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Crónica de Jogo

No City mora a obra de Guardiola. De lá saiu desfeito o Real, vergado pelos golos de Bernardo Silva

Numa exibição histórica dos ingleses, o conjunto de Pep foi amplamente superior e goleou (4-0) a equipa espanhola, garantindo presença na final da Liga dos Campeões. Um bis de Bernardo Silva abriu caminho a um triunfo incontestado, marco de uma máquina de futebol que vulgarizou os donos da competição que o City mais quer ganhar

Pedro Barata

Jan Kruger - UEFA/Getty

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Foi como se tudo se juntasse numa noite, em 90 minutos, num casamento perfeito entre o momento e a necessidade. Num jogo, anos e anos de investimento e planeamento correto por parte dos donos do Manchester City fizeram sentido, horas e horas de trabalho de Pep Guardiola foram refletidas em campo, na perfeição das jogadas, no critério dos jogadores, na expressão do resultado. Um projeto voraz a banalizar os reis da Europa, aproximando-se da taça das orelhas grandes que tanto se quer tocar no clube que foi alterado para sempre pelo dinheiro de Abu Dhabi.

O Real Madrid entrou no Etihad feito campeão da Europa, dono de cinco das últimas nove edições da competição, guarda imperial serena e constante nos pés de Kroos, Benzema ou Modric. Mas, em Manchester, chocou contra uma espécie de obra-prima em formato de equipa de futebol, de conjunto trabalhado e potenciado até ao limite, capaz de olhar o Real, na competição do Real, e torná-lo caricatura, anedota, algo irrelevante.

Depois do 1-1 do Bernabéu, o 4-0 da segunda mão coloca o City na final da Liga dos Campeões, a competição que escapa ao projeto de Abu Dhabi e a Guardiola desde que, em 2011, a ganhou pela segunda vez no banco do Barcelona. Numa noite perfeita dos campeões ingleses, a equipa de Pep pareceu, por vezes, não num desafio de futebol, mas numa montra de demonstração das suas capacidades, num road show de desfile do seu menu como equipa, numa exibição. Porque, aqui, só um conjunto se mostrou, só um lado se apresentou, só um emblema pareceu confortável e seguro, triturador e implacável.

Desde o início, a superioridade foi incontestada. As ocasiões sucederam-se. A diferença foi tal que o melhor jogador do Real terá sido Courtois, que evitou uma goleada ainda mais avolumada.

Neste cenário, Bernardo Silva, autor dos dois primeiros golos da noite, foi um dos maiores heróis do City. O jogador que Pep tanto aprecia — ao ponto de os companheiros lhe chamarem Bernardiola — é uma expressão da essência desta equipa: versátil e sempre em mudança, técnico mas sacrificado, disciplinado mas mágico. E com muita vontade de, finalmente, ganhar a Liga dos Campeões. No grande dia do City, Bernardo abriu o caminho de Istambul para os ingleses. O Inter aguarda.

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Lexy Ilsley - Manchester City

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Lexy Ilsley - Manchester City

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Alex Livesey - Danehouse

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Alex Livesey - Danehouse

O dia dava lugar à noite em Manchester quando os jogadores subiram ao relvado em meio de um ambiente de partida grande. Os sons das bancadas e as caras dos protagonistas atestavam a importância do momento, do embate entre um clube que buscar tocar no troféu pela primeira vez e outro que faz dele parte do seu emblema desde os anos 50, entre um que viverá estas noites com as borboletas na barriga das primeiras noites e outro que as encarará com a rotina de ter, primavera após primavera, noites para a história.

Neste choque de mundos, o City entrou no desafio vestindo o seu melhor traje, arrancando com a melhor versão do futebol que tem dentro de si, um jogo cheio de nuances e variantes, de trocas e permutas, de cambiantes e soluções. A equipa de Guardiola começou dona da bola, primeiro, para depois se tornar senhora do perigo e terminar dona da situação, com momentos de domínio incontestado.

Já depois de Haaland e Rodri terem ameaçado o 1-0, o norueguês da voragem goleadora começou um duelo particular com Courtois. Aos 13’ e aos 21’, cabeceou em grande posição para inaugurar o marcador, mas o belga da envergadura inacabável defendeu quando já se celebrava no Etihad.

As chances de Haaland eram consequência do enorme domínio dos locais. Aos 15’, estava 5-0 em remates e o Real trocara somente 13 passes, menos de um por minuto. Aos 19’, após um pontapé de baliza em que os espanhóis conseguiram trocar cinco passes seguidos, a bola chegou a Modric que, sem linhas de passes, a foi conduzindo para trás. O croata da eterna juventude acabou a tocar de calcanhar para fora e a abrir os braços, inconformado. Sim, o Real dono e senhor da Champions estava altamente desconfortável.

Courtois a negar o golo a Haaland

Courtois a negar o golo a Haaland

Alex Livesey - Danehouse/Getty

Em linha com o que se via no relvado, o 1-0 chegou aos 23’. Entre as mil e uma nuances que Pep, sempre em metamorfose, introduziu recentemente, está a colocação de John Stones como uma espécie de jogador total, de central que parte da defesa para subir ao meio-campo e estar em todo o lado, ficando Rúben Dias, Walker e Akanji mais atrás. Nessa dinâmica, Stones acabou na direita a combinar com Bernardo Silva, o português cujo cão se chama John devido ao seu companheiro inglês.

Bernardo deu continuidade ao lance, que acabou no pé iluminado de De Bruyne, que voltou a descobrir o canhoto português. Finalização com acerto, 1-0. Vinícius começou por ir falar com Ancelotti e depois juntou-se aos outros jogadores de campo do Real, que se reuniram numa espécie de gabinete de crise para lidar com a situação.


Um olhar ao mapa que mostra onde as equipas tiveram a bola nos primeiros 30 minutos deixa evidente como quase só se esteve perto de Courtois nessa fase. No primeiro tempo, o Real só rematou uma vez à baliza. E foi com perigo máximo. Do meio da rua, um tiro de Kroos acertou na trave. Noutras situações, a equipa de Madrid marcou na primeira oportunidade. Nesta, não só não o fez como logo a seguir levou o 2-0.

Grealish fez uma exibição que resume a adaptação do peaky blinder ao futebol de Guardiola. Esperando aberto pela bola, guardando-a quando eram precisas posses longas, com sacrifício defensivo. O inglês conduziu, o movimento de De Bruyne atraiu atenções e Gundogan, sempre pronto a chegar vindo de segunda linha, recebeu na área. Na sequência do ataque o ressalto foi para Bernardo Silva, que cabeceou para o 2-0. Ao intervalo, pintava-se uma superioridade raras vezes vista neste tipo de cenários.

Michael Regan/Getty

O segundo tempo até começou com Ederson a defender bem um livre de Alaba, mas o Real nunca conseguiu reagir. As substituições de Modric e Kroos, ambos com caras entre o descontente e o apático, resumiram o estado de espírito dos merengues: ali estava uma equipa derrotada, desfeita, sem soluções, carente de rasgo para mudar a situação, acabando a ver os dois cérebros do meio-campo, símbolos do conforto nestas noites, a saírem de cena sem respostas para dar.

Do lado oposto da moeda havia diversão e arrojo. Haaland esteve perto do 3-0, mas Courtois voltou a defender. Os contornos de goleada chegariam perto do final, primeiro num auto-golo de Militão e depois, já no período de descontos, através de Julián Álvarez.

Para que a era de Pep em Manchester deixe de ter um asterisco, o Inter terá de ser derrotado em Istambul, a 10 de junho, evitando o mesmo tipo de dissabor de 2021, quando o Chelsea levou o troféu na final do Dragão. Mas esta noite ficará sempre como símbolo dos anos de Guardiola no City, do aperfeiçoamento constante, da busca de soluções permanentes, nas voltas e mais voltas que se dão a uma equipa que é como um super computador pronto a oferecer respostas em tempo real. E onde joga Bernardo Silva, o aluno preferido de Pep e o herói da noite que resume a obra do catalão.

  • Em Madrid, é possível enterrar o passado. Ou tapá-lo, pelo menos
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    Durante muito tempo pareceu que o Real Madrid estava a preparar mais uma das suas, confortável no incómodo de dar a bola, a iniciativa e os remates ao Manchester City enquanto esperava pacientemente por uma aberta que Vinícius Jr. aproveitou. Mas, guardando o resultado em vez de o perseguir com urgência, os merengues foram empatados (1-1) pelos cityzens na 1.ª mão das meias-finais da Liga dos Campeões. No chicote que mora no pé direito de Kevin de Bruyne houve a redenção possível para o trauma dos ingleses