Crónica de Jogo

A maior goleada de sempre de Portugal teve mira de Bruno Fernandes, pontaria dos Gonçalos e muita flexibilidade

A maior goleada de sempre de Portugal teve mira de Bruno Fernandes, pontaria dos Gonçalos e muita flexibilidade
Soccrates Images/Getty

A seleção nacional conseguiu o resultado mais avultado da sua história, arrasando o Luxemburgo por 9-0. Numa noite cheia de futebol de ataque e interessantes soluções táticas, a mobilidade e energia da equipa abriu caminho a um triunfo em que Bruno fez três assistências e um golo e Inácio, Ramos e Jota bisaram. O bilhete para o Euro está quase garantido

A maior goleada de sempre de Portugal teve mira de Bruno Fernandes, pontaria dos Gonçalos e muita flexibilidade

Pedro Barata

Jornalista

A monotonia do apuramento da seleção nacional para o Euro 2024 quase nos faz ter saudades da calculadora. Neste 2023 que antecede o verão em que a Europa colocará os olhos na Alemanha, não se fazem contas, não se presta atenção aos resultados dos adversários, não pensamos que com uma vitória ali e quiçá um empate aqui devemos ter entrada direta, mas provavelmente dois empates chegarão para uma vaga nos clássicos play-offs.

Neste quadro de simplicidade, obtida por mérito dos resultados garantidos num grupo bem mais acessível do que outros, pode-se passear pelo grupo de forma triste e quase burocrática, como um rotineiro percurso diário para o escritório, ou pode-se desfrutar da viagem, aproveitar para crescer e voar, para entusiasmar e sonhar. Depois de algumas exibições mais parecidas à primeira via, Portugal abraçou a segunda opção.

No Algarve, fez-se história. O 9-0 é a maior goleada de sempre da equipa nacional, superando os triunfos por 8-0 contra Liechtenstein, em 1994 e 1999, e Kuwait, em 2003. A paragem internacional começou com questões sobre o imobilismo da convocatória e com o falatório em torno das polémicas do futebol interno e acaba com uma inédita chuva de golos.

No sexto triunfo em seis partidas de qualificação, resgata-se um futebol de ataque, feliz e variado, com nuances e flexibilidade, numa pequena amostra — favorecida pelas facilidades do adversário, é sempre importante dizer — das infinitas possibilidades que um grupo de futebolistas de enorme talento oferece.

Bruno Fernandes e Gonçalo Inácio, dupla em destaque
Soccrates Images/Getty

Roberto Martínez apresentou uma estrutura cheia de variações: ora com linha de três a construir, baixando Danilo Pereira, ora com linha de quatro sem bola; com Dalot centrando a sua posição, dando espaço para Rafael Leão voar na esquerda, enquanto do outro lado era Semedo quem dava largura; com Diogo Jota aproximando-se da frente de ataque, contribuindo tanto na pressão, como no aumentar do número de finalizadores perto da baliza.

Na noite do show da seleção, os destaques vestiram papel de arco e, também, de flecha. Bruno Fernando acumulou funções, sendo o primeiro e o segundo. Sempre com a sua mira de curta, média e longa distância afinada, dando passes que eram declarações de intenções, cartas registadas com aviso de finalização, completando um hat-trick de assistências e apontando o 8-0.

A receberem as solicitações do craque do Manchester United estiveram Ramos e Inácio, com um bis cada, jovens aproveitando a oportunidade. Diogo Jota também se juntou à festa, com dois golos e uma assistência para Ricardo Horta. João Félix, a ganhar ritmo para uma temporada que pode ser decisiva para a sua carreira, selou o 9-0 final.

O arranque da equipa da casa deu-se sob o selo da eficácia. Nos 18' inaugurais, os dois primeiros remates à baliza de Anthony Moris deram golo. Aos 12', o veneno que Bruno Fernandes tem nas bolas encontrou a cabeça de Gonçalo Inácio, central construtor com alma de avançado cabeceador quando chega à área contrária.

Aos 18', uma das grandes notas da noite ficou evidente. Sem Cristiano Ronaldo, castigado, a equipa ganha uma enorme capacidade de pressão, sobretudo apresentando gente que morde a circulação rival como Gonçalo Ramos ou Diogo Jota. Juntando a essa armadilha de roubo de bola Bernardo e Bruno, a primeira linha estava cheia de gente de ataque que não se importa de sujar os calções. Roubo do craque do United, assistência do do City, finalização do novo atacante do PSG.

Se a ausência de Cristiano Ronaldo favoreceu a pressão, também beneficiou a flexibilidade que Roberto Martínez, no início do seu consulado, disse que gostaria de apresentar. Havia mobilidade e diferentes posicionamentos para cada momento, contra-movimentos e permutas, um futebol de inteligência e talento.

Bruno Fernandes comandava as jogadas desde o primeiro momento, Bernardo levitava no centro-direita, Diogo Jota lia os espaços e atacava-os. Com Dalot a ocupar a zona central, havia uma pradaria no lado esquerdo para Rafael Leão correr, com as suas arrancadas em que parece que vai sair dos limites do campo e galgar as bancadas. Aos 34', o extremo do Milan serviu Gonçalo Ramos, que desenhou um quadro na área para finalizar para o 3-0.

Insaciável, a equipa de Martínez continuou sempre de olhos postos na baliza adversária. O 4-0 chegou em cima do intervalo, novamente com a sociedade Bruno Fernandes - Gonçalo Inácio. Quando o jovem central começou a ir treinar à equipa principal dos leões, ainda com Marcel Keizer, o então capitão do Sporting ficou impressionado com a qualidade do canhoto. Alguns anos depois, aqui está ele a colocar presentes na cabeça do jovem defesa.

Na segunda parte, a mão-cheia chegou numa jogada que evidenciou os méritos da seleção: jogo curto e longo, paciência e poder de fogo, qualidade e eficácia. Bruno e Bernardo tricotaram pela direita, num tua-minha que deixou o treinador luxemburguês a pedir mais agressividade aos seus futebolistas, ali transformados em testemunhas, mais do que opositores. Fernandes fez uso da sua fisga e lançou a bola para a desmarcação de Diogo Jota, que não falhou.

Com a goleada encaminhada, a dança do banco começou, entrando João Cancelo, João Félix e Ricardo Horta. Longe de se conformar com os três pontos, a seleção foi em busca da história.

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O capitão do SC Braga demorou sete minutos para fazer o 6-0, assistido por Diogo Jota. O atacante do Liverpool teve uma noite em que voltou a provar que, sem ser a mais talentosa das opções, possui um futebol de raio de ação largo, de movimentos sem bola e de pressão constante que pode acrescentar nuances fundamentais à seleção.

O Luxemburgo estava completamente rendido, dando uma imagem quase de caricatura, longe da equipa que tem crescido nos últimos anos e que tem legítimas aspirações de chegar ao Europeu pela primeira vez. Aos 77', Diogo Jota fez o 7-0 e, aos 83', Bruno Fernandes juntou um golo a uma exibição de gala.

Em cima dos 90', chegou o 9-0, resultado que dá contornos históricos à noite do Algarve. Com uma facilidade quase insultuosa, João Félix recebeu, rodou, rematou, golo. Mais uma prova de talento numa noite cheia delas.

O bilhete para o Europeu está praticamente no bolso. No passeio pela qualificação, pode haver noites entusiasmantes ou aborrecidos dias de escritório. A primeira via foi abraçada numa prova das quase infinitas soluções de que Portugal dispõe quando liberta o talento, sem amarras.

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