça, parece consensual afirmar que, no século XXI, a grande surpresa da FA Cup foi o Wigan em 2012/13.
Orientada por Roberto Martínez, atual selecionador belga, a equipa dos arredores de Manchester desceu da Premier League ao Championship no final da época, no entanto isso não a impediu de chegar a Wembley e, na final, bater o Manchester City de Roberto Mancini, com Yaya Touré, David Silva, Aguero ou Tévez como grandes figuras.
Jordi Gómez reconhece que “o objetivo nunca foi ganhar a FA Cup”, mas o Wigan foi “passando eliminatórias até chegar a um momento de dizer ‘bem, talvez isto seja possível’”. O espanhol aponta a partida dos quartos de final, com um triunfo, fora, diante do Everton por 3-0 – com golo e assistência de Jordi – como “a altura a partir da qual o plantel passou a acreditar em fazer o impensável”.
Após derrotar o Milwall, nas meias finais, o Wigan chegou a Wembley para viver a “experiência brutal” do jogo decisivo frente ao Manchester City. Gómez sublinha que a equipa “preparou bem o jogo” e conseguiu “incomodar muito” o seu adversário. Aos 81’, o espanhol foi substituído por Ben Watson que, 10 minutos depois, marcaria o golo que selou “um triunfo de que ninguém esperava”.
Dias depois da conquista, o Wigan acabaria por descer de divisão, mas Jordi Gómez garante que “os adeptos estavam muito felizes”: “É muito mais provável que o Wigan volte a estar na Premier League do que volte a ganhar a FA Cup. Jogámos a final e quatro dias depois descemos de divisão, mas fomos festejar com os adeptos a vitória na Taça. Se lhe dermos a escolher entre o que aconteceu ou termos garantido a manutenção e não termos conquistado a FA Cup, não duvido que eles escolheriam que tudo tivesse sido como foi. Ainda hoje os jogadores daquela vitória são ídolos para eles”, realça o catalão.
Na edição seguinte, já com o clube no Championship, o Wigan voltou a causar sensação, batendo, novamente, o Manchester City nos quartos de final, com golo de Jordi Gómez. Nas meias finais, já em Wembley, o espanhol marcou de penálti – “a espera até ser autorizado a bater pareceu eterna, mas marcar um golo em Wembley é um momento que levarei para sempre”-, mas o Arsenal conseguiu empatar perto do final e venceu no desempate por castigos máximos. “Se tivéssemos conseguido chegar a outra final, já não havia adjetivos para nos descrever, mas sinto-me tremendamente feliz por ser parte da história dos clubes pequenos que se fizeram grandes na FA Cup”, resume Gómez.
Jordi Gómez marca de penálti contra o Arsenal, na meia final da FA Cup de 2014, em Wembley (Foto: Michael Steele/Getty Images)
Antes do Wigan, também o Portsmouth atingiu a final numa temporada em que desceu de divisão. Ricardo Rocha chegou ao clube em janeiro de 2010, quando “havia muitos problemas financeiros”, mas a Taça funcionou como refúgio para o plantel.
Na meia final, já em Wembley, o Portsmouth defrontou o Tottenham, num duelo “muito especial” para Ricardo Rocha. As coisas “não correram bem” para o defesa nos londrinos e o português sentiu que “tinha ali a oportunidade de mostrar que poderia ter dado muito mais ao Tottenham”.
Contra um adversário “muito poderoso, com Modric, Bale, Defoe ou Crouch”, o Portsmouth, já condenado à descida na Premier League, venceu, no prolongamento, por 2-0, em mais um episódio para a interminável lista de surpresas da história da Taça. Ricardo Rocha foi considerado o melhor em campo, no culminar de um dia “muito especial” na carreira do central.
Com o Portsmouth mergulhado em problemas institucionais e a caminhar para segunda divisão, a presença na final foi “um presente para todos no clube”, explica Rocha. Ainda assim, a experiência de estar no jogo decisivo envolveu algumas particularidades, voltando a indumentária a ser tema de conversa: “Devido às dificuldades financeiras, começou-se a dizer que nós não tínhamos capacidade financeira para irmos bem vestidos para o estádio. Então, uma empresa ofereceu-nos a todos os fatos”, conta o antigo internacional português.
A final opôs a equipa do sul ao Chelsea, “num duelo entre o primeiro e o último classificados da edição da Premier League que havia terminado há dias”, recorda Ricardo Rocha, que diz que a sua equipa “levou um massacre” na primeira parte, com o conjunto de Ancelotti a enviar várias bolas aos postes. No segundo tempo, o Portsmouth desperdiçou um penálti com 0-0 no marcador, acabando Drogba, um especialista em finais de Wembley, por dar o triunfo aos londrinos.
Ricardo Rocha explica que “já conhecia” Drogba antes da final, visto que o havia defrontado quando estava no Tottenham, apontando para os “duelos intensos” entre os dois. O português confessa que “picava” o avançado em português, usando “alguns palavrões”, os quis “eram entendidos por Drogba” – influenciado por muitos anos de convivência de balneário com Ricardo Carvalho, Paulo Ferreira, Hilário e outros portugueses -, que “também respondia com palavrões em português”, fazendo com que defesa e dianteiro “andassem sempre um bocado ‘picados'”, diz, com algum humor, Ricardo Rocha.
Ricardo Rocha disputa um lance com Didier Drogba (Foto:James Baylis/AMA/Corbis via Getty Images)
Do velho Wembley ao novo, do Tottenham em 1901 ao Wigan em 2013, de Stanley Matthews a Didier Drogba, a FA Cup parece cruzar gerações. “É uma competição que é muito cuidada em Inglaterra, desde logo por se disputar aos fins de semana e não a meio da semana”, refere Jordi Gómez, enquanto Ricardo Rocha aponta o “sentimento” inerente à prova, traçando algumas semelhanças entre uma final no Jamor e uma em Wembley, “ainda que Inglaterra seja o berço do futebol, o que leva a uma excelência adicional”.
Poyet realça ainda “a festa que é quando equipas de divisões inferiores recebem grandes ingleses”: “Quando orientava o Brighton, que estava no Championship, veio o Arsenal a nossa casa e foi um dia lindo, que pareceu revitalizar o clube”.
No entanto, Jonathan Wilson e Gustavo Poyet, ampliando a visão temporal sobre a FA Cup, coincidem ao apontar que a competição – e particularmente a final – “já não é tão especial como no passado”, opina o colunista do “The Guardian”.
Jonathan Wilson, inglês de 45 anos, explica a diferença de impacto da final da FA Cup de há três ou quatro décadas para os nossos dias: “Quando eu era criança, havia talvez 10 ou 12 jogos em direto na televisão por temporada. Davam poucos encontros e a grande partida, a única que toda a gente via, era a final da FA Cup, que tinha audiências gigantescas, com 15 ou 20 milhões de pessoas a assistirem. A juntar a isto, entre 1973 e 1990 há uma série de finais mágicas, com três equipas da segunda divisão a vencerem o título, o Wimbledon a conquistá-lo, o Coventry a bater o Tottenham num desafio sensacional, o Liverpool a derrotar o Everton por duas vezes. Todos os anos havia drama e emoção, o que levava a que crescesse a expectativa para o ano seguinte”.
Poyet considera que a FA Cup foi perdendo peso devido “à sobrecarga de calendário, que obriga os treinadores a, muitas vezes, não colocarem em campo os seus melhores jogadores”, e à “pressão sobre os técnicos”, que sentem que chegar à final da prova já não lhes dá estabilidade futura no trabalho. Na última década, Roberto Martínez, Van Gaal, Wenger ou Conte deixaram os seus cargos menos de um ano depois de terem conquistado a FA Cup.
No presente século, o Portsmouth e o Wigan foram os únicos conjuntos que conquistaram o torneio sem serem das equipas mais fortes da Premier League. Parece que o efeito de surpresa da Taça se foi perdendo, como “resultado do aumento do fosso entre os mais ricos e os mais pobres no futebol”, refere Wilson, que estabelece um paradoxo: “Os clubes grandes, cada vez maiores que os mais pequenos, só parecem interessar-se verdadeiramente pela Premier League e pela Champions, mas são os únicos que têm vencido a FA Cup. Portanto, neste momento parece que só um pequeno grupo de clubes pode vencer a FA Cup, mas esse pequeno grupo de clubes não se interessa muito pela FA Cup”.
Jonathan Wilson aponta ainda para o facto de “todos nos termos tornado mais profissionais a ver futebol”, havendo a consciência generalizada de que “o mais justo e certeiro para determinar quem é o melhor é uma Liga a 38 jornadas e não uma Taça na qual podes defrontar várias equipas de divisões inferiores”, ao passo que até à viragem do século a “busca pela glória icónica da FA Cup era mais relevante”.
Jogadores do Manchester United – com Bobby Charlton à direita, em segundo plano – festejam o triunfo na final da FA Cup, frente ao Leicester, em 1963 (Foto: S&G/PA Images via Getty Images)
Um ponto no qual Poyet e Wilson também coincidem é na perda de mística na passagem do velho Wembley para o novo. O uruguaio, que jogou na anterior versão do estádio e que, como técnico do Sunderland, dirigiu a equipa numa final da Taça da Liga contra o Manchester City, em 2014, no novo Wembley, opina que “o velho era muito especial por ser diferente de todos os outros estádios”, ao passo que o novo “é um estádio moderno, funcional e fantástico, mas igual a outros seis ou sete, sem nada que o diferencie”. “No velho Wembley, mal entravas lá, sentias-te diferente”.
Wilson concorda, apontando para os “rituais”, como os “39 degraus que se tinham de subir para recolher a Taça ou a Wembley Way e a longa rua que se tinha de percorrer do metro até ao estádio”. Ainda que, entre risos, diga que “quando, de facto, ias ao velho Wembley nos anos 90, apercebias-te que era só um estádio velho, quase a cair, e que Wembley Way era um túnel que cheirava mal com roulottes com cachorros quentes e hambúrgueres de péssima qualidade”.
Num tom mais sério, o editor da “The Blizzard” recorda que, no passado, “havia grandes futebolistas que passavam uma carreira sem jogar em Wembley”, enquanto agora, todas as temporadas, lá se disputam não só a final e a meia final da FA Cup, mas também a final da Taça da Liga, os play-off de subida à Premier League, os jogos de Inglaterra, amigáveis de outras seleções ou finais de Champions. “Deixou de haver aquela ideia de ‘ganhar o direito a jogar em Wembley’, porque muitos jogadores por ano actuam lá”, sustenta Wilson.
Mourinho ergue a FA Cup de 2007, na primeira final do novo Wembley. É o único treinador nacional a ter ganho o troféu: Portugal, Espanha, Países Baixos, Itália e França são as únicas nações não britânicas cujos técnicos venceram a FA Cup (Foto:Phil Cole/Getty Images)
Jonathan Wilson, que recorda que “a FA Cup continua a ser importante e a ter mística, simplesmente já não é tão especial e mágica como foi nos primeiros 130 anos de existência”, aponta dois últimos factores para a perda de relevância do torneio. Por um lado, “a qualificação europeia perdeu valor”, visto que “as equipas que têm disputado a final já costumam ter bilhete europeu garantido”; por outro, no passado ficar em 11.º ou 14.º na Liga era mais ou menos indiferente, pelo que valia a pena apostar na Taça. No entanto, agora “quem ficar em 10.º na Premier League ganha, por exemplo, 179 milhões de euros, enquanto quem terminar em 14.º ganha 143 milhões de euros, e esse dinheiro faz mais diferença para um clube do que conquistar ou não a FA Cup”, salienta o autor, que recorda que, nos últimos anos, tem de “ser dado valor a Wenger”, por “nunca ter colocado a prova num segundo plano”. O treinador francês é o técnico que mais vezes conquistou a competição, com sete triunfos pelo Arsenal.
Por muito que o tempo e as particularidades do futebol moderno tenham deixado as suas marcas na Taça de Inglaterra, é evidente que os propósitos de Charles W. Alcock foram amplamente cumpridos. Não só o torneio consolidou o papel da FA Cup, como foi fundamental para popularizar o futebol em Inglaterra e, consequentemente, no mundo. Uma final em Wembley é uma espécie de entrada num templo do jogo, com os seus rituais e costumes bem presentes.
Gustavo Poyet, autor de um dos últimos golos da história da FA Cup no velho Wembley, sintetiza o simbolismo da prova: “Podes ter uma carreira brilhante, mas há jogos que te marcam. Ser o herói de uma tarde de futebol em Wembley na FA Cup é algo que não tem preço. Quando marcas lá um golo e olhas para os adeptos nas bancadas, sentes que eles estão a voar, parece que estão noutro mundo”. No mundo dos sonhos da FA Cup, um planeta com século e meio de existência.