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Tribuna Expresso

Futebol europeu infiltrado por viciadores de apostas asiáticos

Rafael Buschmann e Tom Röhn*

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No dia 29 de abril, às 10h01 da tarde, Simon Miller e Paul Langley perderam a fé no desporto. Os dois irlandeses estavam sentados no estádio City Calling, em Longford, na Irlanda, e a sua equipa, o Athlone Town FC, perdia por 1 a 2. Ao minuto 80, uma mensagem de alerta do Facebook apareceu nos seus telemóveis. Um homem que há anos monitorizava apostas no futebol escrevia-lhes a dizer que as probabilidades acabavam de mudar drasticamente e que era previsível que outro golo fosse marcado em breve. Ambos ficaram imóveis, a ver o drama desenrolar-se no campo. O treinador português do Athlone, Ricardo Cravo, passou o médio romeno Dragos Sfrijan para a defesa, e o guarda-redes letão Igors Labuts começou de repente a descer à área contrária em cada pontapé de canto, um gesto potencialmente suicida que os guarda-redes costumam guardar para os ataques finais da equipa. Mas o espetáculo atingiu o clímax já em tempo de descontos. Quando uma bola longa chegou à área do Athlone, Sfrijan pontapeou-a sem jeito, falhando totalmente, dizem eles. E o guarda-redes Labuts atrapalhou-se numa defesa bastante fácil. “Parece que alguém ganhou algum dinheiro hoje”, disse um fã na internet. O jornal “Asia Times”, de Hong Kong, escreveria depois que os ganhos das apostas no jogo do Athlone ultrapassaram os 600 mil dólares (525 mil euros). A UEFA, a associação europeia de futebol, expressou alarme com as suspeitas de “influência indevida” durante o jogo, e o organismo oficial do futebol nacional irlandês, o FAI, lançou uma investigação, com a polícia também a tratar do caso.

A atração do futebol reside na impossibilidade de prever o resultado do jogo. Os clubes da Liga dos Campeões podem ser eliminados por equipas amadoras em jogos de Taça, há campeões inesperados, pontapés de sorte podem decidir um jogo. É esse suspense que torna o futebol tão excitante.

Mas o que acontece quando a equipa joga não com o objetivo de vencer mas com o de executar acordos ilegais? Ou quando os erros são deliberados e o jogo intencionalmente perdido? Nessa altura, deixa de ser um jogo e torna-se crime organizado.

O mercado global de apostas é extremamente lucrativo. No mundo inteiro, por ano, cerca de um bilião de dólares (875 mil milhões de euros) são apostados em eventos desportivos — uma soma quase tão alta como a do total das exportações da Alemanha. O negócio continua a crescer, com novos atores a aparecer a todo o momento, frequentemente sediados em paraísos fiscais, como Malta e Gibraltar. Os maiores têm com frequência a sua base nas Filipinas ou na China.

Os maiores bookmakers (agentes de apostas) do mundo permitem que se façam apostas em quase todos os aspetos de um jogo de futebol: no resultado, claro, mas também nos nomes dos marcadores de golos, no número de golos, de penáltis, de lançamentos, de cartões amarelos e vermelhos, até no nome do jogador que dará o pontapé de saída. E as apostas podem ser feitas em jogos pelo mundo fora. No escândalo de 2009 na Alemanha, ficou a saber-se que tinham sido feitas tentativas de manipular 32 jogos diferentes — desde a segunda divisão até às ligas mais jovens — e que esses esforços tiveram sucesso nalguns casos.

Quando num relvado, em lugar de jogadores de futebol ou árbitros, se instalam atores que seguem um script invisível previamente elaborado, ganhar milhões em apostas viciadas pode ser fácil.

Fundado há 130 anos, o Athlone Town é o mais antigo clube de futebol irlandês e está na segunda divisão. Na década de 70, jogava com equipas como o AC Milan na Taça UEFA, e os fãs adorariam ver o regresso a esses dias de glória. O hino da Liga Europa, os holofotes, as estrelas globais e o dinheiro. Esta aspiração levou o clube às mãos de pessoas que transformaram os sonhos de funcionários, jogadores e fãs num negócio.

Em janeiro, a empresa portuguesa Pré Season, registada na Amadora, tornou-se dona de uma parte do Athlone FC. Os investigadores acreditam que um homem chamado Mao Xiaodong, um dos maiores viciadores de apostas, está por trás do negócio. Conhecido na cena como Eric Mao, atingiu um certo renome no submundo do futebol. O seu modelo de negócio envolve comprar parte de um clube como investidor e depois adquirir jogadores ou treinadores. Então aposta em larga escala, e jogadores instruídos pelos seus funcionários asseguram que os resultados dos jogos correspondem ao que consta nas folhas de apostas.

Através do consórcio Football Leaks, o “Der Spiegel” obteve um relatório confidencial com origem na empresa de segurança desportiva ICSS, sediada no Qatar. O relatório diz que “Eric Mao é um organizador de alto nível de viciação de jogos e líder de um sindicato de viciação de jogos em Singapura e também um membro chave de uma rede global de viciação de jogos”. É sócio do famoso viciador de jogos Wilson Raj Perumal.

Perumal falsificou inúmeros jogos de futebol pelo mundo fora antes de ser apanhado pelas autoridades e se tornar uma testemunha chave. Testemunhou contra a máfia das apostas e a seguir escreveu um livro que forneceu um olhar profundo sobre o mundo dos resultados combinados. Hoje, vive na Hungria, mas os insiders creem que manteve os contactos com outros viciadores de jogos. Recentemente, falou com um desses indivíduos na Austrália. A polícia australiana terá escutado a chamada. Quando contactado para comentar, Perumal negou ter qualquer relação com os jogos viciados.

Não é difícil aos vigaristas das apostas que entraram na indústria do futebol disfarçados de investidores fazerem dinheiro rapidamente. No seu livro, Perumal descreve como os clubes de futebol podem ser desprovidos de moral na sua ganância por dinheiro, em especial quando têm falta dele. Muitas vezes, esses clubes nem perguntam onde um investidor ou investidora ganha o dinheiro, apenas ficam contentes por o receber. E com frequência dispõem-se a fazer todo o tipo de concessões para que isso aconteça.

O Athlone parece ter garantido ao pessoal de Mao muitas das concessões de que ele precisa para o seu negócio. Em pouco tempo, os recém-chegados fizeram do clube uma espécie de marioneta. O controlo era invisível, mas o centro do clube tinha sido esvaziado. Os fãs começaram a compará-lo a um clube em Portugal que Mao tomara uns anos antes: o Atlético Clube de Portugal.

O Atlético tinha estado à beira da falência em 2013, e os seus dirigentes transformaram a equipa principal numa companhia aberta a investidores. Foi quando Mao apareceu. Este homem de 34 anos, oriundo de Beijing, é agente de jogadores e dono do Anping, um conglomerado de firmas.

O Anping adquiriu 70 por cento das ações do Atlético, ficando o clube com 30 por cento. Pouco depois, o Atlético fez uma série de novas contratações, incluindo Igors Labuts, do Jurmala, um clube letão em relação ao qual já havia então uma suspeita generalizada de envolvimento em falsificação de resultados. A UEFA emitiu um “aviso de alto risco” sobre possível manipulação e atividade corrupta de apostas envolvendo o Atlético Clube de Portugal. Além de Mao, o aviso da UEFA também mencionava o guarda-redes Labuts, descrevendo-o como um “indivíduo suspeito”. O organismo do futebol disse que ele tinha estado em 17 jogos suspeitos.

“Tudo o que tínhamos era conflitos. Perdemos completamente o controlo”, diz hoje o presidente, Ricardo Delgado. Na presente temporada, a equipa principal foi relegada para a quarta divisão. Quando lhe perguntam se isso é resultado de jogos manipulados, Delgado responde: “Não sei o que está a acontecer aqui.”

A Pré Season investiu no Athlone no início deste ano, e a empresa levou consigo vários jogadores, incluindo, uma vez mais, Igors Labuts. Os médios José Viegas e Dery Hernández, outras novas contratações do Athlone, também jogaram antes no Atlético. E o novo diretor de operações do Athlone, o francês Marc Fourmeaux, conduziu há três anos o DFK Dainava, da primeira divisão lituana, até ao último lugar, com um diferencial de golos de menos 131. Foi uma temporada bastante estranha.

O guarda-redes Labuts recusou falar ao “Der Spiegel”. Após o jogo de Longford, alegou a sua inocência e disse: “Se for um guarda-redes de topo, jogo no Real Madrid.” Pouco depois, estava de regresso ao relvado. Na verdade, ninguém foi sequer suspenso. Todos os jogadores que há meses se encontram sob suspeita de manipulação de jogos continuam a jogar. E todos eles garantem que são inocentes.

O “Der Spiegel” tentou falar com o presidente do clube, John Hayden, mas ele fugiu rapidamente do campo quando o repórter lá foi. Também não respondeu a subsequentes mensagens e chamadas para o seu telemóvel. Em resposta a questões do “Der Spiegel”, funcionários de clube disseram não ter conhecimento se Mao é ou não o verdadeiro investidor e garantiram que ouviram falar dele pela primeira vez através dos media.

“Dissemos desde o início que algo aqui não estava certo, mas ninguém nos ouviu”, afirma Langley, o fã. O seu amigo Miller também tinha reparado desde o primeiro jogo de preparação que “alguns dos novos jogadores parecia que nunca tinham jogado futebol antes”. Referem o corpulento uruguaio, o romeno sem talento e as muitas limitações técnicas e de condição física que os novos jogadores exibiam.

Os dois adeptos, que pedem que os seus verdadeiros nomes não sejam usados por temerem retaliações dos viciadores de jogos, tornaram-se detetives. Descobriram que os novos jogadores já antes tinham estado juntos em clubes cujos jogos haviam sido manipulados. “Sempre que o treinador mandava o romeno do meio-campo para a defesa, era claro que o opositor ia marcar um golo”, diz Miller. Exprimiram as suas suspeitas no Facebook e contactaram o clube, mas ninguém acreditou. “Disseram para mantermos a boca calada — e não foi só uma vez.” Os dois não voltaram a entrar no estádio desde o jogo de Longford. Fartaram-se. E o Athlone é agora penúltimo na liga.

Para os investigadores europeus, o investimento asiático numa equipa irlandesa da segunda divisão é uma estratégia padrão usada pelos viciadores de jogos. Por um lado, é mais fácil manipular equipas em ligas mais pequenas, porque há menos supervisão. Além disso, equipas pequenas e financeiramente vulneráveis são vítimas mais fáceis, pois podem ser aliciadas com somas modestas.

Mas a principal razão é que os viciadores de jogos aproveitam-se de jogadores jovens e talentosos nessas ligas mais baixas para manipular um jogo ou dois a troco de uma pequena quantia de dinheiro ou outros favores. Mais tarde, esses talentos são vendidos a clubes mais fortes. “É um pouco como a Bolsa”, diz um polícia experiente. Afirma que tem observado como os viciadores de jogos deixam em paz esses jogadores durante alguns anos. Mas assim que eles dão o salto e começam a jogar num clube de mais elevado perfil, reaparecem subitamente a lembrá-los da sua fraude anterior, apontando as possíveis consequências de essas transgressões serem reveladas. Destruiria as carreiras deles. “Os viciadores de jogos fornecem uma solução imediata para o problema: querem que os jogadores manipulem jogos na liga superior só mais algumas vezes. Cometam uma penalidade, percam uma corrida, provoquem um lançamento, convençam alguns companheiros... E é sugerido que de qualquer maneira uma coisa daquele tipo jamais será exposta”, diz o polícia. Assim se planta um vírus nos níveis mais altos do futebol — um vírus que começa a espalhar-se cada vez mais depressa. Pouco a pouco, também mancha a credibilidade do futebol enquanto desporto.

Graham Peaker, de 61 anos, encontra-se sentado na sede da UEFA em Nyon, na Suíça, com uma camisa de manga curta vestida. O título no seu cartão de visita é “coordenador de informação” (intelligence coordinator). Passou 25 anos a investigar a manipulação de jogos de futebol na Europa, e durante esse tempo, sob a sua tutela, vários clubes foram banidos por causa de resultados combinados, em países como a Turquia, a Albânia e a Macedónia. Peaker oferece seminários a jovens jogadores para os educar sobre a viciação de resultados. “Queremos proteger a nova geração da influência dos viciadores de jogos”, diz. Em parceria com uma firma, revê 32 mil jogos todos os anos, num esforço para detetar alterações suspeitas no mercado das apostas. Se encontrar aspetos conspícuos, como aconteceu no jogo do Athlone em Longford, dá o alerta.

Mas uma organização desportiva como a UEFA não tem acesso aos instrumentos de que as autoridades estatais dispõem para reunir provas de crimes — como raides policiais e escutas telefónicas, por exemplo. “Às vezes, é frustrante”, diz o coordenador de informação.

Peaker apenas recebe um apoio limitado dos investigadores estatais. Nenhum país do mundo tem procuradores especializados em apostas desportivas, e muitas agências estatais sentem relutância em abordar a viciação de apostas. As investigações são demasiado dispendiosas e espalhadas e falham com frequência. A Itália, por exemplo, tem estado a conduzir uma investigação desde 2011, mas os procuradores ainda não apresentaram resultados concretos. E em Bochum, onde viciadores de jogos foram condenados a mais de 50 anos de cadeia recentemente, a equipa policial que se ocupava do assunto foi desmantelada, por os casos não estarem relacionados com a região de Bochum. Assim se perdeu o conhecimento que polícias e procuradores haviam acumulado.

Francesco Baranca transformou estes problemas das investigações sobre resultados combinados numa ideia de negócio. O italiano está sentado, a rir-se, num restaurante de onde se avistam os telhados de Barcelona. Foi ele que escreveu aos fãs do Athlone naquela noite de abril, dizendo-lhes que o Longford ia em breve marcar um terceiro golo. Baranca não é um vidente — é o fundador da Federbet, um dos maiores sistemas de vigilância de apostas que existem. O seu pessoal dá o alarme quando as apostas começam a mudar de forma pouco habitual e produz perfis de apostadores famosos como Eric Mao e de jogadores como Igors Labuts. Estabelecem-se os laços entre indivíduos no negócio global da viciação de jogos. Os clientes são ligas, equipas e associações, que o consultam quando um alegado investidor aparece. Em tais casos, Baranca vai à sua base de dados antes de dar a sua aprovação... ou não.

Baranca tem visto algumas coisas extraordinárias ao longo dos anos que tem passado a examinar o futebol profissional. Uma vez investigou um alegado caso de um jogo viciado em Portugal, descobrindo que o jogo em causa nem sequer se disputara. Era um chamado “jogo fantasma”, que nunca tivera lugar mas para o qual os agentes de apostas haviam recebido estatísticas e aceitado apostas.

Atualmente, diz Baranca, há mesmo agências que mantêm listas de (sobretudo) jogadores que estão disponíveis para manipular jogos. Se um apostador prolífico necessita de alguém para viciar um jogo, contacta essas agências. No caso do Athlone, a Federbet elaborou um relatório, que o “Der Spiegel” viu, após o jogo em Longford. O relatório tornou claro aos investigadores que as probabilidades da aposta haviam mudado perto do fim do jogo e que uma quantia significativa de dinheiro fora apostada na marcação de um terceiro golo. Entre apostadores, isso é conhecido como um over: aposta-se que um número mínimo específico de golos serão marcados durante um determinado encontro. No jogo em questão, esse mínimo era três — e, já em tempo de descontos, o Longford conseguiu mesmo marcar esse terceiro golo graças ao ‘lapso’ defensivo do Athlone.

Em Portugal, entretanto, o Atlético cansou-se do seu investidor. Os donos portugueses do clube estão a tentar livrar-se da quota de 30 por cento que ainda têm na equipa principal e concentrar-se no desenvolvimento da equipa de reservas, que atualmente joga na sexta divisão. “Não temos mais nada a ver com esta equipa”, diz o presidente Delgado.Os adeptos desabafam no Facebook, escrevendo “Fora!” e “Idiotas!”, dirigindo-se aos investidores asiáticos. Já no Athlone Town, Tony Connaughton, um homem ativo de 63 anos que tem experiência em liderança de clubes, gostava de pôr fim ao pesadelo. A assembleia-geral anual do clube estava marcada para o final de junho, e os críticos insistiam que o atual líder, John Hayden, marcasse novas eleições. Se Connaughton vencer, tenciona limpar a casa, livrando-se de todos os recém-chegados. “Devem voltar para onde vieram”, afirma, “e então, ao fim de 130 anos, começaremos do zero.” 


* “Der Spiegel”, 2017 Tradução de Luís M. Faria