Ciclismo

Pogačar gostou tanto da brincadeira que a repetiu, atacou a mais de 100 quilómetros e ninguém lhe tirou o arco-íris de campeão do mundo

Pogačar gostou tanto da brincadeira que a repetiu, atacou a mais de 100 quilómetros e ninguém lhe tirou o arco-íris de campeão do mundo
Dario Belingheri

Pelo segundo Mundial seguido, o esloveno banalizou o incrível, voltou a atacar com mais de uma centena de quilómetros em falta e, a 66 da meta, ninguém aguentou o ritmo das pedaladas que só ele consegue dar. Quando acabou a corrida em Kigali, no Ruanda, supostamente a mais difícil de sempre na história da prova (começaram 165 ciclistas, terminaram 30), Tadej Pogačar estava sozinho a revalidar o seu título. Afonso Eulálio foi o único português a sobreviver e ficou no 9.º lugar, após Ivo Oliveira, que desistiria, se aguentar numa fuga durante mais de 2h30

A licra branca com o vermelho nos braços e a flanquear o tronco, apontamentos de verde nas mangas, pôs-se fina, esguia e apressada em Ivo Oliveira, justa ao delgado corpo do campeão nacional, desde cedo imiscuído na dianteira da corrida, ele mais um francês, um dinamarquês, um suíço, um neerlandês e um alemão, alentados a porem-se em fuga na órbita da Kigali enganadora, capital do Ruanda, muito bonita de se ver na sua fartura de natureza, nos prados verdejantes, no arvoredo abundante, nas montanhas lá ao longe no horizonte, com neblina no topo, mas de fustigação impiedosa para quem pedalava.

Por vezes, sublimes que eram os planos televisivos das paisagens em redor, tão a escancarar os queixos com a beleza nativa do país africano, dava para olvidar, por momentos, o quão árdua a prova de estrada de elites dos Mundiais de ciclismo se punha a testar a fibra dos ciclistas: seriam 265,7 quilómetros espalhados por 15 voltas a um circuito citadino, de base, acima dos 1500 metros de altitude, feito de alguns sobe e desce e um par de elevações, nenhuma a superar os 8,1% de inclinação média embora uma delas empedrada, para as pernas saberem a toneladas e tremelicar os ânimos de quem pedalava, amolecidos pelo calor e empapados pela humidade. Mais adiante na tarefa viriam as temíveis e empinadas subidas da única volta programada para o circuito maior, as que definiriam a corrida.

Enquanto gravitou pela cidade, as cores portuguesas andaram na fuga, lá na frente, Ivo a suceder ao exemplo do gémeo Rui, fugitivo na edição do ano passado, e a desbastar o extenuante caminho, também porque repetitivo, quando à segunda volta se viram logo ciclistas a desistirem, Mauro Alfredo de São Tomé um desses com esforço falido, outro da Serra Leoa, um do Senegal, quem competir por nações menos velocipédicas, sobretudo as de África onde esta prova se estreava, pareciam cair em dominó enquanto o pelotão vespertino foi a partir-se na mesma volta. O troço montado em Kigali era implacável, à quarta volta fatiara 20 ciclistas da corrida.

David Ramos

Caíam os abandonos e pedalavam na frente do pelotão as licras verde-alface da Eslovénia, único país com nove homens na prova (as restantes seleções levaram oito, no máximo, Portugal correu com quatro), sobretudo foram eles, nos 100 quilómetros iniciais, a forçarem o ritmo com o esforço de Primož Roglič e dos restantes escudeiros de Tadej Pogačar, o esplêndido que deu à Terra vindo de outra galáxia, um ano depois despido dos padrões do arco-íris que arrebatou na Suíça ao render-se à maluqueira de atacar sozinho a uma centena de quilómetros da meta. 

Devolvido às cores do seu país, dias antes fora dobrado no contrarrelógio por Remco Evenepoel, belga que com a ajuda dos conterrâneos se foi mantendo perto de ‘Pogi’ nas ruas de Kigali, ao longo da primeira metade da corrida, jamais largado o equivalente com pedais, e imunidade, a Faetonte, filho de Apolo na mitologia grega que se chamuscou ao aproximar-se do sol que nada queimou Tadej, quando se atreveu a ganhar sozinho em 2024.

No Ruanda não, dispensou as loucuras durante as nove voltas iniciais feitas nos mesmos repetitivos circuitos, custoso sem ser definitivo nas leves chicotadas dadas aos ciclistas, dificultado pela escalada empedrada da Côte de Kimihurura, mas longe de conhecer as lâminas do Monte e, sobretudo, do Muro de Kigali, ascensões maiores que esquartejaram o pelotão em pedaços quando a corrida maratonista - teria sempre entre seis a sete horas de duração - e necessariamente excêntrica - face à duração, havia casas de banho portáteis e plastificadas a ladearem estrada, ao longo do percurso, para os ciclistas se aliviarem - chegasse à única volta a dar (correspondente à 10.ª da prova) ao circuito maior.

Com pouco mais de 120 quilómetros em falta, Ivo Oliveira permanecia na frente, já só na companhia de Anders Foldager e Julien Bernard, o dinamarquês e o francês a aguentarem-se com ele a uns estáveis dois minutos do pelotão. Quando o Monte de Kigali se pôs à vista com os seus 5,9 quilómetros de subida, a borracha dos pneus tinha quase quatro horas de desgaste em cima, a meio da escalada os bofes do esforço do português deram de si, largou dos companheiros de fuga após mais de duras horas lá metido. Portugal esteve na fuga dos Mundiais graças a si.

A inclemente subida afiou os dentes no seu último quilometro, onde se inclinaria, às tantas, a 17%, rampa ansiada pelo tufão dos pedais que afinal, dada a volta ao calendário, voltou a ser um ciclone com uma centena de quilómetros para o destino: o brutal Pogačar atacou, de novo, sozinho e sem ajudas, partindo o diminuto pelotão na fase em que todos mais estariam a sofrer. Mais sôfregos ficaram os que ousaram segui-lo, muitos baquearam com a tentativa. Viu-se Remco Evenepoel, infalível a correr contra o relógio, ficar logo para trás na miséria de pedalar contra o ataque do esloveno.

O único a segui-lo na roda, num primeiro momento, foi Juan Ayuso, o espanhol cheio de si noutras ocasiões, prestes a ser ex-companheiro do esloveno na UAE Emirates talvez porque gosta de pedalar com o umbigo, mas seria o valente Isaac del Toro, mexicano a fim destes altos do ciclismo que pertence à equipa de Tadej e assim continuará, a apanhar a rodagem do senhor arco-íris. Ele e o esloveno cedo deixaram Ayuso para trás.

David Ramos

O Monte de Kigali esfarrapara a corrida a meias com o vaipe atacante, mais um, ao alcance apenas de Tadej se feito com tal brutidão, tamanha constância no poder de pedalada que pulveriza quem é obrigado a tentar acompanhar. O Muro em pavé, engolido por pessoas de ambos os lados da subida, encarregou-se de amolgar mais ainda as armaduras dos pobres coitados que se obrigava a tentar mantê-lo à vista, pois responder-lhe era uma impossibilidade. Foi aí, na empedrada e inclinava subida temível que Ayuso descolou, logrando aguentar-se no grupo perseguidor onde se juntou aos australianos Jai Hindley e Jay Vine, Roglic idem, o irlandês Ben Healy também, quando os estragos ainda estavam por apurar.

Regressada a corrida ao circuito inicial, Pogačar e Del Toro tinham coisa de um minuto de avanço sobre um grupo perseguidor que reuniu pouco mais de 30 homens, em suma era uma cimeira dos melhores humanos: Mattias Skjelmose lá no meio, havia Richard Carapaz e Thomas Pidcock, o cansado Evenepoel aguentou-se no lote, mas com 75 quilómetros em falta desmontou, a refilar com a bicicleta e abanar os braços na barafunda. O belga que pusera as redes sociais a troçarem de Pogačar no contrarrelógio agora barafustava contra o equipamento. 

Entre o que se poderia chamar de um pelotão de pretendentes apareceu Artem Nych, o laborioso russo que venceu a Volta a Portugal, único não vindo de uma equipa da 1.ª divisão do ciclismo internacional, ali a acompanhar o ritmo. E, principalmente, nessa maralha pedalava Afonso Eulálio, estreante em Mundiais com os seus 23 anos. O grupo ainda se dividiria em dois, partido pelas ‘discussões’ em acelerar o ritmo para tentarem alcançar os da frente, mas a sina da corrida parecia fixada - era para Pogačar ou Del Toro a vencerem.

Ou se calhar não.

David Ramos

Com a meta a uns 65 quilómetros, o combustível do corajoso mexicano secou, Del Toro não aguentava o ritmo brutal do esloveno e descolou do campeão do Tour, devolvido à missão de pedalar sozinho a que se auto-condena. Ser grandioso pode equivaler à solidão, os génios desta estirpe viram ilhas.

Lá atrás, refeito dos gestos e pontapés de frustração - se houvesse rádios, não teria perdido tantos segundos fatais -, Remco Evenepoel de alguma forma fez por regressar à dianteira do grupo perseguidor, devoto a pedalar não contra o relógio mas contra o homem que faz mexer os ponteiros, era o belga a perseguir o esloveno, mais um ciclista a pulverizar os restantes pelo ritmo que impunha. A prova era bicéfala: Remco fustigava os sobreviventes, ficando com a companhia de apenas quatro (Healy, Pidcock, Hindley e Skjelmose) depois de Tadej os rebentar a todos. Até Ivo Oliveira já abandonara, sobrando só Eulálio em prova, no terceiro grupo perseguidor.

Em cada uma das quatro passagens que sobravam na Côte de Kimihurura, a subida com pedregulhos a fazerem de estrada, o esloveno dilatava em alguns segundos a vantagem, a sua monstruosidade sideral a dar de si, nem pedalando sozinho permitia uma aproximação. Seriam 66 quilómetros para ‘Pogi’ calcorrear isolado, nunca deixando a vantagem baixar do minuto, os seus penachos de cabelo espigado a saírem por entre as brechas do capacete, estética característica de quem estava a caminho de ser bicampeão mundial e tão imagem de marca dele quanto estes ataques fulminantes que gosta de dar com a meta ainda tão distante.

Na prova que proíbe auriculares nos ciclistas, vetados a desenvencilharem-se sem ajudas na estratégia, ninguém pôde vocalizar ao ouvido de Pogačar que com 20 quilómetros a restarem o belga que o caçava transformou a sua prova no que mais lhe convinha: Evenepoel fugiu a Skjelmose e Healy para transformar o final de corrida num contrarrelógio privado que puxasse por ele. Era Remco a tentar canalizar energias interiores, se algumas sobrassem, da sua façanha dias antes. Sem Vingeggard, Van der Poel ou João Almeida nestes Mundiais, era o humano que mais tentava chegar à atmosfera.

Não alcançaria o dono do arco-íris. Impossível é descobrir onde começa, mas fácil está a ser descortinar em quem acaba. Tadej Pogačar terá mais um ano com vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta a pintarem a sua licra para que todos vejam bem as cores do bicampeão do mundo de estrada caso, por algum acaso, o percam de vista. Aos 27 anos, a acrescentar aos quatro Tour de France, ao Giro d'Itália, às três Strade Bianche ou às duas Flèche Wallone, o esloveno voltou a imperar, com tanto tempo a solo, num Mundial.

Se excelso é para se livrar de todos os ciclistas, nobre fica a ocasião para o momento da vitória ser reservado só para ele, sem companhias nem vozes, mais de seis horas depois do começo. Pedalou os últimos metros sem mãos no guiador, preferiu ter as palmas abertas para o público, virados ao céu, a rir-se perante o público. Era uma lenda sobre rodas a passar.

Dario Belingheri

Atrás de Tadej, entre os 30 ciclistas que sobraram dos 165 que arrancaram esta dilacerante prova montada pelo Ruanda, a medalha de prata ficou para o belga que dobrou o esloveno sob a lei do relógio e ali o viu dobrar uma conquista na maior das provas. O bronze foi para o irlandês Ben Healy. E houve uma amostra de incrível persistência à portuguesa: o bravo Afonso Eulálio terminou no 9.º lugar, pela frente de gente como Pidcock, Hindley ou Roglič.

Também ele sorriu na meta, os sorrisos não são só pertença de extraterrestres.

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