Não, “no fat”, tem de repetir, arrastado para o remoinho da tradução no qual se perde o empregado de mesa, ele é sorridente, prestável e bem-disposto e nada se lhe pode apontar além da trapalhice linguística. Capta o inverso do que João Nunes realmente deseja submeter ao estômago, pode ser do ruído musical a pairar no ar, ou pode dever-se às tropelias do inglês. Quando quem serve entende a intenção do servido já o português descortinou uma salada de frango na ementa, “é isto mesmo”. Opta por banhá-la com uma limonada.
Nem 19 horas são e estamos à beira-passadiço, com vista para o rio, em Bálna, no sul de Budapeste e na margem do Danúbio onde residem as duas últimas sílabas da capital húngara. João veio de trotineta elétrica, “dois ou três minutos” de casa e estava aqui, onde tem os arraiais postos há um ano, mas o que se há de fazer? “Isto é espetacular”, diz ele, repetindo o uso que dá ao telemóvel para fotografar a beleza do dia a cair de sono, quando já sentados estamos, à mesa. “É uma cidade fantástica”, elogia, “cheia de vida” e “não [lhe] custa fazer a viagem” até Felcsút.
É lá que joga pelo Puskás Akadémia FC e os “30 ou 40 minutos” ao volante “não fazem diferença”. O português fala na mordomia da autoestrada e no conforto que prefere ter em Budapeste, onde está “o equilíbrio entre a vida social e profissional”. João fez-se defesa central em 12 anos de Benfica, virou graúdo e emigrou. Esteve um ano com o Panathinaikos, na Grécia, onde “com tanto problema, não há estabilidade para um jogador estar tranquilo e fazer o seu trabalho”.
Já vinha de três épocas no Lechia Gdansk, da Polónia, onde conheceu a namorada e com quem “pode ir dar um passeio, ir almoçar a algum lado”, o que lhes der na gana, por isso fizeram questão em serem fregueses de Budapeste em vez de Székesfehérvár - santinho, apetece dizer - onde “muita gente” que joga ou trabalha no Puskás Akadémia “fica a viver”. João pronuncia sem delongas a cidade onde nasceu Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, mas não fala magiar, é incapaz, ainda pediu ao clube para ter aulas, mas queixa-se da fonética difícil.

Barbara Gabriella/Puskás Akadémia FC
O que o capacita na Hungria, de momento, são dois cartões que leva na carteira: um, a espécie de bilhete de identidade, o outro, que valida a sua imunidade. Já foi vacinado “há meses” contra a covid-19, como cerca de dois terços da população. É o que permite estarmos quase geminados com outras mesas, Bálna é lugar de cafés, bares e esplanadas várias e as pessoas passeiam-se sem máscaras.
Não era assim quando João Nunes cá chegou, nem foi isso que o seduziu e ser todo ele um sorriso andante de calções, t-shirt e óculos de sol quando nos encontramos e o primeiro contacto é um passou-bem. Os punhos fechados de cumprimento, banalizados pela pandemia, já são menos comuns na Hungria.
O português, de 25 anos, quis vir para Budapeste quando o clube - “muito recente, só tem 16 anos” - lhe apresentou um projeto “muito interessante”, um goulash com mistela entre jovens da formação com “alguns jogadores húngaros e estrangeiros com experiência”.
Isso ficou-lhe na orelha antes de o centro de estágio, com “10, 11 campos, um pavilhão enorme, dividido em dois, com anfiteatros, salas de reuniões e um ginásio enorme, talvez do tamanho de um campo de futebol”, lhe entrar pelos olhos e o conquistar pelo convencimento: “É ótimo quando a pessoa quer melhorar e tem as condições todas no sítio”.

DOME LASZLO BALAZS/Puskás Akadémia FC
De convencido, João passou a surpreendido e depois a “bastante agradado” quando, em campo, percebeu que a “grande maioria das equipas tem uma preocupação em tentar jogar, ter posse de bola, sair organizado dos centrais e jogar curto com os médios, em vez de bater logo longo”. Estava à espera de chegar a um campeonato como na Polónia, onde “o jogo é mais físico”, mas não na Hungria. “Já notas que há uma preocupação diferente” e isso, aos poucos, foi chegando à seleção do país.
A refeição está de talheres arrumados quando aborda o que Portugal pode encontrar, na terça-feira. “A Hungria joga em casa, com os seus adeptos, não tem nada a perder e teoricamente está no grupo mais difícil, mas pode decidir as contas de quem passa”, resumido, sintetizando mais ainda o ponto que argumenta. “Qualquer seleção que não ganhe” aos húngaros, prevê, “vai dificultar muito as contas”. Muita gente os dá “como mortos no grupo”, mas “eles vivem muito a seleção, são um país muito patriótico”.
A mesa já recebe a sobremesa da conversa, fala-se dos húngaros “que são tranquilos” com os futebolistas quando os descortinam nas ruas; do que é ser jogador, aqui e em Portugal, do escrutínio maldizente em direto e dos insultos que lhes chegam pelas redes sociais; fala-se do que a Hungria tem para quem lá vive, seja para tipos como João, “um privilegiado” como Weslen, o amigo e companheiro de equipa, que aparece às tantas para um olá, ou para os cidadãos que cá nascem e crescem.

Diogo Pombo
João Nunes ciente está de tudo, a ponderação pauta-o, já deliberou e matutou sobre o que tem na Hungria e a vida que o levou até Budapeste; a gentileza também o guia: paga o somatório do que foi para o nosso pequeno quadrado de esplanada, “quem recebe é sempre quem paga, não te preocupes”. Provavelmente, também assim seria na embaixada de Portugal em Budapeste. “O embaixador português entrou em contacto com o clube, disseram-me que tinha ligado a pedir o meu contacto para marcar um encontro com todos os jogadores portugueses”, conta, ao lamentar como a pandemia foi adiando “um almoço ou um jantar todos juntos”.
A refeição teria de ser contida na gordura. Todos teriam o corpo a manter nos eixos, João Nunes cuida do seu e o frango com salada também se deveu à pré-época em que já está com o Puskás Akadémia. No dia seguinte (sexta-feira) viaja para a Áustria e ei-lo inquieto na cadeira, a encenar a sua reação quando soube da coincidência de estar longe de Budapeste nas datas em que a seleção portuguesa está tão perto. A azia, tão falada no futebol, entrou-lhe pela goela.
Mas a dramatização pouco dura, João Nunes já está de pé, a despedir-se e retornado aos sorrisos. Ainda vai conviver com Weslen, depois seguirá de trotineta para a casa que tem a duas ruas das beiças do Danúbio. “Não vivendo no centro, consigo ter uma vida tranquila e ter o descanso que preciso”. É uma bela vida.