Sem arte, o Manchester City completou a sua lavagem. E a sofrer de gatas, Guardiola voltou à Champions

Editor
Calvo de tanto remoer e matutar sobre futebol, Pep Guardiola tem uma cabecinha pensadora que lhe é impossível disfarçar. Olhem para ele durante um qualquer jogo, ligado à corrente, irrequieto e a gesticular nervosamente por mais que a idade o vá temperando, e encontrarão um momento, provavelmente mais, com o espanhol a perder a meada ao olhar: mirando o vazio, preso num limbo pensativo, vira uma pessoa imergida em estado de transe quase vegetativo. Tantos são os pensamentos a mastigarem-lhe os neurónios que poucos fios de cabelo lhe restam, a careca é o sinal exterior de um interior enfatuado com problemas.
Em Istambul era o seu reencontro com o bocado de história que o tem iludido, também com o pedaço de matéria usado pelos seus detratores para lhe maçarem o legado. Mas, do espanhol ornamentado com a sua versão de fatiota, todo de negro e um blazer sobre uma t-shirt, nem um vislumbre do seu eu quase autista. Não, até ao intervalo ele expeliu braços no ar, mãos levadas à cabeça, dentes cerrados e boca aberta por arrelias ou gritos como o “guys! guys!” que berrou com insistência pelos 25 minutos, quando viu Ederson a dar um passe murcho para um Rúben Dias rodeado por adversários que não lhe chegou.
O guarda-redes a quem se louva os pés já despachara uma bola para a bancada ao tentar depositar um passe longo em Nathan Aké, também abrira os braços junta à linha de fundo quando julgara que um balão pontapeado para o ar ia sair de campo e deixou Lautaro Martínez dominá-la. Os lances em nada resultaram, foram não mais do que um ligeiro resfriar da espinha do Manchester City, mas o trémulo brasileiro era só mais um sintoma do que os ingleses pouco demoraram a padecer. Precisando, foram uns 10, 15 minutos até aos jogadores do Inter se ajustarem às manigâncias preparadas por quem tanto vive a pensar em futebol.
Quando Bernardo Silva rematou cedo (6’) e bem dentro da área, encarando um desnorteado Di Marco por De Bruyne correr pelas costas do português e lhe arranjar o espaço para o canhoto apontar um remato ao ângulo reto da baliza, já se vira o que Guardiola magicara. John Stones, defesa virado médio matreiro na segunda metade desta época, não partia do centro, mas da direita, não falto central e sim um lateral mentiroso para se juntar a Rodri num meio-campo onde Kevin de Bruyne tão pouco arrancou o jogo nas imediações de Haaland. O belga letal em dar últimos passes às jogadas começou por espreitar no centro-esquerda, havia um pacote para baralhar o que relatórios de scouts, sessões de vídeo e reuniões de Simone Inzaghi com os seus técnicos prepararam.
De facto, o Inter teve um início a perseguir sombras, os seus centrais de fora na dúvida entre saírem a pressionar ou ficarem na posição, Barella também barafustava com Dumfries, ala do seu lado, para ir com ele no aperto à posse de bola do City. Quando esse quarto de hora findou e Inzaghi abanou os seus braços, gesticulou à sua maneira e gritou o que tinha a comunicar, os italianos assentaram posicionalmente o que cada um haveria de fazer. Quando Haaland arrancou numa curta diagonal pela esquerda da área, pedindo algo no seu melhor pé, e De Bruyne o presenteou já a jogar nas costas do norueguês, o Inter estava confortável - o próprio remate, mesmo que forte (27’), foi ao corpo do cómodo Onana, guarda-redes que distribuía passes com os pés na mesma tranquila sinfonia que usou para barrar esta tentativa.
Além de outros dois remates, ambos tentados ao largo das balizas - Brozzovic tentou o seu quase em balão, Akanji disparou o dele ainda de mais longe quando não tinha a quem passar a bola -, foi uma primeira parte de final da Champions para xadrezistas apreciarem. Bastoni e Darmian, os centrais de fora da linha de três do Inter, iam sem medos pressionar os médios interiores do City no embalo intenso, ‘agressivo’ e imediato com que qualquer jogar nerrazzuri cercava uma receção de bola adversária: Di Marco obrigava Bernardo a só ver a própria baliza quando um passe lhe chegava, Barella e Çalhanoglou eram cães danados a incomodarem Rodri.
Ninguém do Manchester City sabia o que era jogar à-vontade, tão pressionada que era qualquer ação sua na bola. O desconforto alastrou-se a uma articulação de Kevin de Bruyne, tirado da final por uma lesão (36’) para a frenética cola no pé de Phil Foden tentar existir nos espaços curtíssimos onde o belga jamais conseguira levantar o olhar para rasgar últimos passes (quando lançou Haaland, a equipa acabara de roubar uma bola dentro do meio-campo alheio).
A bola que um mundo inteiro antevira ser do City era mesmo, só que insonsa, trocada com o aparato sensaborão estendido à segunda parte. A organização do Inter era uma extensão de Brozzovic, o seu capitão fumador, médio do leme à frente da defesa que abafava quem ousasse pedir um passe nas suas redondezas e tinha a calma onde tantos se alarmam para pautar o arranque das transições italianas. Mas nem foi assim que ameaçaram da primeira vez.
Estavam os jogadores do City enlameados na sua inoperância, a trocarem mais passes na metade do campo contrário embora todos redundassem na falta de espaços para a equipa chegar à área, quando Bernardo Silva, a sentir outra vez o bafo de Di Marco na nuca, atrasou um passe para Akanji. O central suíço podia recebê-lo, dar mais de dois toques, carregar no reset da jogada - mas, julgando que Ederson saíra da área, confiando ter tempo, deixou a bola seguir. Quem a apanhou foi a esperteza de Lautaro Martínez, que esbarrou o seu remate (59’) no guarda-redes que se apressou a fechar-lhe o ângulo.
E no banco, Guardiola fundia-se com a relva, acabando de gatas e com os cotovelos apoiados e as mãos na careca e mais outros gestos que houvesse para cavar um buraco de desespero.
O susto era real. Era igualmente verdade que os cityzens, mesmo sem ideias para mexerem com a organização do Inter a defender-se sem a bola, já habitavam muito tempo no meio-campo italiano sem encontrarem receções de Foden entre linhas, com Grealish vetada à irrelevância na esquerda e Haaland sem participar na área. Os minutos e o cansaço de uma época, claro, pesariam sempre, correr atrás de passes e mais passes mói músculos, ânimos e pulmões, parte da explicação de o Inter às tantas ter a equipa ensanduichada à beira da sua área poderá estar aí. A outra está em Akanji.
Teve de ser o defesa a protagonizar o que Guardiola tanto pede aos seus centrais, ele assumiu o protagonismo com a bola, conduziu-a contra a última linha adversária e, quando o abordaram, desmarcou Bernardo para o português, em cima da linha de fundo, cruzar sem olhar para trás. Outra marca de água deste Manchester City, a confiar que alguém viria: quem veio foi Rodri, o tampão de tudo e primeiro passador de tudo também, a curvar o remate junto à marca de penálti (68’) que desatou o 1-0. A ironia das magias negras futebolísticas faziam o espanhol correr esbaforido na celebração do golo - há dois anos, no Porto, o overthinking que imputam a Guardiola em jogos de nervo decisivo deixara o médio espanhol no banco, na final perdida para o Chelsea.
E havia tempo para esta ainda se perder.
O jogo não amainou, pelo contrário. Nunca o Manchester City se acercou de algo com parecenças de controlo, por mais que John Stones não tivesse uma ação errada em posse - foi o falso médio a ser o melhor meiocampista até também sair devido a uma mazela (82’) -, a forçosa reação do Inter esquartejou o jogo com esticões, transições e futebolistas a fazerem coisas à pressa. Antes da partida se render por completo a tal, Di Marco cabeceou a bola à barra, pasmando depois pela recarga lhe ia parar de novo à testa e mais ainda no segundo seguinte, quando viu a segunda tentativa ir contra o corpo de Romelu Lukaku. Na azáfama da área, calhou ser o azar que parece não largar o belga a impedir (71’) o empate.
Até aos instantes do tudo por tudo do Inter, ainda se viu um pintalgar de magia nesta final, haja um, quando Foden rodopiou numa receção orientada para se isolar e Onana lhe adivinhar o remate. Foi a hipótese de espetar uma machadada na partida, liquidar ali esperanças. Não entrando, esse pormenor oxigenou a reação que chegaria dos italianos para o jogo demonstrar como o futebol é, muitas vezes, mais um acumulado de intangíveis e incontroláveis do que se tem por hábito pensar do lado de cá do poleiro. Nós que vemos de fora nunca saberemos o que é jogar, viver e desesperar lá dentro.
Jamais sentiremos o que invadiu Lukaku quando, colado à baliza, viu o ao início desmiolado Ederson negar-lhe, por instinto, um remate de cabeça (88’) quando nem a dois metros estava dele, muito menos saberemos a sensação de salvador que terá invadido o brasileiro. Um avançado a não fugir a uma malapata inexplicável (recordam-se do Bélgica-Marrocos do último Mundial?) e um guarda-redes a virar um muro como talvez nunca o estimaram ser - e a fortuna, o azar, a sorte, o vudu, chamem-lhe o que mais vos convier, da bola que ressaltou no corpo virado para a baliza de Rúben Dias e saiu para canto, sabe-se lá como.
Mais tarde, na morte dos descontos, um cruzamento buscou Robin Gosens ao segundo poste e lá esteve de novo Ederson, o integralmente tatuado homem das luvas de quem se elogia a participação com os pés porque raro é o Manchester City estar nos apuros em que se viu em Istambul, mas que do estádio Atatatürk em diante será idolatrado como um salvador. Nem as câmaras tinham fôlego para centrarem o plano nos batimentos cardíacos de Guardiola no banco; porém, quando o último apito soou e os jogadores do City se deixaram cair, largaram lágrimas ou correrem em todas as direções no relvado, o treinador pareceu travar-se no tempo.
Atónito, quase imóvel, a sorrir para alguém na bancada, o catalão retornou ao limbo muito seu. No meio do caos da adrenalina, Pep parou no sepulcro da ocasião. Doze anos, seis ‘meias’ e uma final depois, o treinador volta a conquistar a Liga dos Campeões, tocando na orelhuda taça que tanto lhe apontaram a falta. Quando os jogadores a levantaram no meio dos confettis, ele já sorria e pulava, um homem ligado ao que o rodeava e não alheado a pensar como o haveria de proporcionar. E o Manchester City, claro.
Quinze voltas ao sol contadas desde que os biliões do Abu Dhabi compraram o azul da cidade dos Joy Division e dos Oasis, o processo que muitos criticam como sportswashing está concluído, um regime que joga ao berlinde com direitos humanos a ter aquilo que quis comprar com dinheiro (e Liam Gallagher, já agora, prometeu ligar ao mano Noel para reatarem o supostamente insanável se isto acontecesse). A fonte humana desse dinheiro, Sheik Mansour, por quem sois, esteve em Istambul a ver a conquista: uns treze anos depois da única outra vez que concedeu a sua presença a um jogo do Manchester City.
Haverá agora tempo para debitarmos as consequências, a influência e o legado que este primeiro exemplar de clube-estado-musculado a virar o cume do futebol europeu deixará. Pep Guardiola deu a quem está por trás do Manchester City o que todos tanto ansiavam (e mais, com um treble, ganhando também Premier League e FA Cup como só o United o fizeram em 1999, com Alex Ferguson), porque o treinador não chegou a gatinhar nesta final de Champions só pela turbulência dos seus nervos. Ele sabia, mais do que vivalma, a história que estava em discussão.
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