🏳️🌈 O futebol é 11 contra 11 e no fim ganham os japoneses. E ninguém cala os alemães
23.11.2022 às 15h25

JEWEL SAMAD
Depois da resistência e de ver os alemães a desfrutarem da bola como só os bons podem fazer, os futebolistas do Japão voaram na segunda parte e viraram o resultado para 2-1. A Alemanha protestou contra a FIFA antes do jogo começar, tapando a boca
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O jogo ainda nem tinha começado e era já uma das histórias deste Campeonato do Mundo, assombrado pelas mortes de milhares de trabalhadores estrangeiros, pelas condições miseráveis de trabalho dos migrantes e pelo estrangulamento de direitos civis e humanos que tomamos por certos nas nossas sociedades. Na fotografia de família, mesmo antes do apito inicial do duelo inédito em competições oficiais contra o Japão, os futebolistas da Alemanha taparam a boca. Sentiam-se censurados, violados na sua liberdade, por não poderem exibir, sem consequências, uma mera braçadeira de capitão com um supostamente inofensivo arco-íris.
As bancadas do Khalifa International Stadium, em Ar-Rayyan, encheram-se lentamente. Havia muitas camisolas azuis, os japoneses são mais barulhentos do que os alemães. Ainda que a história fale: aqui muito perto da tribuna de imprensa, vê-se a camisola que Jürgen Klinsmann usou em 1990. O ofício de bomber, esta tarde, mudou-se para as botas de Ilkay Gündogan, após penálti caricato e levemente cometido por Shuichi Gonda.
Hidemasa Morita, em dúvida até a poucas horas do jogo de estreia no Mundial, ficou no banco. Thomas Müller, talvez o alemão mais feliz na Terra, foi o mais ovacionado pelos germânicos nas bancadas. O que jogou foi uma barbaridade. A inteligência e a técnica mentirosamente tosca e deselegante são sublimes.
A camisola do Japão, o jeito solidário de jogar, a vénia do guarda-redes perante os adeptos quando chegou à baliza e o hino, que parecia o mais relaxante dos chás a entrar pelos ouvidos, tornam esta seleção sempre especial de acompanhar. Tecnicamente são bons, e têm boas ideias, mas neste dia jogaram contra uns gigantes que outrora chocavam como se tivessem a força de três mamutes e que agora tocam na bola com uns pés de veludo. A fluidez do jogo é notável, como chegam onde querem chegar, como combinam, como metem gente por dentro para furar as resistências alheias.

David Ramos - FIFA
Jamal Musiala só precisou de alguns segundos para revelar que vinha enfeitiçar o corredor esquerdo como se fosse uma serpente. No meio era a bola quem ficava enfeitiçada pelas ordens silenciosas de Joshua Kimmich, com o sócio e futuro treinador Gundogan por perto.
O Japão, ligado e pressionante, foi aceitando o papel secundário e esperou atrás, deixando-se bailar perante as trocas de bolas e a presença de tantos alemães à frente da área. À chegada ao intervalo, a posse de bola estava perto dos 80%. Jogadores como Takefusa Kubo e Daichi Kamada, habituados a serem protagonistas, iam tolerando as evidências esmagadoras e bufavam com a alma. Certinho era que, quando recebiam a bola, disparavam na frente. Não havia calculismos. Junya Ito, pela direita, era quem entusiasmava mais os muitos japoneses entre os 42 mil no estádio.
Ao Tanaka e Wataru Endo cresceram na segunda parte, ainda mais quando o selecionador japonês, Hajime Moriyasu, investiu numa linha de cinco. Os alemães ficaram mais agressivos, mas os japoneses começaram a morder como os alemães mordem nas fases avançadas dos treinos.
A torneira do futebol bonito da Alemanha foi secando. Gonda ficou maior do que o Monte Fuji. A bola perdeu a alergia ao meio-campo germânico e o Japão, aplaudido pelas suas gentes pela resistência humilde e enganosamente impotente. Também havia assobios quando os de branco metiam a bola em Neuer, o líder da revolta silenciosa e com a braçadeira tapada, fazendo lembrar os atrasos em Campeonatos do Mundo de tempos idos. Depois do golo, os japoneses já haviam mostrado outra face, queriam pressionar à frente e tentar a sorte.
Quando Takuma Asano, do Bochum, entrou e tudo mudou. Até se ouviram alguns pássaros a cantar, como se antecipassem alguma coisa verdadeira especial. O poste tilintar depois de um remate de Gundogan e talvez os pássaros tivessem razão. Kamada apareceu mais. Asano com a bola, remate para fora. Primeiro aviso. O jogo deixou de ser uma peladinha de Kimmich e amigos. A seguir, lado a lado com Asano num corredor, Antonio Rüdiger chegou a levantar os joelhos quase até ao peito em jeito de brincadeira. A velocidade que ambos alcançaram foi interessante. A vingança viria depois.

Nick Potts - PA Images
Neuer negou um bom golo a Ito e, na ressaca, Hiroki Sakai, o ala direito, atirou por cima, tão alto que nem no arco-íris entraria. Mas cheirava a golo. E foi o que aconteceu, aos 75’. Ritsu Doan, acabadinho de entrar, aproveitou mais uma defesa do quase insuperável Neuer e empurrou para a baliza deserta. Takumi Minamino, já em campo com a camisola 10, esteve envolvido na jogada. Os japoneses nas bancadas levitavam, o hino era cantado agora pelas pernas fortes e incansáveis dos jogadores de azul.
Os segundos de glória de Asano, a tal vingança, chegaram mesmo. Uma bola longa apanhou a defesa alemã desprevenida e ele acreditou. Não fez outra coisa desde que entrou. Rüdiger e companheiros fiaram-se no fora de jogo. Asano continuou, continuou, aguentou uma carga de Nico Schlotterbeck, continuou e rematou para as redes superiores da baliza com uma convicção admirável.
O Japão fazia a festa. Sofria-se a cada ataque da Alemanha. A resistência, o modelo original, foi recuperado, agora inspirados pela certeza de que estavam prestes a fazer algo grandioso, tal como a Arábia Saudita havia feito à Argentina. Segundo a Opta, nunca ninguém ganhara um jogo do Campeonato do Mundo com apenas 26,2% de posse de bola. A frase de Gary Lineker merece uma atualização. Afinal, o futebol é 11 contra 11 e no fim ganham os japoneses e ninguém cala os alemães. Que se tire, com vontade, o chapéu aos dois lados.