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Para Carlos Alexandre, Vieira foi “destacado” para o Benfica por Salgado “com uma linha de tesouraria sem fim”

O despacho do juiz Carlos Alexandre que determinou as medidas de coação a Luís Filipe Vieira está longe de se limitar ao passado recente das perdas do Novo Banco e dos negócios do Benfica. O magistrado recua quase duas décadas até à entrada de Vieira no clube da Luz… alegadamente por obra e graça do Espírito Santo. O banco, bem entendido. E esta é a conclusão que o juiz extraiu do interrogatório

Miguel Prado

NUNO FOX

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Luís Filipe Vieira teve direito ao último interrogatório na Operação Cartão Vermelho. Mas as várias horas que lá esteve não chegaram para deixar o juiz de instrução Carlos Alexandre cabalmente esclarecido.

“Interrogamo-nos [sobre] qual é o papel de Luís Filipe Vieira nisto tudo. Primeiro foi para o Benfica porque foi para lá 'destacado' por Ricardo Salgado, com uma linha de tesouraria sem fim”, lê-se no despacho de quase 300 páginas que fundamentou as medidas de coação dos arguidos neste inquérito.

As relações de Vieira com o Grupo Espírito Santo (GES) são parte importante da história. Afinal, foi aí a génese das elevadas dívidas do grupo Promovalor, que acabaram por suscitar perdas avultadas ao Novo Banco, suportadas pelo Fundo de Resolução.

O despacho do juiz Carlos Alexandre relata parte do que terá sido a versão de Luís Filipe Vieira no seu interrogatório, nomeadamente sobre a sua ida para o Benfica (Vieira chegou ao clube em 2001 como diretor e subiu a presidente em 2003). Ora, segundo o mesmo despacho, o agora suspenso presidente do Benfica terá procurado aconselhar-se com Filipe Pinhal (à época vice-presidente do BCP), que “lhe disse não ser boa ideia” (avançar para a liderança do clube da Luz).

“Decorreram anos em que Luís Filipe Vieira se sacrificou na sua vida pessoal até aparecer a crise imobiliária subprime [créditos hipotecários de alto risco] e depois o colapso do BES. Recebeu ingratidão dos novos administradores do banco, agora Novo Banco, até no caso Imosteps, onde no seu dizer se expusera a pedido de Ricardo Salgado”, refere ainda o juiz Carlos Alexandre.

A ligação entre Vieira e Salgado é igualmente invocada a respeito do negócio da Imosteps, a empresa que entrou nas contas do Novo Banco, em 2014, com uma dívida superior a 54 milhões de euros, créditos que seis anos mais tarde seriam comprados pelo empresário José António dos Santos.

A tese comum das defesas de Vieira e José António dos Santos é a de que o negócio Imosteps, incluindo o potencial de construção na barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, foi feito “em benefício” do acionista da Valouro e amigo de longa data do presidente do Benfica. Carlos Alexandre manifesta dúvidas.

“José [António dos] Santos, um gestor de um banco - Caixa Agrícola da Lourinhã - há trinta anos, acreditou piamente nas vantagens de investir oito milhões e meio de euros na compra de um terreno na segunda linha da praia, no Rio de Janeiro, colocando o dinheiro num fundo sem ver o terreno. Luís Filipe Vieira sempre lhe explicou tudo, é um amigo de várias décadas. Meteu-se nessa compra porque Luís Filipe Vieira lhe pedira”, observa o juiz de instrução. Que lembra que Vieira tinha sido convidado a “obter a resolução desse negócio por Ricardo Salgado” e que “ao Dr. Ricardo, nesse tempo, não se podia dizer que não”.

Não fica claro, do despacho, o que Vieira efetivamente disse e não disse em sede de interrogatório. Mas Carlos Alexandre deixa um relato na primeira pessoa que coincide com a versão que Luís Filipe Vieira deixou na comissão parlamentar de inquérito sobre o Novo Banco, a respeito das dívidas da Imosteps, no sentido de que ficou com esta empresa e a sua dívida a pedido do presidente do BES. “O banco BES tramou-me a vida. Vendo o que aconteceu, sinto que o Dr. Ricardo nunca foi meu amigo”, pode ler-se no despacho.

Imosteps. É preciso assinaturas de José António dos Santos “antes que ele morra”

O despacho de Carlos Alexandre observa ainda que as sessões de interrogatório “são incongruentes com os demais elementos de prova indiciária”. E o juiz deixa como exemplo a informação obtida em escutas a telefonemas de Tiago Vieira, filho de Luís Filipe Vieira, a respeito do negócio da Imosteps.

Recorde-se que em 2019 o Novo Banco decidiu vender os créditos que tinha sobre a Imosteps, tendo Luís Filipe Vieira sugerido a José António dos Santos que apresentasse uma oferta ao banco, o que viria a ser recusado pelo Fundo de Resolução, levando o Novo Banco a optar por alienar os créditos (54 milhões de euros) no pacote Nata II, comprado pelo fundo norte-americano Davidson Kempner por cerca de 5 milhões.

Já em 2020 este fundo revenderia esses créditos por 9 milhões a um fundo detido por José António dos Santos e administrado pela gestora de capital de risco Iberis Capital, cuja equipa integrava, entre outros, Diogo Chalbert dos Santos.

“É paradoxal ouvir Diogo Chalbert e Tiago Vieira dizerem que tem de se obter a assinatura de documentos de José [António dos] Santos, no caso da Tijuca “antes que ele morra”. Basta ver as datas dos telefonemas, a vertigem das visitas aos acionistas como José da Conceição Guilherme, os almoços até em “abandono” do ritmo de trabalho no Benfica (por exemplo em 29-06-2021) para se compreender a azáfama em articular algumas respostas que talvez tivessem de ser dadas a outras tantas perguntas”, nota Carlos Alexandre.

“Foi isso que motivou o pedido de buscas e de detenção dos senhores para interrogatório judicial”, acrescenta o juiz de instrução criminal da Operação Cartão Vermelho.

E as cartas de José António dos Santos para José Guilherme

O relato feito por Carlos Alexandre também abordou a oferta pública de aquisição (OPA) que o Benfica lançou sobre a Benfica SAD, e que não foi em frente porque a CMVM não deixou. Uma potencial operação que daria a José António dos Santos uma mais-valia superior a 11 milhões de euros.

Não avançou a OPA, mas avançou, já em 2021, há apenas algumas semanas, um acordo entre Vieira, José António dos Santos e outros acionistas minoritários, no sentido de que o empresário da Valouro lhes comprasse as suas posições, ficando com 25% (a sua participação atual é de 16%), que revenderia ao investidor norte-americano John Textor.

Carlos Alexandre nota que Vieira “agilizou a venda da parte de Zé Guilherme” e terá intermediado contactos entre este construtor e o acionista da Valouro, “levando cartas de José António dos Santos para José Guilherme que pelo caminho abria”.

“Luís Filipe Vieira não tinha interesse próprio no negócio da compra e venda do bloco de ações de José António dos Santos mas no entanto afadigou-se em contactos”, pode ainda ler-se no despacho do juiz Carlos Alexandre. “Tanta solicitude só se compreende num quadro de grande cumplicidade nos negócios”, refere o mesmo documento.

“Luís Filipe Vieira disse à CMVM, à Vieira De Almeida Advogados e a dois membros da SAD tudo o que havia para dizer sobre a OPA para criação de nova “governance” estilo Bayern Munique. É crível que nada tenha dito a José António dos Santos, que movimentando 700 milhões de euros por ano anda aos trocos de vinte milhões de ganhos se as suas acções do Benfica compradas a 1, 1,8, 2 e 2,70 euros, subirem para cinco euros ao par?!”, questiona o juiz de instrução.

Embora Carlos Alexandre tenha manifestado dúvidas sobre os depoimentos de alguns dos arguidos, o juiz também as levantou sobre a investigação do Ministério Público, sublinhando que este precisa de “densificar” o seu trabalho. Ainda assim, reconhece o juiz, “o mínimo que se pode dizer é que a prova indiciária já recolhida é fortemente impressiva”.

Luís Filipe Vieira é arguido neste processo estando indiciado por crimes de abuso de confiança, burla qualificada, falsificação de documentos, branqueamento de capitais, fraude fiscal e abuso de informação. O seu filho Tiago Vieira está indiciado pelos mesmos tipos de crimes, excepto o de abuso de informação.

José António dos Santos é suspeito dos crimes de burla qualificada, falsificação de documentos, branqueamento de capitais, fraude fiscal e abuso de informação. E o advogado e empresário Bruno Macedo é investigado por abuso de confiança, burla qualificada, falsificação de documentos, branqueamento de capitais e fraude fiscal.