Crónica de Jogo

Paulinho está livre que nem um passarinho e o Sporting regozija

Paulinho está livre que nem um passarinho e o Sporting regozija
Carlos Rodrigues/Getty

No seu jogo 100 pelo Sporting e com as lanternas da atenção (e da expetativa) postas em Viktor Gyökeres, o novo avançado a arcar com as exigências de golos, foi Paulinho a marcar dois na vitória (1-2) dos leões contra o Casa Pia, em Rio Maior. Movendo-se nas sombras, entre o sueco e as costas dos médios adversários, viu-se um português solto e decidido em campo, a prosperar na penumbra (e houve um erro assumido pelo VAR, que não assinalou um fora de jogo no primeiro golo do Sporting)

Coloquem-se nas chuteiras de Paulinho. Custou um pequeno balúrdio (€16 milhões) nos padrões de cinto apertado do futebol português, meio caminho percorrido para ser atormentado por um asseverar das expetativas que são uma tormenta para qualquer avançado, posição na qual joga e que exige golos, muitos golos. Dele tinham vindo 33 em 99 jogos, retribuição introvertida de um atacante que pelas características e o modelo de quem o treina há muito que recua no campo para jogar, toca para fazer jogar e joga ser a referência nas saídas de bola. E os dedos foram-lhe sendo apontados.

Não como o dedo indicador que ele aponta à testa quando marca, gesto registado e desigual ao tão comum de ver no futebol, que é esse dedo ser encostado aos lábios para calar quem seja quando a bola entra na baliza. Este verão foi a estação para Paulinho, quase a diário, ver os jornais preencherem manchetes com os rumores de Viktor Gyökeres até ao dia em que o sueco entrou em Alvalade, esbanjado ainda mais dinheiro (€20 milhões) para ser o novo avançado a arcar com expetativas. Com a fidelidade de Rúben Amorim ao 3-4-3, parecia ser o prenúncio de um ‘ou tu, ou eu’ para a posição.

Em Rio Maior, a uns 80 quilómetros do estádio de Pina Manique que está em obras, viu-se a estreia de um ‘os dois juntos’ para se ver Paulinho, que o folclore dos adeptos do Sporting tinha como avançado de bom pé e pouco golo, a jogar solto e descontraído, livre e sem precipitações. E uma equipa adaptada com uns truques para ter convivência dos goleadores que não se descortinou logo no arranque (3’), quando o português lançou o sueco sem olhar, para uma correria no espaço, Gyökeres cruzou rasteiro e para trás onde Esgaio recolheu a sobra e voltou a cruzar a bola. Como se passasse à baliza, Paulinho ajeitou a bola que o fez encostar o dedo à cabeça.

O deslocado Casa Pia começara melhor, mais vivo e pressionante, a querer recuperar a bola junto à área adversária e a morder todas as receções. Tinha marcações individuais na saída de bola do Sporting, queria forçar o erro e os visitantes, já rendidos aos hábitos de Gyökeres, reciclavam a bola rápida e eram logo verticais mal podiam lançar um ataque. Esses olhos postos no grandalhão loiro também eram os de Paulinho, a acelerar jogadas amiúde para ser ele a finalizá-las num contra-ataque e até em cantos se chegar à frente, depois de um remate desviado do sueco bater na barra da baliza. Na vertigem, com pressa e com a ideia de chegar à área em poucos passes, o português prosperava.

Ao fim de um quarto de hora, esse ritmo desvairado teve um travão durante cerca de 11 minutos para um adepto receber assistência médica numa ambulância - seria hospitalizado e ficaria em situação estável. A pausa desfavoreceu o Casa Pia, esmorecendo-se o ímpeto pressionante e deixando o Sporting instalar-se com mais calma no jogo. Aí se notaram os ajustes para a coabitação dos dois que por muito que façam bem, nunca serão elogiados por muito tempo se não praticarem o bem maior do futebol.

Em jogadas mais pausadas e a matutar a bola em ataque posicional, Pote era quase um falso médio-centro, deslocando-se para a esquerda enquanto Paulinho se mostrava em zonas mais interiores, deixando o flanco aberto para Nuno Santos. Eram engodos posicionais para confortar o que de melhor há nos jogadores - Pedro Gonçalves podia tocar na bola de frente para o jogo, Nuno Santos tinha espaço para chegar aos hectares onde melhor cruza a bola, João Paulo Dias Fernandes ficava a espreitar entre linhas (na companhia do mais discreto Marcus Edwards). E ele de lá ainda voltaria a rematar, rasteiro e inofensivo, mas com o embalo de um intuito.

A paragem cortara a capacidade dos médios casapianos em encostar nos seus homólogos e a equipa, baralhada pelas trocas posicionais do Sporting, só reavia bolas no seu meio-campo. Perante a pronta e ajustada pressão, tentava o previsível que era procurar de imediato as corridas de Saviou Godwin, em quem Amorim encostara Esgaio, para ter um equivalente em velocidade, e deixara Diomande perto, na cobertura defensiva contra o mais ameaçador dos anfitriões. O Sporting estava confortável no relvado.

O golo do Casa Pia, na segunda parte, surgiu sem aviso nem sintomas, vindo da primeira jogada em que os centrais participaram para lá da linha do meio-campo: Fernando Varela acelerou com a bola, Morita e Pote (fixou-se na marcação a um adversário em quem Edwards já pegara) tinham uma cratera entre eles e Clayton esgueirou-se com uma curta diagonal por entre as costas da estática última linha. À saída de Adán, o avançado brasileiro desviou (58’) o improvável susto. A pressão alta dos caseiros já sumira e o empate manteve-lhes o bloco médio-baixo, mais reativo do que proativo a defender. O Sporting era obrigado a não jogar a acelerar.

Sem os espaços na profundidade para que dar soltura às correrias de Gyökeres fosse a primeira escolha, a equipa investiu, mais ainda, nos ataques pensados e calmos. As pinças nos pés de Morita ficavam na base da saída, com Edwards e Pote nas costas dos médios do Casa Pia, formando quase um triângulo - ou um losango, se quiserem, quando o Paulinho deixado ao papel de deambular por onde descobrisse espaços para ser o recetor do passe que desengatasse a jogada. Pouco demorou a que uma circulação da direita para a esquerda terminasse com Nuno Santos a cruzar rasteiro para a demonstração da certeza de uma soltura.

Paulinho recebeu a bola que ia para Pedro Gonçalves, embalado área dentro e com a baliza nas suas barbas, tirou-lhe o pão e pô-lo na boca do seu esquerdo, rematando ao segundo toque (61’). Com os centrais do Casa Pia preocupados em vigiarem o corpanzil do número 9, o ex-foco de todas as atenções movia-se nas sombras. A pressionar que nem um louco sem bola, prosperava na penumbra quando o Sporting a tinha.

O melhor da equipa de Rúben Amorim seria esse papel-mutante de Paulinho, fechando linhas de passe e orientando a pressão a partir de uma faixa, em momento defensivo, e o espírito livre e deambulador que era entre Gyökeres - que teve os seus remates em ‘fúria’, a sprintar no espaço, dois pela direita da área na segunda parte - e os médios adversários quando os leões atacavam, além dos ajustes coletivos no Sporting para o deixar gozar dessa hibridez. O reforço Hjulmand, dinamarquês comprado por outra batelada de dinheiro (€18 milhões) para devolver um recuperador de bolas nato no vácuo deixado por Ugarte, estreou-se discretamente.

A discrição não será aplicável à nova pela de Paulinho, que já na jornada anterior entrara em campo afoito, mexido e decidido para marcar o golo da vitória. Ainda é cedo, mas a chegada de um declarado homem golo roeu-lhe as amarras, soltou-o de ser a referência à frente da baliza e libertou-se para ser o alvo das jogadas nos espaços deixados vagos. Paulinho está livre e ao centésimo jogo pelo Sporting, o segundo que faz com um ponta de lança ao lado, já tem três golos. “Somos compatíveis”, disse ele, no final. É o que parece.

P.S. - no final do jogo, da Cidade do Futebol e do Conselho de Arbitragem da FPF chegou o reconhecimento de um erro: no primeiro golo do jogo, Paulinho estava em fora de jogo por nove centímetros, mas o VAR não o assinalou.

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