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Crónica de Jogo

De intenções parece estar Martínez cheio, e a seleção também

Portugal foi ao Luxemburgo golear (0-6), engordando o resultado logo na primeira parte, onde se voltaram a ver padrões que demonstram ao que a seleção quererá jogar com o novo treinador. A pequena sociedade à direita entre Bernardo, Bruno e o ala que lá estiver foi, de novo, uma delas, além do ataque à área desses alas quando a bola estiver a ser magicada do lado contrário. E, fora outras intenções, manteve-se a de uma aposta que muito poderá indiciar: em Ronaldo, que voltou a bisar

Diogo Pombo

KENZO TRIBOUILLARD/Getty

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Lá longe, deixadas noutras décadas, vão os tempos de carteiros, talhantes ou agentes da polícia virarem amadores por hora e meia, tempo para levarem uns pontapés na bola mais a sério e o Luxemburgo ter uma seleção para defrontar profissionais a sério. Era uma balança pitosga, nos seus pratos assentavam dúvidas sobre quantos golos sofreria a equipa do minúsculo Grão-Ducado, espremido entre nações no meio da Europa e rechonchudo em valias económicas para quem lá reside e trabalha sem o futebol como ganha-pão. A seleção lá ir jogar já não é o que era, e ainda bem.

Terra repleta de emigrantes, o hino cantarolado audivelmente por tantas vozes prova-o e nem eram necessárias tantas gargantas. Já havia o pequeno, mas moderno estádio a demonstrar que os estereótipos têm vivência, aparecem, envelhecem e perecem. O Luxemburgo onde Portugal aterra para o segundo jogo com Roberto Martínez tem futebolistas a tempo inteiro que mordem as receções de bola no seu meio-campo, tenta definir a sua linha defensiva longe da área e mordaz é a contra-atacar porque os clichés, de novo, falecem e lá mora gente capaz de incomodar com os pés.

A primeira jogada com tino, intenção e rapidez à beira de uma das áreas é deles quando Vincent Thil, canhoto que não achou sucesso no alto da Choupana, na Madeira, tabelou com Gerson Rodrigues para ver o seu arqueado remate esbarrar em Rúben Dias. Inofensiva, porém atrevida, a equipa do Luxemburgo queria atirar-se em ataques rápidos quando não era capaz de furar a pressão portuguesa ao tentar sair de trás com passes curtos. A intenção de quererem ser melhores com a bola no pé era vistosa, a demonstração de como se quer fazer as coisas dá pistas acerca do nervo a que uma seleção almeja.

Mais apetrechada, sortuda nos cachos de uvas que pode vindimar a cada convocatória, o segundo ato da seleção nacional com Martínez repete algumas das que pareceu indicar há três dias. Umas sugeriram padrões - à direita, onde Bernardo Silva ocasiona-se entre a linha e relvas mais centrais, trocando de posição com o ala com Bruno Fernandes a aproximar-se para dali se congeminarem ideias -, outras mostraram comportamentos que se quererão - o ala do lado contrário à bola atacar a área e a zona perto do segundo poste quando se mastiga uma jogada. São já frutos dos poucos treinos e palestras com o novo selecionador.

Sob chuva e num relvado rápido, o primeiro padrão originou um golo de Cristiano Ronaldo, aos 9’, outro de João Félix, aos 15’, em bolas cruzadas por Bruno e Bernardo após conversações entre ambos à direita e com o segunda impressão a querer ser digital também metida ao barulho: o festejo do capitão chegou por Nuno Mendes se elevar na área e cabecear-lhe a bola para os pés. Um incomum 0-3 surgiria da cabeça de Bernardo Silva, aos 18’, por esperteza na leitura de jogo de Palhinha, lançador de um passe pelo ar nas costas da defensiva luxemburguesa que se plantara fora da área com Portugal a trocar a bola à vontade. E lá estava Diogo Dalot no seu costado, a replicar um comportamento.

Confortável no jogo pelo farto resultado tão cedo na partida, a seleção melhor ficou com a tentativa dos luxemburgueses em pressionarem mais à frente no campo, alargando os espaços entre os seus jogadores. Confiantes, os portugueses cortejaram com a pressão, aí sim aceleraram mais a troca de passes que lenta se viu no encontro anterior e conspiraram mais com as posses de bola. A paciência nem sempre foi amiga, a morosidade impedia por vezes a soltura do passe vertical e a romper no momento certo, até quando já havia um quarto golo caído de um erro adversário a sair a jogar: Félix recuperou, Bruno lançou e Cristiano marcou, nas barbas de Anthony Boris, aos 31’.

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MIGUEL A. LOPES/LUSA

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KENZO TRIBOUILLARD/Getty

A seleção amigava-se da eficácia mantendo-se sólida sem bola, com a linha defensiva a parecer ter um elástico que não a afastava da linha do meio-campo e, com ela, a querer colocar os três centrais na metade adversário em qualquer jogada. Outra intenção e a ser limada nas suas repercussões - diante do trio de trás, Palhinha já não baixava tanto a pedir a bola, nem Bruno Fernandes se deixava cair na tentação de se perfilar com o médio mais defensivo que exibiu os seus dotes na filtragem de jogo que a vida na Premier League lhe está a fomentar. E depois, lá mais para a frente, a reincidência de Ronaldo intencionava algo mais.

A nova titularidade do capitão, sobretudo a sua estadia em campo já dobrado o intervalo no Luxemburgo onde havia um 0-4, aparenta uma aposta como antigamente no jogador de quem já se evadem qualidades antigas, mas levou a maioria dos minutos frente ao par de adversários acessíveis. A explicação para o arranque de novo ciclo com um Cristiano de 38 anos, que terá 39 quando chegar o Europeu, a jogar na secundária liga da Arábia Saudita, menor em qualidade por mais que ele lhe augure um futuro radiante, pode estar na mansidão que esteve do outro lado do campo, mas é possível também que indique uma preferência clara, à partida.

Pouco mais de uma hora andara o relógio quando Ronaldo saiu, de influência proporcionalmente mirrada no jogo face às dificuldades ligeiras sentidas pela seleção. Desfeito o sistema a espelhar o de Portugal, com mais gente na frente e jogadores a darem largura constante para esticarem as atenções adversárias, o Luxemburgo encontrou vários passes nas costas de Palhinha, homem capaz de apalpar muito terreno, mas desguarnecido pela companhia de Bruno Fernandes, pouco rodado a estar numa dupla de médios.

Thil rematar de novo a abrir uma parte, desta feita despertando as luvas de Rui Patrício, o Luxemburgo teve três cantos e em dois - os primeiros enfrentados por Portugal com o novo treinador - se viu uma defesa à zona onde os jogadores pouco atacaram o espaço à sua frente quando a bola partiu ou se ajustaram em função da direção que tomou. De perigo a sério, que arrelie quem vê, nada houve, mas poderá ter sido um momento apenas vistoriado no papel e porventura não na prática, devido ao parco tempo de trabalho.

KENZO TRIBOUILLARD/Getty

A entrada de Rúben Neves para refrescar os atributos a repartir o meio-campo com Palhinha estabilizou a cobertura de espaços na seleção. A de Gonçalo Ramos trouxe outra capacidade de ter uma referência de que recue ou receba para combinar quando a seleção necessitava de oxigénio. Portugal regressou ao seu estado supremo na partida, controlando a bola e mandando nos ritmos. Quando se acrescentou o acelerador predileto, o jogo ganhou os esticões de Rafael Leão que concentram adversários nas suas ações e de um cruzamento picado seu veio o quinto golo, novamente da cabeça de um baixote, Otávio, aos 77’.

O marcador não se mexeu na forte patada na bola de Rúben Neves contra a barra, aos 83’, num livre direto bem à distância do alvo, nem no penálti provocado pelo micro caos das acelerações do agitador do AC Milan que aciona o lado incrível da bipolaridade a que parece, às vezes, sucumbir durante os jogos. O próprio Leão o falhou, com 85’. Só com a sprintar na pradaria, cheio de espaço para olhar para longe e numa transição apareceu o sexto golo, com ele a driblar da esquerda para o meio até detetar uma nesga para rematar.

Ter a gazela humana que é Rafael Leão, que especializou as suas valias como atacante a descolar da ala para só ter baliza no pensamento, parece uma propriedade vetada a começar do banco pela coexistência com João Félix na seleção, destabilizar com morada na mesma posição, mas todo um dínamo fomentador de jogo que o MVP da última Serie A não é. Uma intenção parece também ser partir com o talento variável de um e reservar a agitação vertical do outro para chocalhar o jogo quando for caso disso.

Voltará a haver seleção apenas em junho, até lá ficam 10 golos feitos, nenhum sofrido e intenções de louvar serem notórias já à partida, mas ainda muito carentes de testes contra adversários capazes de as colocar em causa, de lhes testar o nervo ou puxar por soluções alternativas. Ficam as pistas do que Roberto Martínez terá mais tempo para limar.