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Croácia - Bélgica. A desgraça do avançado

Crónica de Jogo

James Williamson - AMA

Bastou um empate à Croácia para seguir em frente, enquanto a Bélgica, após vitória de Marrocos contra o Canadá, caiu e ficou longe do terceiro lugar conquistado há quatro anos. Lukaku entrou ao intervalo e teve oportunidades para ser o herói do escritório. Mas falhou e a seguir chorou no peito de Henry

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Hugo Tavares da Silva

Hugo Tavares da Silva

enviado ao Mundial 2022

Jornalista

Os avançados foram inventados para meter a bola dentro da baliza. São talvez os futebolistas mais carentes e complexos num plantel, sobretudo quando aquele mel que habitualmente escorre das botas seca e o anonimato abafa com violência, como uma mão firme, a nuca e os ombros. Enquanto suplentes, desejam secretamente que o 0-0 se mantenha, pois terão de ser chamados e é só mais uma oportunidade para serem os heróis de mais um dia santo no ofício. Mas, quando não o são, é a maior agonia de todas. Se não existem, vem a mágoa. Se existem, falhando, é trágico. Uma desgraça. E Lukaku, que saltou do banco para resolver um apuramento para os ‘oitavos’, sentiu tudo isso esta noite. Tapou a cara com a camisola, a seguir ao apito final, e chorou no peito de Thierry Henry.

Nem podia deixar de ser assim. O jogo entre Bélgica e Croácia, dois semifinalistas com sortes diferentes em 2018, começou com uma roleta à Zidane de Yannick Carrasco. A facilidade para o drible é quase insultuosa. A seguir foi Kevin de Bruyne, que, afogando no esquecimento as alegadas desavenças que dividem o balneário belga, correu como sempre corre quando lhe dão espaço e ofereceu um bombom a Dries Mertens. O avançado, baixote e bom de bola, atirou por cima.

O futebol da Bélgica fluía bem. Mas foi para a Croácia que o árbitro apitou um penálti do imprudente Carrasco. O VAR, depois de alguns minutos, acabaria por decretar um fora de jogo que nos coloca no âmbito da ficção científica e de tudo o que não é razoável. Cancelou-se assim o ‘festival Bernabéu’, com Luka Modric e Thibaut Courtois olhos nos olhos. Tem graça esta coisa de o médio do Real Madrid viver como se não soubesse que quando lhe cantam os parabéns significa que está 365 dias mais velho. Galgando nesta irrealidade, é um pouco como no filme “Birdman”, onde se menciona a virtude da ignorância.

Já lado a lado com Modrić, literalmente, estavam Marcelo Brozović e Mateo Kovačić. Resulta estranho ver como jogavam realmente em linha, como se só pudesse avançar um de cada vez ou não houvesse vantagem em combinarem encontrar-se num qualquer lugar do jardim que está ali em baixo. A classificação dá conta de que Marrocos está a vencer, o que é um gerador de tensão seguramente. A Bélgica agora tinha de pedalar. E o jogo esvaziou-se de ideias, ambiente e ritmo. Talvez o medo tenha entrado na equação ou então era a dura seriedade do momento e do eventual adeus.

Borna Sosa, o lateral esquerdo da Croácia, apareceu o jogo todo com uma facilidade tremenda no ataque. A parte mais difícil foi dar com o cruzamento. Mais afinado estava Ivan Perišić, como sempre, com uma pedalada e solidariedade que não acabam.

Francois Nel

Para devolver à Bélgica a atitude inicial, por breves instantes, Roberto Martínez lançou Romelu Lukaku. Perdia-se Mertens, mas ganhava-se uma referência que permitia um jogo direto diferente, ou um pivô perto da baliza. Talvez seja o melhor avançado do mundo a fazê-lo. E as 43,984 pessoas só têm a agradecer a Martínez por esta substituição. Lukaku teve algumas oportunidades claríssimas, escandalosas vá, uma delas a recarga de uma jogada atrevida de Carrasco, que o canhoto rematou ao poste. E teve outras chances: os modernos números da catástrofe são assombrosos.

O defesa croata Joško Gvardiol ia tendo um excelente dia no escritório. Com uma máscara ameaçadora, foi forte e leal nos duelos e ainda foi quem desequilibrar vindo de trás, como uma nuvem alimentada com betão, num jeito sublime e imparável ao mesmo tempo. O facto de jogar no Leipzig funciona quase como um carimbo de qualidade, técnica e não só, também de conhecimento do jogo. Ou seja, poderia estar a jogar em 2040. O defesa, de apenas 20 anos, serviu Kovačić já perto da baliza, depois de uma correria especial. Boa defesa de Courtois.

O guarda-redes do Real Madrid continuaria a encher a baliza. Depois, foi a remate de Modrić, que simulou qualquer coisa, enganou Axel Witsel e bateu na baliza com o pé esquerdo. O número 10 é daqueles por quem suspiramos e suspiraremos sempre, como se tivesse jogado num qualquer Campeonato do Mundo entre 1970 e 1990, a trágica e linda medida da nostalgia. É generoso e não negoceia as gotas de suor que dispensa. É um génio com 50 olhos. E, depois, senhores, a bola é o seu brinquedo.

Começou, a meia hora do fim, o festival de substituições. A mais famosa, e a sugerir a inutilidade ou incapacidade de um jogador que já foi tido como um dos maiores do planeta, aconteceu a somente três minutos dos 90' com a entrada de Eden Hazard. Já Kevin de Bruyne teve um jogo estranhamente discreto, embora haja pormenores e detalhes que o colocam acima do resto.

Marrocos continuava a vencer o Canadá, com Steven Vitória na equipa titular, o que complicava a vida da Bélgica, que encerrava assim, sem grande prestígio (um golo em 270 minutos), o ciclo desta geração de ouro. Já depois da hora, Jeremy Doku acelerou pela esquerda e Thorgan Hazard cruzou para o segundo poste. A bola viajou por cima de Dominik Livaković e sofreu um ameaço de um defesa, que enganou o pobre Lukaku. Em vez de meter a cabeça, deixou que o peito tocasse na bola e transportasse agora uma dor que nenhum avançado quer sentir.