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50 anos do 25 de Abril

Acácio, o primeiro a bisar em liberdade

Acácio, o primeiro a bisar em liberdade

Acácio Casimiro, ex-jogador do Boavista, recorda o dia da Revolução em que só o deixaram seguir na estrada porque, por acaso, saiu de casa com o casaco da tropa vestido, e o primeiro jogo que fez logo a seguir, para a Taça de Portugal

Acácio vestiu pela última vez o casaco de couro verde, com as divisas no ombro, depois de 40 meses a dividir a vida entre o serviço militar e o futebol profissional. Tinham passado seis meses desde esse dia, mas, naquela manhã de abril, um impulso levou-o a resgatar o blusão do guarda-fatos. Olhou-se ao espelho, parecia continuar a assentar-lhe bem. Agarrou nas chaves, no saco e saiu para o treino.

De Espinho até ao Estádio do Bessa demorava pouco mais de meia hora de carro. “Como jogava futebol profissional, o comandante nomeou-me treinador/jogador dos praças, treinador/jogador dos sargentos, eu era da classe de sargentos, e treinador dos oficiais, porque havia os campeonatos militares. Naquele dia, quando ouvi as notícias, telefonei para um tenente meu amigo que também tinha a mania do futebol. Perguntei-lhe o que se passava, ele respondeu que era a Revolução, e fui para o treino.”

Com o rádio do carro sempre ligado, à entrada da Invicta, o então jogador do Boavista, de 25 anos, apercebeu-se de um movimento estranho. “Fui barrado na Ponte da Arrábida por populares da Afurada, que bloqueavam o trânsito de um lado e do outro. Mandavam parar todos os carros, revistavam tudo, inclusive abriam os porta-bagagens”, recorda.

O casaco de couro que valeu uma passagem para a outra margem

Acácio ainda hoje não sabe porque quis vestir aquele casaco verde, mas não tem dúvidas de que o gesto, executado a mando do subconsciente, salvou-lhe o couro. “Mal olharam para mim, disseram logo: ‘Passe, passe, passe’, ‘Este é militar, pode passar’. Só pode ter sido por causa do casaco. Quase não parei, segui viagem.”

Filho de um ferroviário com a 4ª classe e de uma dona de casa com os mesmo anos de escola, Acácio Casimiro nunca foi politizado e só se ia apercebendo dos sortilégios da ditadura por via dos turistas franceses e ingleses com quem se cruzava à beira-mar, em Espinho. Insistiam em perguntar-lhe o que achava da situação política em Portugal, se tinha liberdade ou não. “A maioria da população e dos que gravitavam à volta do futebol não tinham uma noção real das coisas. Assumo que não tinha muita ideia da gravidade do regime da altura. Nunca tive problemas, nem antes nem depois do 25 de Abril”, resume.

A Revolução acabou com a Lei DA Opção, que mantinha os jogadores ‘presos’ ao clube

Quando chegou ao treino, o tema Revolução saltava de boca em boca e uma dúvida persistia: “Nós íamos jogar no sábado, em casa, e normalmente os jogos no Bessa estavam sempre cheios. A questão era se ia haver jogo ou não, porque comentava-se que não havia policiamento.” É então que entra em cena aquele que viria a ser uma mítica personalidade na história do Boavista e do futebol português, o major Valentim Loureiro. “Fomos informados pelo major, que na altura ainda era capitão e chefe do Departamento de Futebol, que tínhamos de treinar, porque íamos ter jogo. Ele falou com o seu antigo colega, o coronel Otelo Saraiva de Carvalho, que lhe garantiu mandar uma brigada de militares para policiar o jogo.”

A 27 de abril, ainda sob o véu dos efeitos da Revolução, disputaram-se dois jogos dos oitavos de final da Taça de Portugal. Na Tapadinha, o Atlético CP recebeu o Farense, empatando a uma bola. No Bessa, antes do apito inicial, João Mexia Alves, presidente do Boavista, fez algo inédito. Leu um comunicado onde agradeceu às Forças Armadas a realização da partida e apelou aos espectadores, estima-se que 5000, para que se comportassem. Acácio recorda que “mandaram seis praças e um sargento, ou tenente, ou alferes, não me recordo bem. A tropa estava concentrada, o futebol era secundário”. E acrescenta o que viu nas bancadas: “Estavam metade das pessoas, se calhar muitas não foram, com medo.”

Os pés junto à cal, num teste à liberdade

Doze minutos após o apito inicial, Acácio foi o primeiro a fazer o gosto ao pé. “Fiz dois golos nesse jogo. Aos 12 minutos marquei o primeiro, mas não sei se foi o primeiro golo marcado após a Revolução. O certo é que marquei outro.” E tornou-se no primeiro jogador a bisar num jogo em tempos de liberdade.

Não há relato de incidentes durante a partida, ainda que muitos adeptos não tenham resistido, acredita o ex-médio, a “testar os militares” aproximando-se do limite da linha lateral. Os pés colados à cal branca faziam prova à liberdade prometida e que ali foi exercida em pleno, ao não invadirem o campo onde 22 homens expressavam o seu direito e a sua arte num espetáculo que terminou com uma goleada do ‘Boavistão’ — como era chamado, à época, o clube axadrezado — por 5-1 ao Famalicão. Além de Acácio, marcaram Vasco, Moura, Vítor Palma (na própria baliza) e Rufino.

O Major Valentim Loureiro ligou a Otelo e garantiu policiamento militar para o jogo da Taça

Do plantel do Boavista, o médio esquerdo recorda Alberto Teixeira, que também foi jogador do FC Porto e que era um dos capitães da equipa, como o mais politizado do grupo. Com o 25 de Abril, “identificou-se como sendo da UDP”. “Hoje é dono da Ibersol e seguramente um homem de direita, porque, entretanto, evoluiu financeiramente, foi trabalhar para a Sonae, do Belmiro de Azevedo, quando saiu do futebol. Foi meu colega do curso de Economia. Eu estava no 1º ano e ele já andava no último. Todos os dias falava do fim da ditadura”, ajuíza.

Acácio Casimiro jogou futebol mais cinco anos, foi ainda jogador/treinador e abraçou a profissão de treinador durante 37 anos, a maior parte dos quais passados no estrangeiro, em países como Gabão, Kuwait, Líbia e Irão, entre outros.

A viver na Boa Hora, no Porto, o ex-jogador e antigo treinador, de 75 anos, reconhece hoje que “houve um Portugal antes do 25 de Abril e outro após o 25 de Abril” e lembra que uma das primeiras e maiores mudanças da Revolução de Abril, para os futebolistas, foi o fim da Lei da Opção, em que os clubes podiam obrigar os jogadores a permanecer no seu plantel ad aeternum. “Por causa dessa lei não fui jogar para o FC Porto, em 1972. A Lei da Opção é que me segurou no SC Espinho. Eu ganhava dois contos [€544 aos valores de hoje] e se fosse para o FC Porto ia ganhar nove [€2448]”, garantiu em entrevista à Tribuna, para a rubrica “Casa às Costas”.

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