Num Mundial “duro e seletivo”, irá o ”fogo interior” de Pogačar incendiar o Ruanda na busca de novo arco-íris?
Um treino da seleção italiana em Kigali
David Ramos
Para fechar uma semana de corridas em Kigali, a prova em linha de elites masculinos (domingo, 8h30, Eurosport 1) terá o esloveno "a querer mostrar quem é o boss" depois da derrota no contrarrelógio, conta quem tem falado com Tadej. José Poeira, selecionador nacional, analisa o percurso num país que tenta usar o desporto para limpar um péssimo registo de direitos humanos
Um animal espicaçado. Ego, essa capa de super-herói que tantas lendas do desporto vestem, ferido. Vontade de correr logo no dia seguinte, de corrigir a imagem, de ser predatório e letal.
A 21 de setembro, ver Remco Evenepoel ultrapassar Tadej Pogačar na parte final do contrarrelógio dos Mundiais de ciclismo foi como assistir a um eclipse do sol. O rei-sol a ser tapado, ofuscado. O belga partiu dois minutos atrás do esloveno e, mesmo assim, ultrapassou-o, sagrando-se tricampeão planetário da luta contra o tempo com uns brutais 2,37 minutos de avanço para o quatro vezes vencedor do Tour.
Que Evenepoel ganhasse na especialidade que domina "não foi uma surpresa", diz Andrés Cánovas, especialista de ciclismo da espanhola Radio Marca. "Mas vê-lo dobrar Pogačar foi uma imagem totalmente inesperada", acrescenta. Tadej não só foi arrasado por Remco: nem sequer chegou às medalhas, com a prata para o australiano Jay Vine e o bronze para o belga Ilan Van Wilder.
"Estás afetado pelo que sucedeu?". Esta é a questão que mais fizeram ao craque da Emirates nos últimos dias. Quem o refere é Igor Tominec, jornalista esloveno que está em Kigali a seguir a semana de competições. É desta pergunta que parte a tal reação do animal de orgulho ferido.
O ciclismo foi para o Ruanda disputar os Mundiais. Primeiros os contrarrelógios, a fechar as provas em linha, concluindo com a masculina (domingo, 8h30, Eurosport 1). Passados sete dias do improvável acontecimento do número um incapaz de seguir o ritmo de Evenepoel, Tominec fala com a Tribuna Expresso pouco depois de ter entrevistado Pogi, na antevisão da tentativa que o esloveno fará de revalidar a camisola de arco-íris, conseguida há 12 meses.
Pogačar a treinar em Kigali com Isaac del Toro, seu companheiro na Emirates e adversário nos Mundiais
Dario Belingheri
"O que sucedeu no contrarrelógio vai espicaçar-lhe o fogo interior. Vai estar muitíssimo motivado, até porque toda a gente lhe pergunta sobre como ter ficado de fora das medalhas mexeria com ele. Mal pode esperar por domingo, está muito confiante", indica Tominec.
José Poeira, selecionador nacional, está em Kigali há alguns dias. Está "bem impressionado" com as "boas estradas" e condições dos Mundiais e, tal como Tominec, não acredita num Pogačar em pior forma devido ao tempo perdido no crono. "São provas diferentes. A aposta dele sempre foi na corrida em linha. Acho que o resultado da semana passada não quer dizer muito para domingo", opina.
Humidade+altitude+quilometragem = “Pode ser demolidor”
A 92.ª edição dos Mundiais é a primeira em África. O percurso de 267,5 quilómetros contempla um circuito com múltiplas passagens pela Côte de Kigali, uma rampa de 800 metros com pendentes acima dos 10% de inclinação média. A meio da prova sobe-se o Mont Kigali, com 5,9 quilómetros a 6,8% de média.
José Poeira orienta as equipas nacionais de elites desde 2001 e diz que este é um Mundial "duro e seletivo", um dos "mais exigentes" em que já esteve. Porquê?
"São muitos quilómetros. Depois quase não há partes planas, é sempre a subir ou descer, com rampas inclinadas. Tem quase 6.000 metros de subida acumulada, é muito. E há o clima: não está muito calor, anda à volta dos 26.°C, mas sente-se muita humidade, o que volta a volta vai fazer estragos. Finalmente, há a questão da altitude. Todo o percurso é a 1.500 ou 1.600 metros de altitude, nunca descendo daí, o que torna o oxigénio mais rarefeito. Tudo somado dá um Mundial que pode ser demolidor", prevê Poeira, que já fez o reconhecimento juntamente com os elites (Ivo Oliveira, Tiago Antunes, Afonso Eulálio e António Morgado) e sub-23 (Gabriel Baptista, Daniel Lima, Lucas Lopes e Daniel Moreira) portugueses.
Evenepoel arrasou no contrarrelógio
David Ramos
Procurando farejar pistas para perceber como cada seleção abordará a corrida de elites, Igor Tominec acredita que "os favoritos vão esperar pelo Mont Kigali" para mexer com a prova. O esloveno não acredita que o seu compatriota, na busca do triunfo, faça uma das suas "loucuras", atacando a 100 quilómetros da meta, mas espera um Pogi "autoritário": "Quer mostrar quem é o boss do ciclismo. Uma coisa são estes contrarrelógios, que são a especialidade do Remco, outra são corridas de um dia de sete horas de duração", completa. Um Tadej estilo Michael Jordan, levando a peito a derrota para o estimular rumo à saborosa vingança?
José Poeira, a cumprir 25 anos deste tipo de competições, partilha da opinião de Tominec. "O Pogačar veio cá para ser campeão do mundo e ponto final. Acredito que vá fazer o papel dele e a gente já sabe o que isso significa", brinca.
O selecionador português espera que a subida ao Mont Kigali será "muito endurecida" para "eliminar alguns dos corredores mais potentes", tirando-os das últimas voltas do circuito. Na conclusão do Mundial, haver subidas em empedrado "será uma dificuldade acrescida", mas o traçado "não tem estradas estreitas e sinuosas", o que, tecnicamente, facilita a condução da bicicleta.
As opções de Portugal
"Tudo o que não seja uma vitória de Evenepoel ou de Pogačar será uma surpresa", refere Cánovas. Num segundo plano de candidatos, o espanhol destaca a "bela equipa da Austrália", com Jay Vine em grande forma, e a França, cujo selecionador, Thomas Voeckler, "saca sempre bons planos táticos", contando com a sabedoria de Julian Alaphilippe, campeão em 2020 e 2021.
Parte da comitiva portuguesa que está no Ruanda. Na ponta esquerda está José Poeira, o selecionador, com Cândido Barbosa, presidente da Federação, ao lado
José Poeira acredita num "panorama aberto", com "hipótese para surpresas", pela dificuldade em "controlar quando toda a corrida será a subir ou descer". Outras opções a ter em consideração são o jovem mexicano Isaac del Toro, já 13 vezes vencedor em 2025, Thomas Pidcock, terceiro na Vuelta, Juan Ayuso, líder de Espanha, ou o irlandês Ben Healy, que brilhou no Tour.
Para Portugal, estes Mundiais têm um aroma a mudança de geração. A dupla Rui Costa-Nelson Oliveira protagonizou a seleção nacional durante mais de uma década, com resultados assinaláveis, os quais tiveram no título mundial do poveiro, em 2013, o momento mais alto. Houve ainda mais três resultados de Rui Costa entre os 10 melhores na prova em linha e seis top 10 de Nelson Oliveira no contrarrelógio, ficando o homem da Movistar a sete segundos de uma medalha em 2017.
Sem nenhum dos dois veteranos presentes, e também com João Almeida ausente, conta-se com a juventude de Afonso Eulálio (23 anos) e de António Morgado (21), além dos 28 anos de Tiago Antunes e dos 29 de Ivo Oliveira.
José Poeira frisa que o "circuito assenta bem ao Ivo", sendo preciso perceber se o homem da Emirates consegue chegar relativamente perto da meta ainda com os melhores. Afonso Eulálio vem de uma boa Volta à Grã-Bretanha, onde foi sexto, e "evoluiu muito" na estreia no World Tour, ao passo que António Morgado "consegue surpreender num dia bom". Se a prova for muito dura, Eulálio poderá obter um bom resultado. Caso o ritmo seja menos intenso, Morgado ou Oliveira têm características para discutir uma classificação relevante.
“Andas duas ruas para a direita e já não é tudo tão perfeito“
O ciclismo é mais uma parte da grande aposta que o Ruanda tem feito no desporto internacional. O país já acolheu o congresso da FIFA, a NBA Basketball Africa League e tem "Visit Rwanda" nas camisolas do Arsenal, contando ainda com acordos de patrocínio com o Bayern Munique ou Atlético de Madrid.
Organizações como a Amnistia Internacional ou a Human Rights Watch têm alertado para a repressão feita pelo regime, com críticos a serem mortos ou a desaparecerem. O último líder da oposição que obteve algum destaque público, Victoire Ingabire, foi preso em junho, sendo que cinco membros do seu partido foram mortos ou desapareceram desde 2017.
Dario Belingheri
O M23, um grupo armado apoiado pelo Ruanda, tem sido acusado de cometer crimes de guerra no Congo, tal como a execução sumária de 140 civis em julho.
A União Ciclista Internacional tem apostado no crescimento do ciclismo em África e é nessa estratégia que se inserem estes Mundiais. Focando no lado desportivo, Andrés Cánovas destaca a "importância de ter um Mundial" no continente, realçando também a "participação de nações pouco comuns no ciclismo" em diferentes provas, o que "pode abrir algumas portas" para a modalidade. No contrarrelógio de elites, participantes do Sudão do Sul, da Serra Leoa, da Guiné-Bissau ou do Mali partilharam estradas com Evenepoel, ficando todos a mais de 25 minutos do belga.
Igor Tominec tem notado o "entusiasmo" das pessoas nas ruas. "Adoram que haja aqui as corridas, vibram imenso", afirma o esloveno. Ainda assim, partilha a experiência de quem já leva alguns dias em Kigali.
"Na televisão só vais ver estradas boas e bonitas. Já fiz algumas estradas secundárias e não é tudo tão perfeito, a verdade é que estão a vender bem o país, mas andas duas ruas para a direita e já não é tão idílico", refere Tominec.
A Human Rights Watch tem acusado o governo do Ruanda de, antes deste tipo de eventos internacionais, "limpar"as ruas de Kigali, detendo ou expulsando trabalhadores sexuais, crianças sem abrigo e outro tipo de pessoas que não contribuam para dar a imagem que se quer passar nas transmissões televisivas.