Avassalador e decidido, o Sporting engoliu o Vitória no ímpeto que Rúben Amorim quis serenar, mas foi exacerbado pelo clima que se viveu em Alvalade. Os leões venceram (3-0) com a fúria de Gyökeres devolvida aos golos e outra prova da evolução (e versatilidade) do jogo ofensivo da equipa. Tudo é possível no futebol, disse antes o seu treinador, mas já só faltam duas vitórias para, três anos depois, o Sporting ser campeão nacional
Mesmo se inexistente, de facto, por dentro, onde as lentes das câmaras e o alcance dos microfones não estão, a prudência discursiva de Rúben Amorim entende-se. Se não quando ouvida, pelo menos quando uma das suas causa é comprovada: com a tarde a minguar, uma maralha de gente em êxtase cercava o Estádio de Alvalade à chegada do autocarro do Sporting, a brisa vinda das bandeiras agitadas a soprar no fumo das tochas e, depois, com muitos desses adeptos dentro do recinto, as bancadas rugiram mais do que vibraram, a reverberação do som é distinguível de um simples aglomerado de crentes que gritam para uma massa que se descontrola nos decibéis devido a essa crença.
Ainda os adeptos entoavam o cântico que embala a equipa para os jogos em casa, a bola livremente rolar, e já se observava o método desenho pelo treinador da boina com o intuito de estancar o que o ruído vindo das bancadas faz soar a inevitável. Com linha defensiva assente em cinco homens, três médios a cerrarem fileiras à frente deles e dois atacantes em permanência por detrás da bola, o Vitória de Álvaro Pacheco vinha para emperrar o clima de festa. Com o bloco baixo no seu meio-campo, mas os jogadores agressivos a fazerem-se às ações dos adversários, o Sporting acusou intermitentemente essa intenção.
Com os defesas a manterem-se perto da sua área, tirando o espaço que tanto apreciam, os viajados de Guimarães obrigavam os leões a terem de ser mais engenhocas por outras vias. Com os alas do Vitória a fecharem na linha dos centrais, uma das hipóteses era o Sporting explorar os seus. Com Geny Catamo depositado à direita, a ginga do moçambicano virado ala poderia desmontar estruturas e isso fez quando Daniel Bragança o viu na área, cruzou um passe teleguiado e ele, simulando e fintando, rematou para só Borevkovic, em cima da linha, impedir o golo. Quando não dedicado a cortes de emergência, o defesa croata foi o vigia fiel das desmarcações de Viktor Gyökeres, anulando com controlo os lançamentos feitos de longe para o sueco dar uso à sua potência.
A outra hipótese, mais difícil de amparar, era o que originou o passe que chegara a Catamo. Uma das vantagens de confiar na erupção, finalmente, de Bragança no onze do Sporting com a sua carapaça hoje mais potente e musculada para proteger o seu pé esquerdo de caxemira, é a sua queda para correr em movimentos de rutura dentro do bloco adversário. Quando atacou o espaço na área enquanto, à direita, uma triangulação era mastigada, Trincão picou uma bola de receção difícil ao seu encontro. O resto foi uma sucessão de acontecimentos um tanto casuísticos: o ineficaz controlo de bola de Bragança originou uma carambola, pernas discutiram-na no chão e Pedro Gonçalves aproveitou a sobra para marcar (30’) pela 11.ª vez no campeonato.
Não foi um dos seus habituais passes à baliza, longe disso, a bola igualmente lhe saiu aos saltos e como deu, o Sporting dava o que tinha sem denotar a exacerbação de nervosismo que existia nas bancadas.
O golo acentuou a efervescência, a energia era palpável e o risco de se transplantar para os jogadores é real, em Alvalade ou em qualquer estádio. Na jogada seguinte, o arrojo posicional da defensiva do Sporting jogou com as suas chances ao ver Afonso Freitas ser lançado na pradaria de espaço nas suas costas, pela esquerda. Mais do que isso, pareceu ser o elástico puxada atrás na fisga precipitada de Franco Israel. O guarda-redes saiu a correr da baliza e abalroou, ou talvez atropelou, o adversário, nesse choque de corpos terá havido nervosismo, o que o braço do árbitro apontado à marca de penálti acentuou antes de remediar o gesto e esticar o membro para cima, indicando um fora de jogo.
Os 70 centímetros dessa revelia que ‘salvou’ o Sporting também aumentou o volume do alarme. Estridente no som, o despertador foi total.
O Vitória que respirava só pelas iniciativas esguias de Kaio César, hábil atacante brasileiro que Tomás Handel e Tiago Silva, os médios asfixiados na pressão imediata dos leões, cedo procuravam nas jogadas, foi engolido pela quase tristeza sofrida pelo Sporting. A equipa cortejou a velocidade, provou que depressa e bem há mesmo quem e, nesse quarto de hora anterior ao intervalo, assomou o adversário com a sua produção ofensiva cheia de diversificação. Os leões tentavam ir por fora, se não dava reciclavam a bola, procurava nesgas por dentro e até iam ao outro lado do campo, jogavam com a versatilidade que mais exige dos adversários se a quiserem travar.
O segundo golo (45’+3) foi obra de uma equipa confortável a ser multifacetada. Pote e Daniel Bragança juntaram-se ao centro, onde o centímetro de relva era caro, bem por dentro do bloco do Vitória e nem a um metro um do outro, o médio que também se farta de pedir a bola entre linhas tocou de primeira para o ex-médio e este a um toque desmarcou Gyökeres na área. A curta diagonal do sueco em fúria que andava há cinco jogos sem entrelaçar os dedos e cobrir meia cara com as mãos. Se não dava para soltar o avançado como um cavalo selvagem na pradaria, a equipa tricotava uma jogada para o descobrir nos espaços curtos.
PATRICIA DE MELO MOREIRA/Getty
Alvalade estremecia no descanso, a barulheira em auto-gestão completa, descontrolo a sair gargantas fora que os leões estimularam ainda mais quando regressaram ao campo. Cedo os jogadores do Sporting foram a prova em movimento do crescimento do modelo de jogo com que Rúben Amorim os estimula, quando Trincão, o extremo à direita, se juntou ao lado oposto do ataque para fazer uma curta desmarcação rumo à linha de fundo e Pote, o outro extremo, o servir - e o ala, Nuno Santos, metido por dentro e uns metros à frente dele. A variação posicional acabou com Trincão a servir uma bandeja de facilidade para Gyökeres encostar (49’) o terceiro golo. As hostes barulhentas descontrolaram-se ainda mais.
E o Sporting não aparentava sintomas de outras núpcias, não recuou as linhas, muito menos abrandou, a equipa rendia-se ao seu ímpeto. Bragança rematou de longe, Trincão tentou o seu também, Hjulmand foi a pedra de toque das saídas de trás quando Álvaro Pacheco deixou de esconder o atrevimento debaixo da sua boina e deu Jota Silva e Nuno Santos ao jogo. O enérgico avançado foi liderar a pressão alta do Vitória e o técnico médio dar truques à bola para que os vimaraneses pudessem aspirar a alguma coisa. O internacional português da bandolete incomodou, o talentoso das ideias teve apontamentos bonitos, mas os visitantes não foram além de ligeiros fogachos.
Nunca o Sporting se desconfortou com a mudança de postura do Vitória. O seu médio dinamarquês, um farol loiro a dar-se como opção na construção baixa com os alas e a equipa a descobrir caminhos curtos para avançar no campo sem depender dos lançamentos diretos para Gyökeres. Confiantes se mostraram os leões, o sueco furibundo, a bufar dos motores como se os golos ainda o evadissem.
Também isso é contagiante: às tantas, chegou a parecer que cada jogada tentada pela equipa conseguia ficar a meros metros da baliza, de um remate, de mais uma exacerbação de alegria em Alvalade.
Houve indícios de tal pela pessoa de Marcus Edwards, o por vezes apático e outra vezes genial inglês, que com Paulinho refrescou o ataque quando já era o inconsequente Vitória, manietado pela serenidade controlada do Sporting. Quando o fim chegou, mal se ouviu os derradeiros três apitos do árbitro. Estavam diluídos no ruído de uma arena em ebulição, meros beliscões de som protocolar engolidos pela antecipação do que milhares de esperançosos avistam no horizonte.
Os leões foram dormir com duas vitórias em falta para serem campeões, exigência que poderá diminuir dependendo do que o Benfica consiga no dia seguinte. A comunhão entre jogadores e adeptos ocupou um estádio nem sempre rendido à relação, impaciente à mínima contrariedade em épocas recentes mas fervorosamente a fim de elevar o otimismo aos céus por estes dias. Avassalador, constante e capaz de arranjar soluções para os mais variados problemas, o Sporting, mais do que nunca esta época, também parece ser inevitável.