Perfil

Crónica de Jogo

O ocaso do Benfica é real

Um erro de Otamendi, no último minuto dos descontos, originou a derrota (1-0) do Benfica em Chaves, mas o sacrilégio da terceira derrota seguida da época não mora sozinha no defesa argentino: a equipa de Roger Schmidt atabalhoou-se a cometer erros atrás de erros, jogando sem plano para desmontar um adversário que montou um bloco perto da sua área. Com sete jornadas por disputar, o FC Porto pode reduzir para quatro pontos a liderança dos encarnados no campeonato

Diogo Pombo

Octavio Passos/Getty

Partilhar

Quanta influência pode um tipo ter na equipa de futebol em que joga? Aborrecida é a resposta, só podemos constatar que varia dependendo do indivíduo e do que carrega no corpo, se cada um de nós é matéria também verdade é que o todo se define pelas componentes. E pronto, ficamos na mesma. Jogadores banais podem ter um pacto estupendo, um futebolista inatamente incrível é capaz de ser irrelevante em campo se a bússola na cabeça não estiver afinada e por aí fora nos condicionalismos seguiríamos, sem fim à vista.

Mas, já navegados os mares de maionese, a intenção é sermos concretos com David Neres.

No verão aterrou no Benfica cheio de ares ameaçadores, os futebolistas quando se enchem de truques fintadores, de tropelias inventadas por instinto com a bola no pé, ganham uma auréola que é um aviso para os demais, ‘tomem cautela para o vosso bem’ é o que se interpreta por defeito quando se olha para um jogador como o brasileiro - canhoto, malandro, rápido e imprevisível, Neres é a fantasia posta em campo para se demorar mais um pouco com a bola do que os outros e andar por onde ela estiver. Em Chaves e sem trela a amarrá-lo à direita do relvado, ele correu a vingar-se do tempo.

Frenético na genica, ora aguardou por um passe perto da linha, espreitou uma receção ao centro nas costas dos médios ou cruzou o campo para ir à esquerda tocar uma tabela. Eis Neres, o atacante-total, livre a movimentar-se por Trás-os-Montes atrás da bola que o Benfica mastigou em pequenos passes, reciclou com insistências em triangulações nos corredores e redundou em tentativas por for, por mais que o extremo que ficou piurso a meio da semana se inquietasse para influir ativamente em qualquer ataque. Porque outra condição que acontece é uma equipa ser prática, que rica com pragmática.

Ciente da mais que sabia intenção dos encarnados em associar jogadores em espaços curtos, querendo atrair adversários num lado para rasgar um passe vertical ou virar a bola com pressa para onde o espaço vagar, o Desportivo de Chaves aglomerou jogadores diante da sua linha defensiva. Aos seus três médios uniam-se, por dentro, os extremos para cimentar um bloco encostado à área, popular o centro do campo e desconvidar a passes por aí. E o discreto Rafa, sempre escondido na sombra dos corpos, desaparecido enquanto João Mário era empurrado para inócuos toques à esquerda, onde lhe era possível receber bola à vontade. O Benfica tentou, acelerou, forçou tabelas, fogos de vista em que os artifícios não chegavam.

Octavio Passos/Getty

Apenas as acelerações com bola de Aursnes vindo de trás - foi médio, ladeando Chiquinho - perturbavam a organização de João Teixeira, Guima e João Mendes, o trio de meiocampistas, ou as pequenas demoras de David Neres com a bola, sedento de protagonismo devido ao seu ocaso neste ano civil, titular só em nove de 18 partidas e nenhuma delas contra adversários de maior cartaz.

Em Chaves, diante de uma das acessíveis equipas deste ciclo de campeonato entremeado com Liga dos Campeões, em 45 minutos ele mexeu-se, tentou, fintou, sofreu faltas e insistiu, mas o Benfica é um perigo somente ao deglutir um canto com passes curtos até Gilberto cruzar rasteiro para António Silva, na área, fazer da bola um balão de hélio (30’) e numa transição rápida, na qual lá se viu Rafa a sprintar uma diagonal área dentro, sendo servido para um remate (19’) que sussurrou algo à barra. Só em momentos de caos forçado ou alheio o Benfica viu baliza.

João Mário tinha-a bem perto, nem a três metros, quando teve um remate e o subsequente ressalto cedo (47') na segunda parte, fosse o bitoque uma jogada em vez de um prato e seria o português a servi-lo, de avental vestido e guardanapo no braço a apresentar um desperdício à jogada de Grimaldo pela esquerda. Do outro lado, com o seu ar ensonado pelo olhar semicerrado, Neres assistiu à melhor jogada do Benfica no jogo.

1 / 3

Octavio Passos/Getty

2 / 3

Octavio Passos/Getty

3 / 3

Octavio Passos/Getty

Ainda havia quase outros 45 minutos para contar, jogo em fartura, mas parecia uma fuga ao tempo. Já não era a vingança do brasileiro contra o seu relógio. Como a equipa, ele minguou, as suas ações com um toque a mais na bola, uma finta tentada em situações que pediam cautela, o seu curvar sobre os próprios pés a impedirem-no de erguer a cabeça e ver que o Benfica clamava por descomplicação. Quando o veloz Juninho recolheu uma bola cortada pelo Chaves, vendo-se solitário perante três adversários que o cercavam, e desatou a correr (52’) em finta longa para os ultrapassar e apenas Vlachodimos o barrar, algo nos encarnados os atabalhoou.

Uma equipa louvada, durante meses, como alquimista de uma poção regrada entre paciência e pressa, com tantos jogadores a entrelaçarem-se com bola nos lugares certos no campo onde se machucam os adversários, jogou que nem um carro a soluçar porque o motor gripava. Chamando a bola a si, João Mário abriu os braços, clamando por gente que se mexesse; Rafa era o seu fantasma de épocas passadas, uma presença tímida nas jogadas; Gonçalo Ramos não acertou os toques para ser referência e ligar jogo. E David Neres virara um vendedor de erros na tomada de decisão quando saiu de campo, aos 69’. Era um reflexo da equipa.

O Benfica insista contra o Desportivo de Chaves pela vontade, o querer chegar à frente, o forçar de passes em quem houvesse perto da baliza. Não circulou a bola para atrair adversários para os remover dos espaços que pretendesse depois atacar, nem se viu um jogador a movimentar-se e outro a comportar-se de acordo. Chiquinho e Aursnes foram uma previsibilidade de passe, no miolo do meio-campo contrário jamais se jogou e a substituição de João Mário e Gonçalo Ramos, melhores marcadores da equipa, foi o sintoma de uma incapacidade coletiva. O cruzamento do adolescente João Neves pareceu ir à baliza (83’), o calvo norueguês bateu forte numa sobra à entrada da área (75’), mas foram momentos soltos, caídos do acaso, gotas de bonança no marasmo de ideias presente em qualquer posse de bola do Benfica. O resgate de Gonçalo Guedes para uma ala e o depositar dos avançados Petar Musa e Casper Tengstedt na área nada importunaram a organização do Desportivo de Chaves.

No furor das bolas atiradas para a área, no tudo em todo o lado e ao mesmo tempo do desespero, um canto houve para o Benfica. Já nos descontos, o de rompante Otamendi saltou perto do primeiro poste, dando o crânio à bola que as mãos instintivas de Paulo Vítor apanharem quase na linha de baliza. O guarda-redes ficou na relva, tombado e a arrefecer os nervos. Minutos passaram até se levantar, dar uns passos atrás e mandar para longe o pontapé de baliza. Chegou quase à outra área, onde o mesmo defesa central argentino, confiante e sereno, tentou dominar a bola com um pé que foi tijolo em vez de algodão - a receção errónea sobrou de oferenda para Abbas, que livrou-se de Vlachodimos no remate. No último dos minutos, a derrota quando o empate parecia certo.

E o Benfica do futebol arrebatador, outrora embalado na dinâmica das tabelas, jogadas de muitos toques e jogadores a divertirem-se na boniteza das jogadas, perdeu o terceiro encontro de seguida. Traumatizados, encravados neles próprios ou às escuras num quarto sem luz em busca da confiança perdida, os encarnados não jogaram como eles próprios. Uma equipa já não parece a mesma equipa e o ocaso de um coletivo poderá chegar a Lisboa com apenas quatro pontos de oxigénio no campeonato.