Ainda os músculos sacudiam o pó e se aprontavam para serem molas como se quer nas pernas, soltando pulos para depois lhes suster a aterragem, já o jogo se punha endiabrado, como se tomado por um espírito movido a batidas de techno acelerado: aos 48 segundos, a palma da mão do gigante Adrian Sipos encostou na cara de Kiko Costa, o húngaro foi expulso, nos dois minutos seguintes a seleção nacional arremessou duas bolas à barra, o guarda-redes Miguel Espinha esticou-se em duas paradas gigantes, o lateral caçula levou novamente ‘pancada’ e havia islandeses a gritar nas bancadas a favor de Portugal.
Estes decibéis estrangeiros eram outra costela de esquizofrenia difícil de entender no último dos jogos da seleção na fase de grupos do Mundial - tendo perdido contra os húngaros, líderes do ajuntamento, a Islândia passaria à main round no terceiro lugar caso os portugueses ali vencessem. Não estamos nós aqui para desafiar lógicas próprias, talvez sobrasse simpatia nórdica pelas valias que repararam quando derrotaram a seleção nacional, mas não tanto quanto as exibiram de arranque frente à Hungria.
Com os mísseis aprontados repentinamente por Kiko Costa, as trocas posicionais que ligaram bonitas jogadas entre ele, Rui Silva e André Gomes, mais as defesas dos tentáculos de Miguel Espinha, aos 13’ só uma bola entrara na baliza portuguesa e a diferença era de cinco, aos 20’ já ia em oito golos (chegou a tocar os nove) e pouco depois a Hungria, país mais andebolístico do que Portugal, começou a abdicar de ter guarda-redes quando atacava. A culpa da desesperante medida a que os húngaros cedo recorreram devia-se à extravagante mestria com que os portugueses pareciam levitar em ataque, ligando jogadas sem soluços, depois formando paredes de betão quando tinham que se defender.
Ajustando-se à resolução na qual se projetava a mais do que louvável exibição, Portugal vencia por 16-9 ao intervalo, elogio era constatar a conta perdida aos golos em falta para haver no resultado mais da justiça que no desporto nada importa. Chema Rodríguez, o espanhol que treina o Benfica revezando-se nas tarefas de selecionador da Hungria, gesticulava freneticamente a cada desconto de tempo, falando apressadamente num inglês irritado: a sua equipa, às tantas, limitava-se a mastigar posses de bola até encontrar um bloqueio que brotasse via aberta rumo a Miklós Rosta, para ele armar a catapulta no alto dos seus 2,03 metros. Perigoso, mas por demais previsível.


Perante a escassez de soluções e os poucos frutos extraídos dos seus movimentos atacantes, os húngaros, às tantas, redundaram as suas jogadas. Projetavam-se, com a bola, contra os menos corpulentos portugueses, apostando nos duelos ou simplesmente tentando abalroar os adversários. Nesta estratégia, sacavam quase tantas faltas ofensivas quanto golos - além do saco de gelo depositado no pescoço do capitão Rui Silva. Enquanto isso, a leveza portuguesa prosseguia a sua coleção de movimentos de bonita simplicidade para ir mantendo a vantagem nos seis, sete golos.
Entrando no último quarto de hora, a criatividade de simulações e ambidestria de Miguel Martins, aliadas à soltura do absurdo andebol que os 17 anos de Kiko Costa evidencia, foram mantendo Portugal lá longe no horizonte dos húngaros, infelizes com tanto solavanco em tudo o que tentava fazer, mas sempre unidimensionais na forma como acabavam por se frustrar com as dificuldades em pisarem dentro da área de nove metros adversária. Na segunda parte foram os 2,03 metros de outro falante de magiar, Richárd Bodó, a serem usados com abundância.
E no último desconto de tempo, com apenas sete segundos no relógio, viam-se sorrisos rasgados no amontoado português, nos dedos de algumas mãos se lembrava o tempo que restava a bem da protocolar chamada à terra face à magnitude da ocasião e seguiu-se uma posse de bola inócua para, então, surgirem os abraços, os pulos e a festa. Portugal ganhou à Hungria por 27-20, menos um golo de diferença comparando com a vitória no Europeu de há três anos, já na main round para onde agora avança no Mundial.
A historicamente fenomenal equipa de Paulo Jorge Pereira, selecionador que assistiu do hotel (devido a suspensão) à fase de grupos de onde os portugueses saem, outra vez, no 1.º lugar como em 2021, vai com dois pontos para 2.ª fase de onde quererá sair para melhorar o 10.º lugar do Mundial anterior, onde esta fornada de gente talentosa já deixou história. Agora é continuar a escrevê-la molhando com tinta a ponta da Espinha de Miguel, o guarda-redes das 15 defesas contra a Hungria o que o apelida também pode ser cravado.
Os próximos adversários serão a Suécia, de novo a Islândia e a Hungria, Cabo Verde e o Brasil, este já na quarta-feira, às 14h30.