Perfil

Entrevistas Tribuna

Carlos Ramos: “Na arbitragem de ténis já partimos de uma posição muito má: o jogador está em baixo e o árbitro lá em cima, na cadeira”

Sem poder falar, em específico, de tenistas, Carlos Ramos garante nesta II parte da entrevista que não levou a peito a polémica final do US Open de 2018, onde Serena Williams o acusou de sexismo e der um ladrão, porque nunca achou que fosse dirigido à sua pessoa: “Quanto mais levares as coisas de forma pessoal, mais discernimento vais perder. Vais sentir-te agredido quando a jogadora ou o jogador não te está a agredir a ti, mas ao árbitro.” E o melhor árbitro de cadeira português explica por que o Open da Austrália, onde esteve em quatro finais de singulares, era o seu Grand Slam preferido

Diogo Pombo

Na final feminina do US Open, em 2018, quando Serena acusou o árbitro português de a acusar de mentir e fazer batota

Tim Clayton - Corbis

Partilhar

Sei que não podes falar em específico de tenistas, portanto não vou perguntar acerca da Serena Williams e do episódio da final do US Open, em 2018. Mas como foi lidar com as repercussões de tudo nas semanas seguintes?
Não tenho muito o direito de falar sobre isso, mas uma pessoa adapta-se ao contexto. Foi um período em que recebi muito mais atenção do que estava habituado. Quando és reconhecido em todo o lado durante uma ou duas semanas - e não estou habituado, nem é suposto que esteja à procura disso -, logicamente que te cria coisas que não estás habituado a gerir. Mas eu acredito em gerir o que chega no meu caminho e abraçar o que chega. Acho que é saindo da tua zona de conforto que vais buscar o melhor em ti, dentro da adversidade. Não é na facilidade que tu melhoras.

Mas foste quase forçado a sair devido à circunstância.
Pois, mas na vida tens sempre a escolha de decidir como é que geres alguma coisa e o que é que pensas daquilo. Podes escolher gostar ou não gostar, de aceitar ou de não aceitar. A escolha é tua. Prefiro acolher as coisas mesmo que me possam causar sofrimento, tentar ver o que vou aprender com aquela situação. Tudo pode ser um desafio. Um jogador de ténis não existe sem adversário, tens que respeitar o adversário porque sem adversário tu não existes. Se és árbitro profissional de ténis e não tens situações difíceis para gerir, não fazes falta, não existes, porque vão deixar de haver árbitros profissionais, não precisas de um árbitro que esteja 30 semanas do ano, durante 30 anos ou mais, a viajar pelo mundo inteiro. Para eu existir, preciso de situações difíceis. Não as vou criar, mas preciso que elas aconteçam. Se fosse fácil não eram precisos árbitros profissionais a quem tens de pagar viagens em vez de teres um voluntário em cada torneio.

Mas uma coisa é passar por isso porque uma bola foi dentro e tu viste fora, outra é começares a ser acusado de ser isto e aquilo devido a algo que se passou no court que já não tem nada a ver com ténis.
Sem falar deste jogo em particular, mas, em geral, a experiência e a maturidade são muito importantes para se chegar longe na arbitragem. Todos temos potencial, mas para chegar o mais perto possível dele é importante aprender a relativizar as coisas. Isto é só ténis, não estás ali a operar uma pessoa a coração aberto, entre a vida e a morte. Estamos a falar de um desporto, de um espetáculo, um mundo em que somos todos privilegiados se comparados com uma grandíssima da população. Podemos acrescentar esta perspetiva à equação. Depois, quanto mais levares as coisas de forma pessoal, mais discernimento vais perder e menos objetivas serão as tuas decisões. Vais sentir-te agredido quando a jogadora ou o jogador não te está a agredir a ti, mas ao árbitro. Quando eu entrava no campo, aprendi com a experiência que era o árbitro a entrar. Nada daquilo é pessoal e, mesmo se for, prefiro pensar que não é, para gerir melhor.

Quando entravas em court, entravas em personagem?
Sim, tanto que vês pessoas que são muito tímidas a serem capazes, no seu ‘espetáculo’ e trabalho, a fazerem-no. Há mulheres que vão ao Moulin Rouge e estão praticamente nuas no meio de uma sala de espetáculos e seriam incapazes de fazer o mesmo na praia, em público. Há pontes entre o pessoal e o profissional, mas temos de tentar separar as coisas o mais possível. Para mim, o que acontece no campo fica no campo, é entre os jogadores e o árbitro. Tive jogadores em que depois me perguntaram se o ou a tenista me pediram desculpa, e eu: “Mas isso não me interessa, nada daquilo foi pessoal”. O jogador fez o seu melhor, eu fiz o meu. Não é pessoal e já está. Idealmente, gosto que as coisas fiquem no campo. Tive muitos jogos em que, depois, falei com jogadores, supervisor, juiz-árbitro e treinadores, aí continuava a ser profissional. Depende muito do caráter das pessoas qual era o melhor momento para se falar, às vezes o bom momento é imediatamente, mas no dia seguinte, ou depois de tomar um duche, era o melhor, as pessoas arrefecem um bocadinho. O importante é não misturar o pessoal e o profissional.

Mas é preciso ter muita presença de espírito para ter essa separação sempre presente.
É uma das vantagens da idade. Não precisas de ter 52 anos, mas é mais fácil quando tens 40 do que quanto tens 25.

Gostavas desses momentos em que havia tempo para privar com tenistas?
Sim, porque o problema ficava resolvido. Não íamos jantar, mas às vezes falávamos em encontros na bancada, quando alguém vinha ter contigo ou se marca mesmo uma reunião com o juiz-árbitro. Quase sempre essa reuniões eram muito positivas e encontrava-se um entendimento.

Artigo Exclusivo para assinantes

No Expresso valorizamos o jornalismo livre e independente

Já é assinante?
Comprou o Expresso? Insira o código presente na Revista E para continuar a ler
  • Carlos Ramos, o árbitro português que esteve em 10 finais do Grand Slam e fala muito sem poder falar de ninguém
    Entrevistas Tribuna

    Aviso à navegação: esta I parte da entrevista a Carlos Ramos será como a II, porque o português, mesmo retirado de ser árbitro de cadeira, ainda é juiz-árbitro e está impedido por um código de conduta de falar em tenistas que estejam no ativo. Aos 52 anos, despediu-se no Estoril Open, anunciando com surpresa a sua ‘reforma’. Confessa que já ter de usar óculos lhe pesou pela imagem que passava para fora, fala da “corda bamba” do erro a que os árbitros estão condenados e explica como, no court, decidia pouco com o instinto

  • Carlos Ramos, o árbitro que Serena Williams colocou no olho do furacão
    Ténis

    Serena Williams voltou a entrar em colisão com a arbitragem portuguesa em prime time no US Open. Há 14 anos, problemas num encontro dirigido por Mariana Alves aceleraram a adoção da arbitragem eletrónica; no passado sábado, o confronto com Carlos Ramos pode mudar a regra do aconselhamento técnico desde o exterior. Mas foi sobretudo um incidente de repercussões sociológicas à escala global, transformando aquele que é provavelmente o mais credenciado árbitro português (em todas as modalidades) simultaneamente num herói e num vilão. Quem é Carlos Ramos? Frequentador habitual (e também comentador) dos torneios do Grand Slam, o jornalista Miguel Seabra aborda a polémica com uma prévia declaração de interesses: é seu amigo