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A casa às costas

“Na Hungria, o presidente do clube reuniu as mulheres dos jogadores para dizer-lhes que elas não estavam a deixar os maridos descansar”

As passagens de Hugo Seco pela Bulgária, Cazaquistão e Hungria davam para escrever um livro de histórias, como o próprio admite. Nesta segunda parte do Casa às Costas conta alguns dos episódios mais caricatos que viveu e explica por que razão decidiu regressar à Académica, que na época passada caiu para a Liga 3. Consciente das suas capacidades, o extremo direito assume ter perfil para ser treinador-adjunto e não principal, por ser muito direto nas opiniões que dá e revela um dom, que já provocou muitas gargalhadas nos colegas: imitar pessoas. Esta entrevista, que agora republicamos, foi das mais lidas da Tribuna Expresso em 2022

Alexandra Simões de Abreu

RUI DUARTE SILVA

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Como foi parar à Bulgária na época 2016/17? A Académica não quis renovar?
Eu terminava contrato com a Académica, havia a possibilidade de continuar no clube, só que não chegámos a um entendimento. Quando terminou a época, tive duas possibilidades de continuar em Portugal, na I Liga, no Marítimo e no Tondela.

Não ficou em nenhum deles porquê?
Acabei por não aceitar nenhum porque, em conversa com o meu empresário, considerámos estar na altura de conseguir fazer um contrato melhor. Aquelas duas propostas em Portugal eram melhores que a da Académica, mas era preferível não me precipitar, porque normalmente os contratos no estrangeiro eram melhores.

Quando lhe falou no Cherno More, da Bulgária, qual foi a sua reação?
Os valores oferecidos eram melhores que os que tinham surgido cá, mas não compensavam assim tanto. Mesmo assim decidi arriscar, porque a experiência que tinha tido fora tinha sido só aquela em Malta, quando ainda era miúdo.

Não lhe surgiu mais nada de fora?
Tinham aparecido umas situações também para a Roménia e para a Polónia. Acabei por optar por essa da Bulgária pela força que as pessoas fizeram. Senti que me conheciam e queriam mesmo, não era uma questão de alguém ter apresentado o meu nome e mostrarem algum interesse. Senti que já acompanhavam o meu percurso há algum tempo. Falei com um jogador português, o Ginho, que tinha estado nessa equipa, ele deu-me as melhores indicações sobre o clube, que era organizado, que estava a crescer. Sinceramente foi das opções mais acertadas que tive.

Hugo (à direita), enquanto jogador do Feirense a disputar a bola com Murillo, do Tondela

Hugo (à direita), enquanto jogador do Feirense a disputar a bola com Murillo, do Tondela

D.R.

A adaptação a Varna foi fácil?
O início foi muito difícil porque o povo daquela zona de leste é muito fechado, não acolhem muito bem os estrangeiros. Olham com desconfiança, como se os estrangeiros fossem para ali apenas pelo dinheiro. Mas felizmente as coisas começaram a correr bem.

Um futebol muito diferente do português?
Um bocadinho mais físico, mas fiquei surpreendido pela positiva, vi equipas a praticar futebol com muita qualidade. Adeptos fervorosos, com ambientes muito bons nos estádios.

Ficou a viver sozinho?
Sim. A minha namorada ainda estava na faculdade, em Coimbra, a tirar Animação. No início foi um bocadinho complicado porque não tinha nenhum jogador português, brasileiro, espanhol, com quem conversar. Tinha vários colegas checos, eslovacos, o resto, eram todos búlgaros.

O que fazia nos tempos livres?
No início da época, quando ainda estava bom tempo, ia quase todos os dias à praia, porque Varna tem praia. Aproveitava para ir ao ginásio no centro da cidade, era assim que passava o tempo. Foi uma aposta muito acertada, voltei a sentir aquela confiança de ser eu e mais 10, praticamente. O treinador dava-me muita confiança. Mas houve uma altura em que estive doente.

Com o quê?
Com uma virose gastro. Estive dez dias praticamente de cama quase sem treinar. Ao fim de cinco dias o treinador disse que eu tinha de ir para o jogo na mesma, fui, mesmo assim acabei por fazer um bom jogo, mas quando regressei a casa fiquei pior e acabei por ter de ir para o hospital. Estive três dias a soro, até desconfiaram que pudesse ser outra coisa. Mas o facto do treinador obrigar-me a ir ao jogo mostrava a confiança que tinha em mim. Até dezembro fiz talvez os melhores seis meses desde que jogo futebol. Sentia que desfrutava mesmo.

Tinha assinado por quanto tempo com o Cherno More?
Um ano de contrato. Já estávamos a falar na renovação e havia a possibilidade de ir para uma equipa melhor, o Levski, só que em dezembro, pouco tempo antes de vir de férias na paragem do campeonato, surgiu-me a possibilidade do Belenenses treinado pelo mister Quim Machado. Mexeu muito com a minha cabeça e por isso fiz tudo para ficar cá.

Mas não conseguiu ir para o Belenenses. Porquê?
Tentei libertar-me, eles não aceitaram. Pediram um valor, o presidente do Belenenses SAD, Rui Pedro Soares, disse que até podiam pagar aquele valor, mas o meu salário vinha para menos de metade daquilo que me davam inicialmente. Disse-lhes que não podia ficar em Portugal quase a pagar para jogar. A situação arrastou-se, eu sempre confiante que as coisas iam acabar por concretizar-se, até que chegamos a 26, 27 de janeiro e o Cherno More ameaçou-me. Se eu não me apresentasse no dia a seguir, metia o caso na FIFA. E pronto, falei com o meu empresário, disse que voltava para a Bulgária, mas que ia custar-me muito porque já estava a me mentalizar para ficar em Portugal. Nesse dia à noite, ele ligou-me a dizer que tinha o Feirense, da I Liga, e que o Feirense conseguia chegar a acordo com eles. Foi tudo muito rápido, acabei por ir para o Feirense, onde o treinador Nuno Manta Santos tinha acabado de assumir a equipa.

No jantar de despedida de solteiro. Hugo está ao fundo à direita

No jantar de despedida de solteiro. Hugo está ao fundo à direita

D.R.

A sua namorada foi viver consigo para Santa Maria da Feira?
Não, continuava a estudar em Coimbra.

O que achou do clube, era o que estava à espera?
Sinceramente, adorei. Posso dizer que foi o sítio onde até hoje me senti melhor, onde gostei mais de estar.

Explique por que razão.
Por tudo. É uma cidade tranquila, pequena, sem grande confusão, mas que tem tudo, e um clube de uma dimensão pequena, mas muito organizado, onde não faltava nada aos jogadores. Salários a horas, ou antes do tempo até, prémios de jogo a horas, eram pagos logo na semana a seguir; o que prometiam cumpriam à risca mesmo, não falhavam em nada. Tínhamos boas condições de trabalho, treinávamos na Academia que ficava a dois quilómetros do estádio. Tive a sorte de apanhar pessoas de excelência, desde direção à equipa técnica, fisioterapeutas, posto médico, diretores, e o melhor grupo que já apanhei no futebol.

Então foi uma boa época.
Quando cheguei ao Feirense fiz uma rotura muscular logo no meu terceiro jogo e quando regresso, quase a terminar a época, voltei a ter uma recaída no mesmo sítio. Ou seja, terminou a época para mim, por isso, esse primeiro meio ano não me correu muito bem. Quando terminou essa época tive a possibilidade de ir para a Tailândia, para o Bangkok, e quando tínhamos tudo acertado com o Feirense, o mister Nuno Manta Santos disse que não me deixava sair. Como os primeiros seis meses não me tinham corrido muito bem, ao dizer que não me deixava sair deu-me alguma confiança, era sinal que contava mesmo comigo. Acabei por ficar e a seguir faço se calhar a melhor época desde que jogo futebol.

A época 2017/18?
Sim, fiz 34 jogos, fisicamente sentia-me muito bem e tivemos um grupo que foi do melhor que já apanhei no futebol.

Tem muitas histórias para contar?
Tenho uma, em que fui eu a vítima. Eu andava sempre a pregar partidas aos meus colegas e um dia estava em casa e comecei a receber mensagens e telefonemas a perguntar em que estado é que estava o meu carro. Eu não estava a perceber, mas as pessoas diziam que tinham visto o meu anúncio no OLX. Eu achava que era alguém a brincar. Só comecei a acreditar que o meu carro estava mesmo no OLX, porque durante toda a tarde recebi mais de 30 chamadas e tinha mais de 20 mensagens no telemóvel. Eu não sabia se quem tinha feito aquilo era alguém da equipa ou algum amigo meu, mas andei dois dias a implorar por favor para retirarem o anúncio que eu já não aguentava mais receber chamadas sobre o carro [risos].

Uma selfie na bicicleta com o primeiro filho, Dinis

Uma selfie na bicicleta com o primeiro filho, Dinis

D.R.

Por que foi para o Cazaquistão?
Quando a época terminou havia a possibilidade de continuar, as pessoas do clube já tinham falado comigo, mas eu não tinha muita vontade em ficar porque não me tinha identificado muito com a maneira de ser do mister Nuno Manta Santos.

Porquê?
Pela forma de estar dele. Não é a forma dele treinar, porque até tinha uns métodos que eram interessantes, era mais a personalidade dele, era um bocadinho bipolar, só falava com o jogador quando precisava; um jogador que jogasse, andava com ele ao colo, e quando não jogava, ignorava-o completamente. Era capaz de passar na entrada do estádio e nem bom dia dizer sequer ao jogador. Eu não me identificava muito com isso e tinha dois, três colegas com quem me dava bem que passavam um bocadinho por isso. Eu tenho esse defeito que é sentir na pele a dor dos outros, sobretudo os que são chegados. Não consigo esconder os sentimentos, se não gosto de alguma coisa, não consigo estar com sorrisos, então fiz questão de demonstrar, até que houve uma altura em que chocámos.

Chocaram como?
Perto do final da época, fiz-lhe ver que não concordava com as atitudes que ele andava a ter com um ou dois jogadores e senti que o comportamento dele para comigo modificou-se. Às vezes caía em cima de mim durante os jogos, em lances que eram normais. Disse-lhe as coisas abertamente e de forma frontal, achei que ele ia conseguir aceitar, ele até agradeceu eu ser assim, frontal, mas depois... Pronto, chocámos algumas vezes. Mesmo assim, quando tivemos o jogo de despedida da manutenção, a direção veio falar comigo, disse querer que eu continuasse, mas como surgiu a hipótese de voltar a sair…

Só surgiu a hipótese do Irtysh?
E também a possibilidade de voltar à Bulgária.

Mas por que optou pelo Cazaquistão?
Aí, sinceramente, foi pela parte financeira. Fui com algum receio, não vou mentir.

Que ideia é que tinha do país?
A ideia que eu tinha era pior [risos]. Tinha um amigo que jogou lá meio ano, e esteve sem receber, embora noutra equipa. Tinha outro colega que tinha jogado lá e que também tinha detestado, ao fim de um mês queriam mandá-lo embora. Ou seja, as informações eram todas más. Entrei em contacto com o Carlos Fonseca, um português que estava no Irtysh há quatro anos. Pensei: é a pessoa certa para me dar informações, está no clube há quatro anos, não me vai enganar. Ele disse-me tal e qual como aquilo era, que no primeiro ano o clube teve alguns problemas financeiros, mas que a partir daí tinha cumprido sempre, que a mentalidade era um bocadinho diferente, para eu ir preparado, mas que estava a gostar.

Durante um treino no Irtysh, no Cazaquistão

Durante um treino no Irtysh, no Cazaquistão

D.R.

Como foi o impacto quando aterrou?
Ia preparado para o pior, até o meu empresário quando recebeu a proposta disse: "Vai preparado para sofrer. Sabes que é um país diferente, uma mentalidade diferente, tu vives as coisas muito intensamente, não ligues muito a pequenos detalhes, se são mais profissionais, menos profissionais, vai preparado para fazer o que tu gostas e tenta abstrair-te dessas coisas". Mas quando cheguei, a cidade, Pavlodar, não era assim tão má, pelo menos o centro. À volta, sim, era muito diferente daquilo a que estamos habituados.

Diferente como?
Casas sem condições, pessoas a viver na miséria. Quando aterrava, fiquei assustado, pensei, não posso ficar aqui, porque só via casas sem as mínimas condições, estradas em terra batida. À volta do aeroporto era assim. Pensei: não vou conseguir viver nisto. Mas quando começamos a ir mais para o centro, que era onde ficava o centro de estágio e o estádio, era uma cidade minimamente normal e adaptei-me facilmente. Mas, tenho uma história logo na minha chegada.

Então?
Além de ter perdido três voos quando fui para lá, perdi o voo na Turquia porque atrasou, tive de ficar a noite toda na Turquia, no dia seguinte o voo atrasou outra vez, perdi novamente o avião no aeroporto e depois o voo foi cancelado [risos]. Supostamente a viagem era de 19 horas e eu cheguei passados três dias e quando aterrei não tinha nenhuma mala. Tinha levado três malas e não tinha nenhuma, as malas desapareceram. Estive 10 dias sem nada, só tinha a mochila que tinha levado às costas e onde por acaso tinha umas chuteiras. Por algum motivo meti umas chuteiras caso acontecesse alguma coisa, uma escova de dentes, o telemóvel, o carregador e acho que não tinha mais nada. Andei dez dias quase sempre com a mesma roupa ou com a roupa de treinos do clube. Passados dez dias apareceram as malas todas partidas, mas estava tudo.

As pessoas são simpáticas?
Não são tão frias, como, por exemplo, na Bulgária, mas também é um bocadinho cada um por si. O colega do lado, se tiver algum problema, tem que se safar, é um bocadinho assim a mentalidade.

E o futebol?
Têm três, quatro equipas que praticam um bom futebol, o resto é muito diferente do que estamos habituados em Portugal. Equipas mais viradas para a parte física, sem grandes condições. Taticamente, o país está muito atrasado. Em termos técnicos, eu fui ver alguns jogos da formação do clube e tinha miúdos interessantes nessa vertente técnica, agora taticamente é um povo que está muito atrasado.

Durante um jogo, no Cazaquistão

Durante um jogo, no Cazaquistão

D.R.

Ficou a viver sozinho, calculo.
Sim, mas estava sempre com Camará e o brasileiro Rodrigo António. Com o Carlos Fonseca só nos treinos porque ele já tinha lá a família. Com o Rodrigo e o Camará é que estava sempre, íamos ao ginásio, jantar fora. A minha mulher foi lá ter e acabámos por ter um episódio engraçado.

Conte.
A minha mulher chegou e como na altura os resultados não estavam muito bons, o presidente obrigou os jogadores a viver na Academia. Eu não concordei, disse que não, que era impensável e ele disse termos de ficar até o final da época. Ou seja, a minha mulher tinha chegado há dois dias, tínhamos arranjado casa porque ela ia para lá e o presidente obrigou-nos a ir para a Academia viver. Eu ainda disse: “Então a minha mulher vem agora para o Cazaquistão e vai ficar a viver sozinha?”. Falei com o capitão e ele disse-me: “Isto aqui é o momento, se agora ganharmos um ou dois jogos, esta regra já acabou, já podes ir para casa".

Foi isso que aconteceu?
Foi. Tínhamos dois jogos e lembro-me que fui para esses dois jogos muito ansioso. Só pensava temos de ganhar, dê por onde der. Ganhámos esses dois jogos, o capitão foi falar com o presidente e ele disse que podíamos ir para casa que já estava tudo bem [risos]. Mas naqueles três ou quatro dias a minha mulher só me ligava, quase a chorar: “Eu não posso ficar aqui sozinha. Vocês têm que ganhar amanhã e sábado” [risos]. "Se correr mal, como é que vamos fazer?". Se corresse mal ela tinha de voltar para Portugal porque não ia ficar a viver sozinha no Cazaquistão, não fazia sentido nenhum. Porque naqueles dias nós tínhamos de almoçar, jantar e dormir no centro de estágio.

A cidade tinha algo que ela pudesse visitar e onde passar o tempo?
Tinha um centro comercial muito pequeno um bocadinho afastado, mas o taxi era muito barato. Para ir ao centro comercial que ficava a mais ou menos uns 15 quilómetros, pagávamos um euro, nem isso. Mas não havia muito para conhecer.

Como era o dia-a-dia dos cazaques?
Eles têm um grande problema, até os jogadores: bebem muito álcool. Mesmo os próprios jogadores, sentíamos muitas vezes quando íamos para o jogo que havia vários jogadores que pareciam embriagados, sentíamos que tinham ido para a noite. Mas aquilo é normal para eles. No dia a dia havia jogadores que iam treinar e que se notava claramente que tinham acabado de sair da cama para ir para o treino, ainda cheiravam a álcool.

Qual a bebida de eleição deles?
Eles têm uma bebida característica, o rakia, uma coisa do género da aguardente, é muito forte, mas eles bebem durante o dia, como um português bebe uma cerveja. Os jogadores não eram muito profissionais, basicamente saiam da cama para ir treinar, saiam do treino, iam para casa, bebiam em casa ou iam para um bar e no dia a seguir iam para o treino. Tinham uma vida muito pouco profissional, era raro o jogador local que tivesse mentalidade de desportista.

Num convívio. Da esquerda para a direita: Bruno, Pedro, Rui Nunes por cima de Marco Santos, Zé, Guimar, Alípio, Hugo Seco e Márcio

Num convívio. Da esquerda para a direita: Bruno, Pedro, Rui Nunes por cima de Marco Santos, Zé, Guimar, Alípio, Hugo Seco e Márcio

D.R.

Recorda-se de mais algum episódio caricato no Cazaquistão?
Tenho uma história logo na segunda semana. O clube vinha de uma fase que não ganhava, estou a chegar ao balneário e estavam todos a ir na direção do campo. Comecei a perguntar o que estavam a fazer, mas não me respondiam, só faziam sinal com as mãos, como quem diz, esquece, vai para dentro. Estou no balneário e, entretanto, chegou o capitão, Carlos Fonseca, e perguntei-lhe o que se passava. E ele: "Se quiseres ver, vai lá fora" e começou a rir; "Diz lá o que se passa"; "Vai ao túnel". Quando cheguei ao túnel olhei para o campo e estavam os jogadores reunidos numa roda, dentro da área, a matar uma cabra pendurada debaixo da baliza, como se fosse um porco. Depois ajoelharam-se e fizeram uma reza. Fiquei chocado com aquilo, vim para o balneário e o Carlos explicou-me: “Quando as equipas não ganham há muito tempo, fazem esta reza para tirar o azar. Dizem que as balizas estão com alguma espécie de macumba, e aquilo é para tirar a macumba da baliza" [risos]. Ainda duvidei, mas acabei por confirmar com um jogador de lá que me disse que aquilo é muito normal. Mas há mais histórias.

Força.
Sempre que íamos jogar fora nunca viajávamos de autocarro, era sempre de avião, só que era um avião que cabiam lá umas 20 pessoas, no máximo 25. Nas primeiras viagens recordo-me de olhar para o lado e ver o Camará e o Rodrigo António, a rezar e a transpirar. Comecei a rir, porque no primeiro jogo que eles foram, eu não tinha viajado porque tinha tido uma entorse. Ao ver-me rir, eles fizeram sinal de espera um bocadinho que eu já te quero ver a rir. Descolámos, começámos a subir cada vez mais… Aquilo abanava por todo o lado, eu até parei de respirar. Fiz a viagem, uns 50 minutos, e eu nem falava, não conseguia, todo transpirado. Aquilo abanava por todo o lado, fazia um barulho infernal que a pessoa pensa o pior, ainda por cima no Cazaquistão [risos]. Quando chegámos ao hotel, começámos os três a rir das caras uns dos outros no avião; um rezava, outro metia a mão na cara, outro olhava para o teto do avião. Ao relembrar-nos começamos a rir. Depois, com o passar do tempo, habituámo-nos, mas as primeiras duas, três viagens, custaram muito [risos]. Ainda tenho mais uma.

Vamos lá ouvir.
Logo nos nossos primeiros jogos, tínhamos prémio de vitória. E uma vez os treinadores reuniram os jogadores todos no balneário, mandaram-nos, só aos estrangeiros, para a zona dos chuveiros. Não percebemos porque é que o treinador estava reunido apenas com os jogadores locais. Às tantas veio o treinador adjunto falar connosco: "Vocês sabem que temos de ganhar este jogo, é muito importante, já falámos com os vossos colegas daqui e eles concordaram em abdicar do prémio de hoje". Perguntámos: “Mas é um jogo importante, temos de ganhar e temos de abdicar do prémio porquê?; "É para entregarmos ao árbitro".

Aceitaram?
Olhamos uns para os outros, o Rodrigo António disse logo: “Não quero prémio, não quero nada, mas nem quero ouvir o resto da conversa, não concordo com isso”. Eu e o Camará também não concordamos e dissemos: “Preferimos que não nos digam nada, se toda a gente aí concordar com isso, não nos falem sequer em prémio e não queremos saber para o que é. Não nos venham dizer que temos de abdicar do prémio para dar ao árbitro". Entretanto, fomos para o jogo, o jogo começou e era uma roubalheira pegada. A sermos empurrados para trás, com tudo, faltas à entrada da área, expulsões, penaltis contra nós [risos]. Dentro de campo, virei-me para o Camará: "Será que entregaram o dinheiro ao árbitro?" [risos]. Ele começou a rir, não conseguia parar de rir dentro do campo, eu também, porque parecia estarmos a assistir a um filme, não podia ser possível. Antes do jogo aquela conversa e nós a sermos roubados, à descarada, no jogo.

O extremo direito chegou ao Kisvárda da Hungria na época 2018/19

O extremo direito chegou ao Kisvárda da Hungria na época 2018/19

D.R.

E depois?
No intervalo, ainda disse ao Camará: isto deve ser para não dar nas vistas, agora na segunda parte vai mudar. Mas na segunda parte continuou. Julgo que empatámos, mas foi um milagre porque o árbitro não podia fazer mais nada, só se pegasse na bola e a metesse dentro da nossa baliza. Acabou o jogo, o Camará estava mesmo chateado, estava doido: "Eu vou para cima dele, é uma vergonha, estão a roubar-nos o dinheiro, não deram dinheiro nenhum ao árbitro". Fomos falar com o treinador que disse que tinham dado o dinheiro, mas que aquilo era porque eles não podiam dar nas vistas. Achamos aquilo muito estranho, alguma coisa que não batia certo. Passados alguns jogos, voltou a acontecer a mesma coisa, chegamos ao jogo e outra vez uma vergonha.

Descobriram o que estava a acontecer?
Descobrimos mais tarde. Tínhamos esses prémios, a equipa técnica dizia que era para dar ao árbitro, mas ficava com os prémios dos jogadores [risos]. Faltavam umas duas semanas para terminar o campeonato quando descobrimos. Tivemos de marcar uma reunião, os jogadores exigiram o dinheiro dos prémios, senão, iam falar com a direção; porque a direção não podia saber que eles tinham dito que o dinheiro era para o árbitro. Os treinadores muito aflitos, a dizerem que tinham dado o dinheiro a alguém e que esse alguém os tinha enganado, e que não tinha entregue ao árbitro. Estivemos três dias reunidos, fechados no centro de estágio, ninguém saia de lá.

Devolveram o dinheiro?
Chegámos a um entendimento, já estávamos fartos de estar ali e eles devolveram-nos uma parte, disseram que iam falar com essa pessoa que supostamente era o intermediário, e que ia devolver uma parte. Essa pessoa era a equipa técnica, não havia ninguém no meio, mas foi talvez a história mais caricata que tivemos.

Num jogo do Kisvárda, na Hungria

Num jogo do Kisvárda, na Hungria

D.R.

Entretanto, o que aconteceu quando chegou o final da época?
A época terminou em dezembro e em janeiro apresentei-me lá. Eles faziam sempre a pré-época na Turquia. Havia um treinador que estava noutra equipa do Cazaquistão que queria que eu fosse para lá. Eu estava na Turquia a negociar, estava tudo acertado para ir para essa equipa, o Shakhter, e um dia à noite ligou-me o meu empresário a dizer que tinha uma possibilidade para a Hungria, para o Kisvárda. Ele estava a negociar com o clube e eu andei dois dias a adiar com o clube do Cazaquistão. O meu empresário ligou-me novamente, explicou-me os detalhes da proposta da Hungria e chegámos à conclusão de que era melhor ir para a Hungria. É um campeonato com mais visibilidade, caso quisesse regressar a Portugal seria mais fácil do que vindo do Cazaquistão.

Que tal a cidade de Kisvárda, na Hungria?
Sempre que falo com amigos, faço a comparação com o Arouca. É uma cidade muito pequena, que não está muito desenvolvida e o clube exatamente a mesma coisa, com uma história idêntica. O Kisvárda tinha subido desde a IV divisão até à I divisão em pouco tempo. Era difícil viver ali naquela cidade porque não havia nada, tinha um café que fechava às cinco da tarde, e duas bombas de gasolina.

Foi sozinho ou com a sua mulher?
Fui com a minha mulher só que ela engravidou logo no início e acabou por estar comigo só mês e meio. Como tinha de fazer consultas e exames de rotina, veio para Portugal. Mas fiquei muito surpreendido com o país, em termos de futebol foi o sítio onde mais gostei de jogar. Grandes condições dos estádios, academias e campos de treino. O clube está a crescer muito, ainda este ano foi às competições europeias, mas era talvez o clube com menos nome da I divisão, mas com condições que em Portugal só os grandes é que têm. Tínhamos seis campos de treino relvados, três sintéticos e um deles coberto, para quando estava a nevar, um ginásio incrível, piscina exterior e interior. A federação húngara apoia muito os clubes. Todas as equipas tinham estádio novo ou remodelado.

E a qualidade do futebol?
As equipas praticam um bom futebol, já têm boas ideias, está a evoluir muito.

Com a mulher, grávida do segundo filho, e com o filho Dinis às costas

Com a mulher, grávida do segundo filho, e com o filho Dinis às costas

D.R.

Foi bem recebido?
Sim, foi o sítio a que custou-me menos adaptar porque tinha quatro colegas brasileiros, um romeno que falava português e estava muito com eles no dia a dia. Foi também das cidades onde estive em que me senti mais acarinhado, qualquer sítio onde fossemos havia sempre muita gente, principalmente jovens a querer tirar fotos, abraçavam-nos, davam-nos a mão. Mesmo quando as coisas não corriam bem, não havia crítica negativa. Agora, se escrevesse um livro de memórias do futebol, a Hungria ia preenchê-lo quase todo, porque todos os dias tínhamos uma história diferente.

Conte-nos algumas.
Tínhamos um presidente que era o dono da cidade, praticamente. Foi ele que levou o clube da IV à I divisão, mas tinha uma forma de estar… Só pensávamos, não, isto não pode estar mesmo a acontecer. Quando cheguei, treinei uma semana e no primeiro jogo, pensei que ia para o banco de suplentes. Estou no estádio a ver o relvado, entretanto vou para dentro e o capitão, que era brasileiro e já lá estava há algum tempo, virou-se para mim: "Hugo equipa-te rápido que vais jogar". Pensei que estava a brincar comigo. "Vou jogar porquê, alguém se lesionou?"; "Esquece, depois eu conto-te". E fui jogar mesmo, mas quando olhei para o banco, estavam lá todos os jogadores. Não percebi. Na viagem de regresso perguntei-lhe: "Lucas, no treino de ontem o mister meteu a equipa que ia jogar e eu estava no banco"; "Vais começar a aperceber-te que quem manda aqui não é o treinador, é o presidente. É ele que faz a equipa"; "Mas a equipa já estava feita ontem"; "Sim, mas o presidente chegou ao balneário, quando estavas no relvado, olhou para o quadro, e disse: “Não, tens de trocar estes dois e meter aqueles dois" [risos].

Isso aconteceu mais vezes?
Quase sempre. Havia vezes que os jogadores já estavam equipados para ir para o aquecimento e ele entrava no balneário, começava a olhar para a equipa e dizia: "Não, este aqui não pode jogar" e trocava [risos]. Lembro-me de uma vez em que estamos a treinar e como estava a nevar e muito frio, o treinador disse que ia ser um treino mais leve, só 20 minutos, depois íamos para dentro. De repente, vimos um carro a chegar, estacionou atrás da baliza do campo de treinos, o vidro abriu e era o presidente que chamou o treinador-adjunto e disse-lhe: "Não é para fazer nada disto, é para fazer jogo 11 contra 11, campo inteiro" [risos]. E tivemos de fazer, durante uma hora, 30 minutos para cada lado. Mas há mais.

Continue.
Uma vez, os resultados não estavam a aparecer e o presidente marcou reunião com as esposas de todos os jogadores no estádio. Toda a gente ficou a pensar que se calhar ele ia dar alguma prenda, algum acessório para o jogo, ou para fazer um vídeo motivacional para os jogadores. O que fez? Começou a confrontar as mulheres uma a uma, a dizer que havia um que tinha sido pai há pouco tempo e que andava cansado porque andava muito tempo com o filho ao colo e que a partir daquele dia ela não podia deixar que o marido pegasse mais no filho ao colo. Havia outro que ele já tinha visto duas ou três vezes às compras e de certeza que a culpa era da mulher que o mandava ir às compras e ele não se podia cansar, tinha que ficar em casa [risos].

A sua mulher estava lá?
Nessa altura estava sozinho. Aquilo foi só rir, fizeram notícia disso no país e depois criaram vários memes com a cara deles, foi uma comédia. Ele era muito assim. Por exemplo, estávamos para ir de viagem, ele chegava, parava o autocarro quando estávamos para sair do estádio e dizia que não tínhamos de viajar naquele dia, que era só na manhã seguinte. E lá voltávamos para casa. Uma vez foi dar-nos uma palestra sobre o que devíamos comer ao pequeno-almoço, porque tinha ido estagiar uma semana ao Ajax, tinha visto a ementa deles e nós tínhamos de comer igual. Às vezes estávamos em campo, num jogo, ele começava a ligar para o banco, para o adjunto, para fazer uma substituição. Uma vez o treinador recusou-se a fazer o que ele disse, porque estava farto e foi despedido, no intervalo, já não voltou para a segunda parte [risos]. Tenho muitas histórias dele. Correndo bem, rimo-nos, mas quando corria mal era muito desgastante, porque não havia um dia que fossemos para o estádio e não houvesse uma inovação dele.

De caiaque com Tiago Silva, do V. Guimarães, em cima

De caiaque com Tiago Silva, do V. Guimarães, em cima

D.R.

Esteve quanto tempo no Kisvárda?
Um ano completo, de janeiro até final da época e renovei mais um ano. Mas em dezembro, quando houve a paragem, surgiu-me a possibilidade do Farense, e fui falar com o presidente. Eu queria muito voltar para Portugal porque o meu filho Dinis tinha nascido e estava a custar-me muito estar longe. Aliás, tenho outra história ainda antes do nascimento do meu filho. O meu filho nasceu a 26 de outubro, eu falei com o presidente para poder viajar, e ele disse que não, que íamos ter um jogo importante. Percebi e fiquei para o jogo. No dia do jogo viajei para Portugal, como na semana seguinte só tínhamos jogo para a Taça e era com uma equipa da III divisão, perguntei-lhe se podia ficar uma semana em Portugal, mas ele: “Não, vais a Portugal um dia”. Só em viagem perdia um dia, fiz-lhe ver que assim era só dar um beijo ao meu filho e vir embora. Ele insistiu, mas eu acabei por ficar quatro dias em Portugal. Inventei que os voos tinham sido cancelados.

O que aconteceu depois?
Quando cheguei lá, íamos ter o jogo para a Taça e o treinador veio falar comigo, disse que ia rodar a equipa. Aos dois minutos de jogo, mandou-me aquecer. Olhei para o campo, estava tudo bem, nenhum jogador lesionado. "Hugo tens de ir aquecer"; "Mas, mister, só passaram dois minutos, não está ninguém lesionado"; "É o presidente que está a mandar". Fui aquecer dos dois minutos até ao final do jogo, como forma de castigo [risos] Quando terminou o jogo, cheguei ao balneário a rir, nem estava chateado. O presidente chegou ao pé de mim: "Então, gostaste?"; "Estava um bocado de frio, mas são opções"; "É para veres o que eu senti estes dias enquanto esperava que tu chegasses ao aeroporto" [risos]. Tinha estas coisas, mas em termos pagamento, tudo o que fosse acordado, contratos, ele cumpria à risca.

O regresso a Portugal então deveu-se apenas ao querer estar perto do seu filho?
Houve dois fatores importantes. O primeiro foi o nascimento do meu filho, ver a família só por videochamada estava a custar. Depois, o mister Sérgio Vieira andava a ligar-me desde o verão. Na altura não aceitei porque os valores eram muito inferiores e numa altura daquelas da minha vida, não podia facilitar. Em novembro ele começou a ligar outra vez, disse que o Farense estava a lutar para subir e que podiam fazer uma proposta melhor. Foi uma proposta muito interessante e ao meter nos pratos da balança, compensava.

O presidente húngaro libertou-o facilmente?
Não. No início de janeiro quando tenho de apresentar-me na pré-época, falei com ele, explique-lhe que não ia conseguir estar longe da família, do meu filho. "Hugo, só te consigo deixar sair se conseguir ir buscar um jogador para o teu lugar". Felizmente, passados dois, três dias apresentaram-lhe um jogador que foi do interesse dele e libertou-me. Foi uma decisão muito acertada porque depois surgiu a covid-19 e, como estava em Faro, pude vir para casa, para Coimbra. Desportivamente também correu bem porque o Farense acabou por subir de divisão.

Na época 2019/20, o extremo assinou pelo Farense

Na época 2019/20, o extremo assinou pelo Farense

D.R.

Gostou do Sérgio Vieira?
Gostei muito da forma como ele trabalha, é obcecado por aquilo que faz, vai ao detalhe, ao pormenor. Mas acho que podia mudar numa coisa. Ele torna-se um bocadinho massacrante para os jogadores com o decorrer do tempo, porque não dá descanso. Se forem três horas no estádio, são três horas em que não há um minuto para relaxar um pouco. Trabalha muito bem, taticamente é dos melhores que apanhei, mas se um jogador quer relaxar um minuto, até no balneário, antes do jogo ou do treino, o mister não gosta, quer que estejamos sempre focados, concentrados.

Não permite brincadeiras?
Permite, mas não gosta muito, fica desconfiado. E isso cansa um bocado. É a opinião geral, praticamente todos os jogadores que trabalharam com o mister dizem o mesmo. Por exemplo, o jogo acaba e ele chama os jogadores em privado para falar uma questão ou outra, e OK, tudo bem. Mas depois o jogador vai para casa e ele volta a ligar ou envia mensagem sobre esta, ou aquela situação. Isto durante um, dois meses, tudo bem, agora quando é um ano inteiro ou mais, torna-se cansativo. Julgo que é um dos aspetos que o mister podia mudar para ter mais o grupo na mão.

Na época seguinte começaram com Sérgio Vieira, mas chegou Jorge Costa, em janeiro. Que expectativas tinha e como foi?
No dia 29 de janeiro ligou-me o presidente do Feirense e o diretor-desportivo a dizer que queriam que eu fosse para lá. Fui falar com o mister Sérgio Vieira. Disse-lhe que me sentia bem no Farense mas que gostava de ir para o Feirense, onde já tinha estado e onde também me tinha sentido bem. Ele disse que contava comigo e que não era o timing para termos aquela conversa, íamos ter um jogo importante no dia a seguir, em Tondela. Perdemos e o mister Sérgio Vieira é despedido. Fui falar com o presidente, disse que queria sair.

E ele viabilizou a sua saída?
Disse que ia apresentar um treinador naquele dia e que tinha de ouvir o novo treinador. À tarde o mister Jorge Costa foi apresentado. Falei novamente com o diretor-desportivo, o Zé Luís, que me diz que o mister quer conhecer os jogadores todos, porque já não dava para ir ao mercado. Logo no primeiro treino do mister Jorge Costa, lesionei-me.

Como?
Treinamos no relvado do estádio, que era novo, ainda estava um bocado mole, eu saltei e ao apoiar o pé fiz uma entorse um bocadinho grave. Estive algum tempo fora e quando regressei tinha algumas limitações, comecei a sentir que não iria ser primeira opção. Aquilo mexeu com a minha cabeça, o facto de querer sair e não me deixarem, depois a lesão, quando voltei senti que não ia ser opção… Acabei por fazer três meses no final da época muito abaixo, sem confiança. Julgo que só fiz três ou quatro jogos.

Acabou por não dizer se gostou de Jorge Costa como treinador.
Sinceramente, não concordei muito com a forma como o mister geria o plantel. O mister tinha aqueles 11 que jogavam e o resto não contava, fazia treino de 30, 40 minutos e ia embora. Aquele 11 que jogava era recuperação a semana toda para jogar no próximo fim de semana. Os que não estavam na cabeça do mister, não contavam. Mas pode ter sido devido à fase em que foi, faltavam três meses para terminar a época, já não havia grande treino a fazer na vertente física, podia ser só para soltar um bocadinho os jogadores. Mas os jogadores que não jogavam sentiram-se um bocado sem confiança por causa disso. Em termos de personalidade, pareceu-me ser uma pessoa correta, mais extrovertido do que aparenta ser, pelo menos na ideia que eu tinha. Na vertente tática, acho que podia ter sido feito mais qualquer coisa.

Hugo, a avó, o filho Rodrigo, a sobrinha, o sobrinho, a irmã, e dois primos (em baixo)

Hugo, a avó, o filho Rodrigo, a sobrinha, o sobrinho, a irmã, e dois primos (em baixo)

D.R.

Foi nessa época que teve um jogo de suspensão por causa de uma flash interview?
Isso ainda foi com o mister Sérgio Vieira. Se calhar não me expressei da melhor maneira, mas continuo a ter razão. Há um canto a nosso favor, se não me engano, quando estou a ir para o canto vejo o relógio do árbitro, Manuel Mota, e já estava no tempo, se não estou em erro estava em 94 e qualquer coisa. Pensei: é o canto e termina. Entretanto, há o desenrolar do canto, há mais uma jogada para cada lado, o Belenenses com a bola e o jogo nunca mais terminava. Quando eles fizeram o golo, a minha primeira reação foi ver o tempo novamente. Quando fui ver o relógio estava parado nos tais 94 e qualquer coisa, já não me recordo bem. Ou seja, o árbitro parou o tempo, ele deve ter parado o relógio a pensar, vou parar, vou apitar, mas deixou desenrolar a jogada. E com o desenrolar da jogada, o Belenenses marca.

Mas o que disse na flash interview?
Disse que não sabia como era possível haver um canto a nosso favor praticamente na hora, e o jogo afinal decorre mais dois minutos e o Belenenses faz golo. Depois falou-se muito sobre isso, se calhar também usei um termo menos correto, dei a entender várias coisas sobre o árbitro, mas a realidade é que eu só disse a verdade. Sabemos que nestas situações, a arbitragem é sempre protegida. E só levei um jogo porque recorremos, o primeiro castigo era de quatro jogos.

Contava, que no final dessa época percebeu que não era a primeira opção de Jorge Costa. O seu contrato terminava ali?
Sim. Havia a possibilidade do mister Jorge Costa continuar, foi o que me transmitiram na altura. Continuando, eu não fazia parte dos planos, é normal, praticamente não jogava com ele. Se o mister Jorge Costa não ficasse, havia uma possibilidade grande de eu continuar no clube. Ainda aguardamos duas, três semanas, e disseram-me que estava mais ou menos tudo acertado para ele continuar. Eu, entretanto, tinha três possibilidades: na Roménia, o Feirense e a Académica. Tinham-me falado da possibilidade do Chaves, mas não havia proposta formal, como tinha dos restantes clubes. Aí foi o coração a falar mais alto. Lembro-me que estava de férias e tinha de tomar uma decisão, estavam a pressionar-me um bocadinho da Académica. Estava com amigos e familiares que me diziam, não vás para a Académica, isso é o coração a falar mais alto, o clube está com dificuldades financeiras, as outras propostas são melhores. Acabei por vir para a Académica, a receber quase metade ou praticamente metade das outras propostas que tinha.

O que o levou a decidir assim?
Em primeiro lugar foi por ser o clube do coração. O voltar à Académica, ter aquela ambição de tentar lutar para subir com a Académica à I Liga, achava que isso compensava a diferença de valores; e depois o facto de estar em casa, o poder estar com o meu filho, usufruir de mais tempo com ele. Pensava que podia ser um ano muito bom para mim. Mas acabou por ser uma decisão infeliz, porque foi o que sabemos, correu muito mal em termos coletivos, em termos individuais, acabei por ter três lesões, foi um ano em que aconteceu de tudo, incluindo problema com salários em atraso.

Hugo, do Farense, a disputar a bola com Nuno Mendes, do Sporting

Hugo, do Farense, a disputar a bola com Nuno Mendes, do Sporting

Gualter Fatia

Como foi lidar com quatro treinadores na mesma temporada?
Julgo que esse foi também um dos grandes erros da época. Tivemos o mister Rui Borges no início, uma equipa técnica muito competente, de boa relação com os jogadores. Houve infelicidade em alguns jogos e acabou por haver a troca com o mister João Carlos Pereira. Vínhamos de um treinador muito exigente, Rui Borges, em que o segredo dele era a intensidade nos treinos para que nos jogos quando não dava na vertente tática era a intensidade que fazia a diferença e a seguir apanhamos o mister João Carlos Pereira que é totalmente o oposto; treinos muito táticos, muito parados, em que nem transpiramos sequer. A equipa que já estava sem confiança começou a perder a parte física também e foi o declínio total. Acho que foi o grande erro da época.

Ainda veio Pedro Duarte.
Que apanhou a equipa numa fase em que ele próprio sentiu que para além da confiança em baixo, a equipa estava “morta” fisicamente, de rastos. O mister Pedro Duarte pedia alguns exercícios e nós não tínhamos sequer as mínimas condições de pressionar daquela forma, não reagimos, porque fisicamente estávamos mesmo muito mal. As coisas até acabaram por correr bem nos primeiro dois jogos, mas depois a equipa foi abaixo porque fisicamente estávamos muito mal. Quando há troca para o mister Zé Gomes já foi quase no desespero, numa fase em que nem os próprios jogadores já acreditavam. Gostei muito da postura do mister Zé Gomes e da equipa técnica dele, mesmo com todas as dificuldades que sabiam que iam apanhar, a postura dele, a frontalidade dele, a exigência dele, gostei muito.

Tinha assinado por quanto tempo?
Duas épocas, contando com esta. Este ano foi um bocadinho atípico para mim porque terminei a época, supostamente não era para continuar, houve eleições, mudou a direção, as informações que me iam chegando eram que esta direção queria uma limpeza geral, não queria ficar com ninguém, tirando dois jogadores da formação.

Queria ter saído?
Não, eu gostava de ficar até porque as possibilidades que me apareceram de II Liga, o Leixões, por exemplo, não fazia muito sentido. Tive em concreto também para a Liga 3, uma proposta do Varzim, tive tudo acertado com o Varzim porque achava que era preferível ir para um Varzim que é um projeto bom, já conhecia o Geraldes, do que ir para outro projeto da II Liga e andar outra vez a lutar para não descer, talvez com problemas financeiros. Sentia necessidade de ir para um projeto em que me sentisse feliz, em que desfrutasse do futebol porque tinha sido um ano muito desgastante. Depois reuni com a Académica e tentámos chegar a um entendimento para eu sair, não chegámos e eu apresentei-me na pré-época. Nos primeiros treinos senti alguma diferença, principalmente na intensidade dos treinos, porque em termos de qualidade, penso que já há qualidade em todas as divisões. A intensidade que nos jogos e treinos é que é diferente. Acabei por ter um problema durante a primeira semana de treinos.

Que problema?
Tive uma lesão no joelho, pensavam ser o pior, que tinham sido os ligamentos cruzados, acabou por ser só ligamento lateral interno, mas obrigou-me a estar parado dois meses. Foi um início de época um bocadinho atípico.

Entretanto, voltou a ser pai.
Sim, em setembro do ano passado, do Rodrigo, e já assisti ao parto.

Hugo regressou à Académica em 2021

Hugo regressou à Académica em 2021

Gualter Fatia

Com que expectativas é que está em relação a esta época?
São as melhores. Está a ser um início de época complicada, começamos com um ponto a menos devido aos salários em atraso do ano passado, já tivemos um jogo ou outro em que podemos marcar, não marcamos e depois eles vão lá uma vez e fazem golo, mas as pessoas têm de perceber a situação atual da Académica, neste momento não se pode exigir uma subida de divisão. O importante é estabilizar o clube na Liga 3. O início não está a ser o melhor, mas acredito que temos tudo para fazer uma boa época. Temos um plantel com qualidade, temos uma equipa técnica jovem com muita qualidade, trabalha bem, tem uma relação muito próxima com os jogadores, um lado humano muito bom, e isso numa equipa técnica pode fazer toda a diferença.

Notou muita diferença na passagem da II Liga para a Liga 3?
Sim. Sobretudo ao nível da intensidade. Não é a intensidade que o treinador mete no treino, os treinos são muito bons, são os próprios jogadores. Se calhar acaba por ser normal, há muitos jogadores jovens, que é a primeira vez que estão a jogar na Liga 3, tem muito a ver com isso, a intensidade ganha-se. Mas pode ser complicado, há muitos jogadores que estão na Liga III e chegam à I Liga e não se conseguem afirmar por causa da intensidade, não é pela qualidade. Se eles chegaram lá é porque têm qualidade, mas depois a intensidade faz toda a diferença. É uma coisa que se ganha com o tempo. Neste momento já vejo que os treinos estão com muito mais intensidade do que no início. Julgo que também foi trabalho da equipa técnica dos jogadores mais experientes, que fizeram mudar um bocadinho esse chip nos jogadores mais jovens, porque fizeram ver que é importante haver mais entrega, mais intensidade nos treinos.

Qual a sua ideia no final desta época? Tentar voltar a ir para fora? Renovar com a Académica?
Só tenho um objetivo neste momento: conseguir ajudar a Académica e sentir-me bem fisicamente. Ter um ano com vários problemas físicos é o que me afeta mais. Só quero ter um ano sem problemas, sem lesões, para que possa ajudar a Académica. Ainda não penso muito no futuro. Estou focado em conseguir manter os meus pontos fortes no futebol, a intensidade, a velocidade, durante o máximo possível, sejam três, quatro, cinco anos.

Ou seja, não lhe passa nada pela cabeça pendurar já as chuteiras?
Não. Só passaria isso pela cabeça se tivesse alguma lesão mais grave. Não tenho nenhuma meta estabelecida.

Mas já pensou no que quer fazer no pós-carreira?
Já. Vou começar a tirar o nível II do curso de treinador. Sinto que tenho muita capacidade na vertente de treinador-adjunto. Neste momento acho que não tenho perfil para ser treinador principal.

Porquê?
Porque há determinadas posturas que o treinador tem de ter, que não iria saber lidar com isso, ou que não ia ser bem sucedido. Por exemplo, a minha frontalidade, o dizer as coisas como eu acho que elas são, o treinador não pode ser muito assim, porque nem todos os jogadores reagem da mesma forma. Se calhar muitos jogadores não iam aceitar muito bem a forma como eu ia dizer as coisas. Acho que tenho mais perfil para treinador-adjunto, aquele que está no campo e tem uma relação próxima com os jogadores, que consegue perceber o que o jogador está a precisar, quais os jogadores que estão com menos confiança e que precisam daquela palavra, naquele momento certo. Não sendo treinador, adorava continuar ligado ao futebol, como analista, como observador, que é uma das coisas que adoro. Adoro ver jogos, mesmo quando estou em casa, muitas vezes vou ver jogos de equipas da minha zona que têm futebol de formação. Adoro ir ver os jogos de amigos que jogam, por exemplo, no distrital. É algo que me fascina, dou por mim quando estou a ver esses jogos, a observar certos jogadores. Se há um jogador que logo no início dá nas vistas, eu passo o jogo todo só a ver os movimentos e a forma de estar em campo desse jogador e esqueço se calhar um bocadinho o resto do jogo.

Com a mulher e os dois filhos, Dinis e Rodrigo

Com a mulher e os dois filhos, Dinis e Rodrigo

D.R.

Onde ganhou mais dinheiro até hoje?
No Cazaquistão.

Investiu?
Só em imobiliário.

Qual foi a maior extravagância que fez na sua vida, porque sim, porque podia?
Nunca fui assim de esbanjar dinheiro, os meus amigos dizem que sou um bocadinho agarrado, mas talvez uma mota que comprei no ano passado, a imitar a Harley. Na altura não era uma prioridade para mim, mas era uma coisa que eu gostava de ter e acabei por perder um bocadinho a cabeça.

Tem algum hóbi?
Adoro ir ao cinema, mas desde o nascimento dos meus filhos que não vou.

Qual é o filme da sua vida?
Talvez o filme que me tenha marcado mais foi o "Golo", sobre a história de um jovem mexicano que viajou para Inglaterra atrás do sonho de ser jogador de futebol, depois teve alguns obstáculos e acabou por se impor. É um filme um bocadinho antigo, mas foi dos filmes que me marcou mais.

Tatuagens. Qual foi a primeira que fez?
Fiz a primeira aos 16 anos, no braço, as iniciais da minha irmã. Depois fiz mais duas, uma no outro braço que tem algum significado, são duas peças, uma é "perseverança" e a outra é "confiança". E fiz uma na perna com a data do meu casamento.

Acredita em Deus?
Não sou praticante, mas sim, acredito.

Superstições, tem ou teve?
A única superstição que tenho é, em dia de jogo, quando vou para o aquecimento e antes do jogo, olhar sempre, durante alguns segundos, para a foto dos meus filhos. Antes do nascimento deles não tinha grandes superstições.

Segue ou pratica outro desporto além do futebol?
Seguir, não, mas uma das coisas que quero começar a praticar com mais assiduidade é o Padel.

Qual foi o adversário mais difícil, aquele defesa mais chato?
O Alex Teles.

O golo mais importante?
Foi num Académica-Tondela, que deu a vitória. Estava numa fase com pouco confiança e havia a possibilidade de sair no mercado de janeiro para o Tondela e criou-se ali alguma desconfiança na véspera desse jogo. Acho que esse golo foi uma chapada de luva branca.

Qual a maior frustração que tem na carreira?
Não ter chegado ao jogo 100 na I Liga, tenho 96.

E o maior arrependimento?
Aquela situação de ir para o FC Porto. Acabei por não ir devido a tudo o que contei, teve a ver com empresários, com forma como queriam que eu saísse, mas se na altura tenho ido para o FC Porto, a minha carreira poderia ter sido diferente e não passava aqueles primeiros três, quatro anos de futebol sénior um bocadinho ao abandono, com alguns problemas de lesões, como tive.

Em sua casa, junto de um quadro que o representa na Académica

Em sua casa, junto de um quadro que o representa na Académica

RUI DUARTE SILVA

O momento mais feliz na carreira?
Quando assinei pela primeira vez pela Académica, na I Liga.

Qual ou quais as maiores amizades que fez no futebol?
O Filipe Melo, o Alex Pinto e o Ricardo Velho, no Farense, o Luís Rocha, o Tiago Silva, o Pedro Nuno e o Cristiano.

Se pudesse escolher, qual o clube de sonho onde gostava de ter jogado?
No Barcelona. Desde pequeno que via muitos jogos do Barcelona, com Ronaldo o Fenómeno, depois com o Figo e só deixei de torcer pelo Barcelona quando o Figo foi para o Real Madrid e depois o Ronaldo. Mas já voltei a torcer pelo Barcelona. Sempre olhei para aquela equipa como uma equipa de sonho.

O que pensa do VAR?
Concordo, mas acho que devia haver algumas alterações. Por exemplo, devia haver um limite mínimo para o fora de jogo. Uns 10 centímetros. Ainda há uma semana houve um golo anulado ao Tottenham por cinco centímetros. Ninguém consegue ter a garantia que o fora de jogo foi no momento certo do passe, quando a bola saiu. Porque um milésimo de segundo altera quatro ou cinco centímetros no lance. Penso que um golo ser anulado por cinco centímetros não faz sentido nenhum. Mas concordo com o VAR, apesar de já terem sido cometidos erros escandalosos.

Tem algum talento escondido?
Imiitar as pessoas. Por todos os clubes por onde tenho passado, todos dizem que tenho jeito.

Qual é a sua melhor imitação de sempre?
O mister Nuno Manta Santos, no Feirense. Na altura até fiz um vídeo a brincar, durante a época, que meti no grupo dos jogadores, a imitar uma palestra do mister [risos]. Ainda há pouco tempo os jogadores andavam a partilhar porque diziam que cada vez que viam aquele vídeo choravam a rir. Até os óculos do mister eu meti, o penteado mais ou menos igual. Os meus colegas dizem que tenho esse dom, que consigo apanhar coisas das pessoas que eles nunca tinham reparado.

Qual foi a pessoa que mais tem influenciado a sua carreira?
Quem esteve sempre ao meu lado foram os meus amigos, eles sabem quem são, o meu grupo de amigos da infância, a minha família. Mas se calhar a pessoa mais importante no clique que deu a minha carreira, foi o meu atual empresário, Nuno Patrão, porque foi graças a ele que dei o salto para a Académica e que comecei a ser acompanhado de outra forma.

Se não fosse jogador de futebol, o que teria sido?
Personal trainer.