Não muito longe da capela perto do túnel de acesso ao relvado, que se trata na verdade de uma santa entalada entre duas paredes, José Mota confessou à Tribuna Expresso que gostava de ver os anos 90 plasmados no São Luís. Queria que aquele estádio fosse uma fortaleza, que fosse difícil passar ali, que os fantasmas de Hassan, Hajry e Pitico andassem despertos. É preciso conhecer o passado, avisou, para reavivar-se mística, alma, crença e vontade. Afinal, a nostalgia também pode ser útil.
E foi isso que aconteceu esta noite no Farense-Sporting (2-3). Aconteceu de tudo. Cinco golos, uma expulsão, lamentavelmente uma lesão, penáltis, golaços de livre direto, bons momentos de futebol, minutos caóticos, treinadores ansiosos, operários comprometidos, treinadores orgulhosos, artistas e amores correspondidos, sururus entre futebolistas e uma cidade inteira a soprar nas costas dos seus rapazes fardados de branco. Viu-se uma resistência poética. Observou-se ao gigante cambaleante a procurar o caminho para a felicidade. Mas, e isto é definidor do fado do jogo, testemunhou-se também o regresso de Viktor Gyökeres, um panzer com pés ora de bailarina, ora de panzer. O avançado sueco é uma barbaridade. Impiedoso, irrequieto, inconsolável, incontrolável, fez dois golos de penálti, não tremendo nem um milímetro no derradeiro, a poucos minutos do apito final quando ainda estava 2-2.
Sem surpresas, cedo o Sporting tomou conta do jogo. Conseguiu colocar Ricardo Esgaio, Marcus Edwards e Pedro Gonçalves em situações de vantagem. O Farense, orientado pelo estratega José Mota, estava montado num 4-3-3 solidário, com muita gente a correr muito. A primeira contrariedade para os visitantes aconteceu à passagem do minuto 12: o capitão Sebastián Coates sentiu uma dor e foi substituído por Matheus Reis. Gonçalo Inácio passou a ser o patrão da defesa, no centro.
Para compensar essa notícia desavinda, pingou um penálti para o Sporting pouco depois. Gonçalo Silva colocou a mão na bola, quando Pedro Gonçalves já se preparava para celebrar o 1-0. O central do Farense viu o cartão vermelho, o que obrigou Mota a puxar Cláudio Falcão para a defesa. Viktor Gyökeres, de regresso ao 11 de Amorim (por Paulinho), bateu forte e para o lado vazio, 1-0.
Os senhores da casa nunca perderam o discernimento e continuariam a competir.Fabrício Isidoro, filho de Paulo Isidoro, uma lenda do Atlético Mineiro que integrou aquele mágico Brasil de 1982, corria por toda a gente. Mattheus Oliveira, ex-Sporting, revelava uma canhota maravilhosa. Marco Matias e Mohamed Belloumi colavam-se à defesa e tentavam esticar o campo para a frente. Seria possível ver o Farense a defender numa espécie de 6-2-1, com o pobre Bruno Duarte a fazer tudo o que angustia um avançado: defender, defender, defender e quase não cheirar a bola.
Os leões iam mandando no jogo, ainda que não soubessem como esmagar ou domar os leões de Faro. Hidemasa Morita ia encantando os que se deixam encantar por aquele toque de bola e pela útil beleza do seu jogo. Depois de Falcão ameaçar a baliza de Antonio Adán, um guarda-redes que já deu mais garantias, um canto para o Sporting originou o 2-0. Uma bola sobrou para a entrada da área e Pedro Gonçalves, sábio do golo, bateu na bola com uma qualidade imensa. Fez lembrar os golos de gente como Robert Pires, que fazia o suficiente, sem estridências, para ser eficaz. Tremendo golo de Gonçalves.
O jogo parecia resolvido. Mas não podia estar mais longe disso. O maior elogio que se pode fazer a este Farense e ao São Luís, sedento de jogatanas como esta, com um cheirinho espectacular a anos 90, é nunca se terem desligado do jogo. José Mota terá muito para se envaidecer. A equipa manteve a concentração, tentava bloquear o jogo interior do Sporting e depois desdobrar-se a fechar os homens perto do cal. Foi um trabalho hercúleo que seria recompensado.
Antes e depois do intervalo, Mattheus Oliveira, filho de Bebeto, o tal bebé que milagrosamente foi embalado em 1994, meteu-se estrondosamente na história do jogo. Com dois livres diretos, um deles depois de uma falta de Nuno Santos que deixou algumas dúvidas, o brasileiro empatou o jogo. A forma como bate na bola é de craque. O brasileiro, na flash interview, responsabilizaria o trabalho que faz nos treinos. Que refrescante é ver golos de livre direto, não é?, algo cada vez mais raro.
Por esta altura, Paulinho já estava em campo. Entrou ao intervalo por Morten Hjulmand, que correu o seríssimo risco de ver o segundo cartão amarelo por falta sobre Fabrício Isidoro.
O Sporting passou a exagerar nos cruzamentos, ainda que com Gyökeres e Paulinho por ali pudesse dar sumo gostoso. Amorim explicaria que por dentro era impossível. O Farense manteve-se sempre sóbrio, sério e competente. A acreditar até que poderia fazer algo mais. Ricardo Velho, o guarda-redes que defendia a equipa de branco, foi bloqueando todas as tentativas dos avançados forasteiros, nomeadamente de Paulinho, Pedro Gonçalves e até Gonçalo Inácio tentou de longe.
Os treinadores mexeram. Zé Luís já havia entrado no Farense para aproveitar o espaço nas costas da defesa leonina. Amorim lançou Geny Catamo, por Ricardo Esgaio, quase sempre fiável (com bola) até ao momento em que tem de fazer algo concreto no ataque, seja último passe, cruzamento ou até remate.
Os 6.020 adeptos no São Luís iam vivendo uma bela noite, o jogo estava bom, ainda que angustiante para os que vieram lá de longe e ingrata para os que não mereciam ver os seus apenas com 10 jogadores.
Os resistentes iam resistindo. O Sporting demorou a convocar a serenidade para aproveitar e provocar espaços. Daniel Bragança terá estado para entrar ao intervalo, mas Rúben Amorim terá mudado de ideias à última hora. As certezas e a criatividade do canhoto podiam ajudar a clarear as ideias. Pedro Gonçalves, dentro da área, rematou perto do poste. Mattheus Oliveira disparou uma bala, piscando o olho ao hat-trick. Voou Adán.
Com pouco mais de 10’ para se jogar, também Rui Costa já andava pelo verdinho relvado do São Luís – é um avançado com uma qualidade admirável. Zé Luís, bem colocado na área, tragicamente atirou a bola para longe da baliza. Há muito que Gyökeres não era servido convenientemente. Marcus Edwards também estava desaparecido… até que, aos 87’, sofreu um penálti (talvez duvidoso…) quando ia tirando do caminho um, dois, três e quatro adversários. O sururu entre os jogadores ia-se multiplicando.
Gyökeres voltou a colocar-se à frente da bola, de Velho e da velha baliza. Golo do impassível sueco. O banco do Sporting celebrou sabendo perfeitamente o valor da matéria que embrulha estes três pontos, num campo tradicionalmente complicadíssimo, num jogo que mesmo contra 10 se tornou muitíssimo difícil, o que terá de levar Amorim a refletir. Na véspera, o treinador já pedira posses de bola longas para controlar o jogo e eventualmente derreter as possibilidades de contra-ataques venenosos do outro lado. Tem faltado a gloriosa capacidade de apagar os homens do outro lado, de controlar as operações, de mandar, de ser grande, insuperável, ainda que seja o clube, pelo menos entre os grandes, com o melhor nível exibicional.
Apito final, depois de oito minutos de compensação, e o Sporting volta à liderança do campeonato. Agora isolado.
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