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Carlos Ramos, o árbitro português que esteve em 10 finais do Grand Slam e fala muito sem poder falar de ninguém

Aviso à navegação: esta I parte da entrevista a Carlos Ramos será como a II, porque o português, mesmo retirado de ser árbitro de cadeira, ainda é juiz-árbitro e está impedido por um código de conduta de falar em tenistas que estejam no ativo. Aos 52 anos, despediu-se no Estoril Open, anunciando com surpresa a sua ‘reforma’. Confessa que já ter de usar óculos lhe pesou pela imagem que passava para fora, fala da “corda bamba” do erro a que os árbitros estão condenados e explica como, no court, decidia pouco com o instinto

Diogo Pombo

Tim Clayton - Corbis

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Sem balizas de tempo, era suposto, contudo, que a conferência de imprensa fosse breve pela expetativa fundada sabe-se lá onde. A um canto da área reservada para as tenistas que a toda a hora se veem a cirandar no Clube de Ténis do Jamor, por ocasião da Billie Jean King Cup, montou-se uma área para dezenas ouvirem a despedida de uma voz. A pedido de Carlos Ramos, sentindo-se inundado por congratulações e mensagens, organizou-se um evento para o árbitro português com maior carreira feita se despedir, dizer umas palavras, responder a questões e retribuir o carinho que confessou sentir após a final do Estoril Open, onde anunciou a retirada.

Uma hora e meia depois, ainda estava alegremente a falar, como se os pontos finais não tivessem sido inventados.

Carlos Ramos é um conversador nato. Pede que o tratamento seja por tu, fala sem freios, tece novelos próprios de argumentação em voz falta mesmo que a pergunta não lhos peça, corteja facilmente a fronteira entre a divagação e a mira presa ao nervo do tema. Poderá ser a força do hábito. O português nascido na ainda colónia de Moçambique, de onde fugiu com os pais da guerra, foi árbitro de ténis durante mais de 30 anos, entrado nos courts a empurrão do insucesso como guarda-redes de futebol - tinha fraca figura, era muito pequeno - e da aptidão que julgou pequena para fazer carreira de tenista - tinha talento e técnica de mãos, que descreveu como insuficientes.

Era 1991 quando se estreou em Grand Slams, apalpou terrenos enquanto juiz de linha e mais tarde, sentado na cadeira, colecionou 10 finais além da decisão dos Jogos Olímpicos de 2012, em Londres. Mencionou, repetidamente, a sorte que teve, citou nomes de predecessores (Jorge Dias) e contemporâneos (Carlos Sanches e Mariana Alves), estimou a correção a que almejou no trato com toda a gente. Falando pelos cotovelos para todos até ao fim da manhã, Carlos Ramos abusou do seu latim para conversar, ao longo da tarde, individualmente com quem aparecera para o entrevistar.

Ficamos para último, o que significa uma conversa à mesa já com o sol a preguiçar-se. Sorridente e prestável, Carlos cumprimenta e fala com inúmeras pessoas, dedica a atenção a muitas. No domingo anterior, sentado na cadeira que o elevou na final do Estoril Open, arbitrou o seu último encontro e deu conta da decisão apenas na véspera. Apesar da ‘ginástica’ para os olhos com que se tratou ao longo dos anos, os dias a mecanicamente seguir bolas batidas a velocidades que seriam criminosas na auto-estrada acabaram.

Carlos Ramos não mais será árbitro de cadeira, mas continuará como juiz-árbitro a supervisionar torneios, jogos, tenistas e colegas fora dos courts. É a condição que o mantém ligado ao código de conduta da arbitragem que o impede de falar de jogadores. Ele cumpre-o à risca, fintando elegantemente menções a Roger Federer, Rafael Nadal ou Novak Djokovic, monstros da raquete que arbitrou fora inúmeros outros nomes mais terrenos - obviamente, o tema Serena Williams só lhe encontra voz na periferia, mas lá iremos na segunda parte da entrevista.

Esta primeira versa sobre inseguranças, a perceção que um árbitro estar na cadeira de óculos postos transmite, a dificuldade em manter a atenção na bola, os ‘perigos’ dele, sentado no melhor lugar do court, se distrair com a estética que tem à frente ou a direção que o ténis está a tomar. Devido às fronteiras das regras, Carlos Ramos não pode falar de muita coisa, mas fala muito.

O Estoril Open foi a primeira vez que subiste à cadeira de árbitro de um torneio de óculos postos?
Não foi o primeiro que eu subi de óculos, o primeiro foi Wimbledon do ano passado, no qualifying. Eu, aqui no ano passado, nos Challengers, arbitrei de lentes, porque já não passava os testes. Pronto, as pessoas não reparam, mas eu não me conseguia habituar. Sentia muita dificuldade, tinha a ver com as lágrimas e se as lágrimas são eficientes ou não, e não sei o quê. Para já, era chato como ó caraças, se tens que estar a pôr e a tirar, e depois tens que tirar quando tomas um duche, ou se vais à piscina. Achei muito pouco prático. Logicamente que é prático, não tens que andar com os óculos atrás, como eu agora ando. É prático não ter que andar com os óculos atrás, mas não achei as lentes muito práticas e, para mim, não só não eram muito práticas, como era desconfortável. Parecia que tinha dois crepes nos olhos, aquilo deixava-os meio-secos. Lembro-me de um ponto aqui, no Centralito, onde estava uma vez a arbitrar, foi muito longo e, de um momento para o outro, parecia que a lente queria sair. Parece que se tem areia nos olhos. Pensei, não, tenho que deixar isso, tenho que assumir ter que andar de óculos.

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