Foi encontrado, no Porto, o corpo moribundo do Benfica. O crime: atropelamento e fuga
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Nunca pareceu, no Dragão, haver em campo sequer uma lógica parecida à diferença de nove pontos que separava os rivais no campeonato. Desde o primeiro minuto, o FC Porto manietou (5-0) o Benfica pela estratégia, pelo arrojo e por um plano que nunca deixou os encarnados sequer reagirem. Quando Otamendi viu o segundo cartão amarelo, na segunda parte, a equipa já sofrera três golos (dois de Galeno). Pela segunda vez em quatro dias, Roger Schmidt foi ultrapassado taticamente por um dos rivais - desta feita, durante todo o jogo
Fora a cabeça de Pepe, escurecida pelo tímido cabelo a crescer e não esbranquiçada graças ao habitual corte rente à pele, o primeiro vislumbre do clássico no Estádio do Dragão devolvia outra estranheza, um sinal inesperado face à magnitude da ocasião. Ainda se espreguiçava o segundo minuto de jogo, o FC Porto tinha a bola e levou-a bem à direita do ataque, à rebeldia de Chico Conceição, que a recebeu e se viu à frente com três jogadores de um acautelado Benfica, dispostos no seu caminho. Um era João Mário, o outro Kökçü e o mais próximo Morato, mas nenhum deles decidiu fechar o caminho de perto ao canhoto que, então, se prestou às suas manigâncias, simulou que ia pela esquerda, foi pela direita e cruzou.
A correspondência pingou sobre a cabeça de Evanilson, um corpo isolado na área, pontuado pela testa que enviou a bola às mãos de Trubin, desaproveitando a veleidade. Tão cedo, logo no arranque, com as cabeças e as pernas frescas, a equipa do Benfica aparentava passividade, quase uma postura de esperar em vez de agir com ares de ‘vamos ver no que isto dá’ divergentes do tanto que o jogo tinha em jogo: não levando pontos da casa portista, voltariam para Lisboa ultrapassados pelo rival lisboeta na liderança do campeonato. Com engordar do relógio a passar o algodão no relvado, porém, entendeu-se que o desatino viera na bagagem trazida para o jogo e não tanto na atitude.
Na primeira parte o Benfica jogou menos do que viu jogar, ou o forçaram a deixar de jogar, quase manietados pelo plano que treinador que se preze saberia que Sérgio Conceição induziria nos seus jogadores. Movidos por uma missão, as ações dos dragões pareceram desde o início premeditadas como é suposto serem, a forçarem comportamentos para depois aproveitarem as consequências que cedo se viram. Deixando os centrais Otamendi e António Silva terem a bola, o FC Porto preocupou-se em barrar caminhos ao centro mas convidando os encarnados a tentarem-nos caso se atrevessem, pedindo a Galeno e Conceição que pressionarem de fora para dentro na linha dos laterais. Pela forma de defender, forçavam a equipa da Roger Schmidt a encavacar-se: arriscava um passe nos médios, sempre com alguém na sua sombra, ou remetiam-se às bolas longas.
Quase sempre, a falta de soluções redundou o Benfica na procura de corridas de Rafa com mira nas costas dos centrais, onde ele teimava em tentar as de Otávio, o recém-chegado que agora é o mais rápido e ágil dos defesas a cuidar do espaço entre a última linha e a baliza. De igual forma, o útil Tengstedt se usado para ameaçar essa profundidade não tinha jogadas que vivessem tempo suficiente para fazer essas corridas. Kökçü, remetido à esquerda, era um fantasma no relvado, perdido na muralha azul e nunca tendo bola de frente para o jogo. Os encarnados não viviam, limitavam-se a existir no Dragão à medida que o plano do FC Porto surtia efeito.
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Com Evanilson a dar-se muito ao jogo em apoio, fugindo aos centrais e baixando no campo para servir de referência, ficavam Galeno, Pepê e Chico Conceição refastelados em muitas situações de um para um com os defesas que sobravam no Benfica quando um dos centrais ia no engodo do avançado brasileiro. Isto nas vezes em que os encarnados, cientes da sua existência esburacada, não iam à área de Diogo Costa pressionar. Até ao intervalo, foram sempre ultrapassados quando o fizeram, tentando armar-se em ladrões dispondo os jogadores em linha se Alan Varela recuasse para junto dos centrais e os tirasse a todos de cena com um passe vertical.
O primeiro golo de Galeno, aos 20’, num canto, expôs o atabalhoamento do Benfica também na bola parada. O segundo evidenciou a facilidade com que, uma e outra vez, o FC Porto batia a pressão adversária e chegava à área a precisar de poucos passes. À direita, a bola parou em Chico Conceição quando os encarnados até pareciam organizados a cobri-lo, com Otamendi à cabeça, mas, de joelhos fletidos e vidrado no canhoto, o campeão do mundo argentino, do nado, deu um pulo ao lado, destapou relva ao pé esquerdo do extremo e deixou-o cruzar ao segundo poste, onde Evanilson saltou para Galeno voltar a marcar com a sua oferta, aos 44’. A vantagem era a consumação dos sinais e o FC Porto, pela chuteira do filho do treinador, teve mais hipóteses.
E de um Benfica amorfo, quase sempre incapaz de se ajustar às circunstâncias, apenas se viu até ao intervalo a adaptação de trocar momentaneamente Di María de lado, puxando à esquerda, quiçá mais para perto de um Morato para junto de quem a equipa pendia, por vezes, devido à direcionada pressão do FC Porto - a tapar com mais afinco a hipótese de uma saída por Aursnes. Com bola, de nada resultou, por contrário prejudicando os encarnados no momento da perda face à carência trazida de fábrica pelo argentino quando é momento de fechar o seu corredor. A atacar, o Benfica só teria dois momentos: um livre matreiro, marcado rapidamente por Di María para Tengstedt, na área, receber de peito e rematar por cima; e na única jogada tricotada que logrou, ao unir a calma de João Mário à bola, consegui ter Rafa a tentar na passada uma bola que foi ter com Diogo Costa.
O filme não era o mesmo, a mise en scène é que era semelhante: pela segunda vez em quatro dias, o Benfica era superado na estratégia e no plano pelo qual os jogadores se comportavam em campo.
Para entrar Florentino Luís ao intervalo no balneário ficou, sem surpresas, Kökçü, o mais flagrante dos prejudicados pela ausência de preparação e adaptação, com ele Morato e a sua corpulência e dureza de rins para lidar com os esguios rodopios de Chico Conceição, cheio de desdém a ir para cima do brasileiro. Foi substituído por Álvaro Carreras e o Benfica, de início, teve uns 10 minutos na segunda parte a empurrar os anfitriões para trás com a projeção que ganhou nesse flanco. Para tentar estancar a hemorragia pelo centro do campo, Schmidt avançou João Mário para a esquerda e alguma bola a equipa conseguiu ter mais perto da baliza alheia.
Mas, ao espreguiçar-se com esse afinco, esticando mais a equipa como o resultado assim o obrigava, o Benfica era o cobertor que destapava uma freguesia para tentar cuidar de outra. A necessidade de fazer pela vida no ataque abriu buracos que o FC Porto, mantendo os seus três mosqueteiros da velocidade na frente, esperou por bolas recuperadas para aproveitar, com pressa. E com um plano, novamente, descortinável nas suas ações.
Quando o fantástico Di María, abono da equipa já em tantas noites, fora devolvido à direita, onde rasgos de passes teleguiados no palheiro e combinações que só ele vê costumam surgir, a equipa de Sérgio Conceição saberia que o ouro estaria por ali no momento da recuperação de bola, de decidir como e para onde executar os primeiros passes. E pelo costado do pesaroso argentino zarpou Wendel, a sprintar pelo meio do campo, obrigando Aursnes a ter de optar entre sair-lhe ao caminho ou ficar com Galeno. O norueguês escolheu o mais recente convocado à seleção brasileira, que assim passou ao extremo que lhe devolveu a cortesia. Aos 55’, as intenções de reação do Benfica levavam uma machadada que punha o Dragão a soltar fogo de artifício, literalmente.
O que cortou a raiz de qualquer pretensão de quem viera de Lisboa aconteceu cinco minutos depois, a perna de Otamendi a desferir esse golpe quando rasteirou Chico Conceição perto da linha lateral. O segundo cartão amarelo tirou ao Benfica um jogador e a esperança, ninguém precisando de elaborar o pensamento face ao cenário: se com onze em campo fora o que foi, como seria com apenas dez?
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Foi a continuação de uma espécie de massacre, um abrir de garganta do estádio para ser ouvido além Douro. Quando Sérgio Conceição, sempre irrequieto no banco, se virou para a bancada e mostrou o símbolo do clube tricotado bordado na camisola, bateu com a palma no peito. O coro de gritos no Dragão acentuou-se e já o Benfica estava moribundo, a contorcer-se na relva perante o atropelamento que ainda não tivera a fuga final do FC Porto. De entre as várias oportunidades que criou, entre um cabeceamento de Nico González, sozinho na área, o brusco remate de Chico Conceição de longe, foi uma correria de Pepê, pela direita, a furar a última maleita na baliza de Trubin. Quando o 4-0 entrou ainda restavam 15 minutos por jogar.
Perante um corpo letárgico, reduzido a fazer os possíveis para estancar um cerco e proteger a área contra o crescimento de uma humilhação, o FC Porto abrandou o ritmo. Trocou a bola com outra pausa, alguma calma a interromper a fúria enquanto jogadores saíam do banco e outros lá se sentavam. David Neres, sozinho, era o único capaz de tentar saltar a linha do meio-campo para um rouco canto do cisne. Não mais o Benfica ameaçou sequer rondar a área dos dragões que, de um costado, terão sentido a pressão de que um certo tipo não abdica, como diz e repete. Com a exigência do seu treinador, o FC Porto acabou a retomar o assomo à baliza de Trubin, rodeando a área dos seus para ficar com ressaltos e segundas bolas se as primeiras tentativas esbarrassem em algum adversário.
Numa dessas últimas recolhas e reciclagem de jogadas, Nico González tocou para a direita, Jorge Sánchez teve tempo e cruzou com mira no castigo dado por Danny Namaso, cujo salto e a cabeça embrulharam o jazigo onde os dragões depositaram o corpo de um Benfica desprovido de vida, roubado da capacidade de remediar o que fosse. Com um 5-0 e tanto ruído de apoteose na arena, o árbitro nem com um minuto compensou o atropelamento e fuga cometido diante de tantas testemunhas, milhares, que tornavam fácil radiografar o que se passou no Dragão: em hora e meia, quem seguia a nove pontos do líder do campeonato superiorizou-se em tudo o que é métrica, nuance, comportamento ou o que for do jogo de futebol que se realizou.
Quando soou o último apito, Sérgio Conceição abriu os braços e com um dedo apontou ao seu relógio, piurso pelo tempo terminado antes de tempo. Nesse laivo do treinador do FC Porto está guardada muita dose do que explicará um tão desequilibrado clássico, escavador do fosso inesperado no campo que não apagou, só diminuiu, o que continuará a separar as equipas na classificação: podem gabar as bocas que espumam com atitude e querer nos jogadores do FC Porto, mas é redutor, demasiado até, justificar a goleada só domínio intangível da atitude. Não, no Porto houve uma equipa a ser melhor porque se preparou para ferir onde podia ser mais letal e provocar no adversário as situações que pretendia para o invadir com castigos.
A pior das derrotas de Roger Schmidt no Benfica foi, apenas, a quinta do treinador no campeonato. No final, cáustico como lhe é característico, o alemão consentiu sem hesitações: “Não foi o nosso dia, de todo, tecnica, tatica e fisicamente.” A razão escuda-o em todos esses aspetos. Admitiu que perder assim, desta forma, “é um desastre”. E no desfecho, como no início, a estranheza estava presente, porque será sempre de estranhar um técnico de um grande ser superado em toda a linha pelas artimanhas de um rival que conhecerá bem, ou deveria. O corpo do Benfica dormirá esta noite no Dragão, lá jaz, mas o futebol de campeonato compensá-lo-á com a simples benesse que se resume facilmente: há 10 jornadas em falta e cada jogo é um sol-posto que dá lugar ao nascer de outro.
Estranho também será se a equipa, e o treinador, não retirarem lições do que aconteceu.