Os jogos do FC Porto têm, no início de tudo, Kepler Laveran de Lima na linha do meio-campo, em pose de corredor à espera do tiro de largada que é o apito do árbitro, priiiii e lá vai ele, braçadeira a apertar-lhe o delgado braço esquerdo, a invadir a outra metade de relva pela esquerda enquanto a bola levanta voo nessa direção. É patológico da equipa acumular jogadores nesse lugar perto da área dos outros, provocar esse pequeno caos e tentar algo nessa luta, onde a cabeça rapada do capitão em nada toca desta vez. Na errância dos ressaltos, a bola sobra para eles e grita-se golo aos 20 segundos.
O corpo de Taremi além-último defesa anulou-lhe o remate por fora de jogo, não seria aí, mas aos 130 segundos que pôde tremer as cordas vocais sem freios. E tudo teve génese na sapiência da idade. Cortada uma bola na área do FC Porto que saltitava, repleta de ratos, Pepe arriscou passá-la de primeira com um adversário nas vizinhanças. O passe saiu seco, limpo e rasteiro, lá foi a equipa em transição rápido com a bola na relva, de passe em passe até o iraniano se devolver aos remates de bom porto, cinco partidas depois. Lá atrás, o aniversariante mostrava os dentes brancos de felicidade.
Sorria o jogador em quem o golo começou, o mais velho dos presentes em campo e o quarentão mais novo do futebol, ainda largos minutos se contariam com Pepe a monopolizar os seus metros quadrados de quintal, antecipando-se aqui, cortando uma bola acolá, orientando a linha defensiva e ajustando marcações consoante o pomposo Gil Vicente orientava as suas saídas de bola curtas. O visitante queria jogar, o anfitrião pretendia despachar, via-se a intenção de Uribe e Otávio em olharem para longe e buscarem um passe vertical em Taremi ou Danny Namaso, os corredores em quem o FC Porto apostava ao mínimo desequilíbrio criado.
Esse ímpeto era uma reminiscência de épocas anteriores em que a fome pela profundidade nutria a pressa nas jogadas. Percebia-se: para o Gil Vicente, projetando tanta gente por diante da bola, centrais abertos para jogarem, com extremos a pisarem as linhas para ‘alargar’ o campo e esticar o bloco adversário, qualquer perda significava crateras disponíveis. E Pêpê teve um golo feito que desfez na pequena área, falhando o remate de baliza aberta (9’), antes de ser ele a desequilibrar com uma finta mordaz, lançar Namaso e o inglês bater a bola com estrondo (18’) à barra. Mas outros elementos em tempos também tão portistas eram erráticos.
A reação à perda era buracosa, via-se chegadas em atraso às receções dos adversários e abordagens à queima, Wendell o executante-mor delas, Eustáquio o culpado maior de passes falhados, cada um pequeno responsável à sua escala de uma desorganização crescente que dava momentos de transição atacante ao Gil Vicente, onde moram futebolistas cheios de ameaça nas chuteiras. Inclusive longe da baliza e enganosamente encarados como dóceis, nada disso é Tomás Araújo, central de fino pé que conduziu com uma bola meio-campo adentro, acelerou e desmarcou Zé Carlos rasgando um passe com o exterior da bota. O lateral cruzou e goleador de Barcelos enganou a idade.
Quando Fran Navarro engatilhou a sua corrida na área, Pepe viu-o; o central ajustou-se entre ele e a baliza, rodou a cabeça para lhe confirmar a localização e aí o avançado ameaçou um ataque ao primeiro poste, para a frente dele, mas, quando o defesa de tantas núpcias destas virou devolveu os olhos à bola, o malandro espanhol teve a confirmação de compra do seu engano, frenou a corrida e desmarcou-se para as costas de Pepe. E o cruzamento (27’) deu-lhe o 17.º golo na época e uma condecoração de melhor marcador da história gilista no campeonato.
A partir daqui, houve caos para o FC Porto.



Não um pequeno caos deliberado como o trabalhado quando saem com a bola do centro do campo, mas um turbilhão, um ciclone caótico de verdade, antes já Mauro Boseli rematara com potência para Diogo Costa ter de salvar, porém dali em diante foi diferente, para pior. Nada de reativo os dragões tinham inventado quando o atazanante Murilo, com o seu pé esquerdo UHU, se precipitou com a bola contra os defesas do FC Porto e esperou que João Mário se comprometesse nos apoios para isolar Boseli fazendo um túnel das pernas do adversário. Em queda, a bola tocou num braço do defesa e o VAR fez o árbitro trocar para vermelho o cartão amarelo que mostrara.
Trinta e cinco minutos de jogo e o que Murilo fazia a Wendell, o precipitado e azarado que o tinha de encarar, acrescia a cada jogada, o desespero de um brasileiro a chocar na calma de outro, o extremo torcia a espinha do lateral e ainda abanaria a barra da baliza (40’) quando Fujimoto, outro canhoto, foi à direita tabelar com ele. Essa fórmula repetir-se-ia mais tarde, depois de Uribe pisar Boseli na área e outra vez o VAR, outro apito e um penálti. Fran Navarro pegou na bola, deu-a a Murilo e o canhoto terá sentido telepaticamente a palmada que Diogo Costa deu no disparo, insuficiente para evitar (45’) outro golo. Ao intervalo, o agudo dos assobios despedia os jogadores para os balneários.
Herculeamente teriam sempre de jogar, heroicamente também, ter menos um corpo num hectare de relva equivale a pernas saturadas, a pulmões esvaziados, a cérebro a decidir mal por pouco oxigénio a chegar-lhe, esperados sintomas que Uribe pioraria. Seis minutos jogados na segunda parte e o colombiano voltou a pisar Boseli, o mesmo argentino, para receber um segundo cartão amarelo. E contar o que se viu a seguir não requer fartura de detalhe.
O confortável Gil Vicente, gozando da mordomia dos números que exaltaria toda a equipa de futebol no mundo, conteve-se, preferiu a contrição ao aproveitamento. Em futebolês, chama-se especular ao que os de Barcelos fizeram - só passes certeiramente no pé, garantidamente seguros, que seguramente não levariam a perdas de bola. Operando bem as trocas de bola, haveria sempre duas ilhas sozinhas em quem apostar, mas, fazendo como o Gil, lento e previsível, o FC Porto, apesar de muito ter de correr, era capaz de manter o adversário longe da área cuidando dos espaços, sem ser seduzido a saltar na pressão a adversários.
Resumindo, o maravilhamento cénico do Gil pela vantagem no resultado e nos jogadores em campo fê-los jogar, não jogando. Apenas tentaram um remate, já nos 85’, atabalhoado e contra futebolistas de rastos, num clássico três-contra-dois que mal iam levaram à finalização. Murilo sairia, Fujimoto apagar-se-ia, só Tomás Araújo, um defesa central, dava algum risco à bola. O medo de não ganhar superou a ousadia de querer arriscar.
Sentindo o refreio alheio, os jogadores do FC Porto aventuraram-se no caos, eles ousaram, quiserem contrariar a improbabilidade e até Pepe, cortando bolas atrás, sprinta com o seu corpo fustigado por batalhas rumo à outra área para receber o cruzamento de quem sozinho lograsse endereçar-lhe algo. Era assim, tentando ligar investidas solitárias, sem plano, que os dragões espernearam levemente com vida. Um golo que não o foi cortar-lhes-ia muita da vida que ainda lhes restava, aos 68’, pelos 32 centímetros proibidos com que Eustáquio se lançou para desviar um passe de Pêpê. Continuaria o jogo, permaneceu ali a energia conjunta de uma equipa esgotada.
Quando a partida se foi, Pepe deixou-se tombar na relva. Braços e pernas esticados, cara afundada no tapete, era um esqueleto massacrado pelo esforço, nenhum quarentão deveria submeter-se às roldanas de tal desgaste e ele nem fôlego parecia ter ao retirar a tala, depois a ligadura, por fim destapando o antebraço que aloja o cúbito a que foi operado há meses, mais uma marca de guerra que desguarneceu para aplaudir a bancada de adeptos onde uma tarja se esticou em seu nome: “Parabéns, capitão! 40 anos disto!”.
De olhar vazio, desprovido de reação na cara, Pepe agradeceu e beijou o símbolo do clube. Manter o escudo de campeão nacional estampado mesmo ao lado na camisola que despiria para oferecer a um adepto fica mais árduo - a derrota deixa o FC Porto a oito pontos da liderança do Benfica.