Parece um gesto simples, mas o facto de Colin Kaepernick ter ficado sentado durante cerca de um minuto e meio atirou-o para o centro da polémica no desporto e no mundo. O que se passa é que Kaepernick é um quarterback dos San Francisco 49ers (futebol americano), um vencedor improvável, alguém que cresceu a pulso e se conseguiu afirmar e escolheu ficar sentado antes do início de uma partida quando o hino norte-americano tocava. Há quem o acuse de falta de respeito ou de humildade, mas também quem o compreenda porque naquele país “há coisas que os jovens negros aprendem a fazer para não serem mortos”. Ele diz que o fez para defender os que “não têm voz”, os que morrem nas ruas num país que “oprime pessoas negras e de outras raças”. O debate volta a estar lançado – os protagonistas são os Estados Unidos, novamente a questão da discriminação racial e da violência policial e um outsider com uma cor de pele diferente e muito para dizer: “As pessoas estão a morrer em vão porque este país não lhes dá o que prometeu”.
Colin Kaepernick é um vencedor improvável. Ninguém pensava que uma carreira de sucesso estivesse guardada para ele quando era um “magricelas”, como descreve quem o conhecia, de quase dois metros e 77 quilos. Ninguém esperava que uma equipa profissional o quisesse recrutar quando conseguiu uma única oferta para uma equipa de futebol americano universitária. E se alguém acreditasse que Colin teria uma carreira desportiva profissional, a aposta seria no basebol.
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Hoje, Colin é quarterback nos San Francisco 49ers, o que equivale a dizer que conseguiu contra todas as expectativas a sua carreira no futebol americano e que agora conta com um salário base de 12 milhões de dólares (10,7 milhões de euros) por ano e muitos patrocínios. Mas se Colin se tornou conhecido por ter superado as dificuldades físicas e técnicas que o separavam da sua paixão, esta sexta-feira, quando jogou contra os Green Bay Packers, ganhou reconhecimento por algo muito diferente: a decisão de permanecer sentado enquanto todos os colegas de equipa se levantavam para ouvir o hino norte-americano, antes do início da partida.
“Não me vou levantar para mostrar orgulho num país que oprime pessoas negras e de outras raças. Para mim, isto é maior do que o futebol e seria egoísta desviar o olhar. Há corpos nas ruas e pessoas que cometem homicídios e saem impunes”, explicou o jogador após a partida, questionado sobre as suas motivações. A posição causou polémica nos Estados Unidos, mas não é novidade: quem segue Colin Kaepernick sabe que causas como a discriminação racial e os direitos civis no seu país lhe dizem muito.
Uma história de persistência
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Para perceber as motivações de Colin é preciso recuar até 1987, altura em que a sua mãe biológica, então com 19 anos, engravidou e foi imediatamente abandonada pelo seu pai. Quando Colin, afro-americano e europeu, nasceu, foi adotado por um casal branco do Milwaukee, estado do Wisconsin, que já tinha perdido dois filhos pequenos por complicações cardíacas – e, conforme os relatos da família, imediatamente se sujeitou a ouvir comentários e críticas por ficar com um menino com uma cor de pele diferente da sua.
Segundo Colin relata – e embora admita que não tomou posição por se sentir injustiçado, mas por “ver coisas que acontecem a pessoas que não têm uma voz e não têm uma plataforma onde possam falar e lutar pela mudança” -, a partir daí foram várias as ocasiões em que se sentiu discriminado pela cor da sua pele. O jogador recorda que quando outro colega negro mudou de residência, nos tempos da universidade, os vizinhos apressaram-se a chamar a polícia. “Todas as armas nos foram apontadas. É um hábito para nós.”
Embora Colin já ambicionasse ser jogador de futebol americano desde criança – numa carta escrita quando frequentava o 4º ano, com apenas 10 anos, declarava “espero ir para uma boa universidade para jogar futebol americano, depois quero ir para as equipas profissionais e jogar nos Niners ou nos Packers, mesmo que daqui a 7 anos eles já não sejam bons” –, o percurso não foi fácil. Com uma fisionomia improvável e dificuldades na resistência e na velocidade, Colin distinguia-se na escola secundária por ser um bom jogador de basebol e basquetebol, e apesar das várias ofertas de bolsas vindas de universidades para jogar basebol, decidiu ser fiel ao seu sonho de infância e escolher a Universidade do Nevada – a única que lhe ofereceu uma bolsa para jogar futebol americano – para estudar Gestão.
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“Quando comecei só queria chegar ao campo de qualquer maneira”, admitiria Colin mais tarde, acrescentando que sempre sentiu ter “alguma coisa a provar”. A resistência e a competitividade a jogar, mesmo estando doente com febres altas no dia do jogo da decisão, convenceram Barry Sacks, olheiro do Nevada. “Pensámos que tínhamos encontrado um diamante em bruto.”
A humildade do jogador, agora muito enfatizada pelos media, sempre o distinguiu – quando já brilhava no Nevada, vendia as suas camisolas número 10 na loja desportiva da zona sem se identificar aos fãs da equipa. Mas a ascensão não foi, em nenhum momento, facilitada: o jogador teve de passar de 77 para 102 quilos e treinar a velocidade – o bícep não lhe chegava – para finalmente chegar à posição de segundo quarterback dos San Fracisco 49ers.
Sucesso e recordes: uma nova etapa
A popularidade não tardou em chegar, justificada pela humildade do jogador e o à-vontade em frente às câmaras, assim como a facilidade em expressar as suas ideias e convicções. Depressa quebrou recordes – quando o primeiro quarterback, Alex Smith, se lesionou em 2012, teve a sua oportunidade de começar os jogos em campo e consolidar essa posição. Em 2013, fez notícia por se tornar um dos jogadores mais precoces a jogar uma SuperBowl, a final da liga norte-americana de futebol americano – esse foi apenas o 10º jogo profissional que disputou desde o início, mas Colin defendeu não sentir pressão, porque “a pressão vem da falta de preparação”.
Apesar da popularidade que cedo atingiu, as questões raciais não foram esquecidas, até porque Colin se queixou de as sofrer na pele mesmo enquanto jogador de sucesso (conhecido pelo corpo coberto de tatuagens). David Whitley, do Sporting News, chegou a comparar o aspeto físico de Colin ao de um “presidiário”: “É como se ele fosse o CEO de uma grande empresa, e não queremos que o CEO tenha o aspeto de alguém que acabou de ser preso”.
O jogador defendeu-se, descrevendo as tatuagens como versículos da Bíblia que falam sobre “ser respeitado, enfrentar os inimigos sem medo e aceitar que Deus seja o guia contra quem duvida de nós”. Os pais também saltaram em sua defesa, e aproveitaram para explicar que as convicções de Colin sempre foram incentivadas em casa: “Sempre fomos muito abertos em relação à adoção, e sempre fomos muito abertos em relação à cor das nossas peles”.
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Os 850 mil seguidores do jogador no Twitter conhecem as suas fortes opiniões (ainda em julho, quando a morte de Alton Sterling às mãos da polícia de Baton Rouge se tornou notícia na imprensa internacional, Colin escreveu: “Assim se fazem os linchamentos em 2016”. Mas a sua atitude no jogo de sexta-feira espoletou muitas críticas, inclusivamente de fãs que o seguem fielmente.
“Ele diz que é oprimido enquanto ganha 126 milhões de dólares (112 milhões de euros). Bem, aqui está o meu cumprimento”, escreve um fã, a acompanhar um vídeo que entretanto se tornou viral em que incendeia a camisola do jogador. Outros comentários aconselham o jogador a “mudar-se para o Canadá” se “não gosta do país onde vive”. O desporto também está dividido: se os colegas Arian Foster, dos Dolphins, e Michael Bennett, dos Seahawks, defendem o seu direito a dizer o que pensa (o segundo acrescenta que “há coisas que os jovens negros aprendem a fazer para não serem mortos”), jogadores como Alex Boone, dos Vikings, acusa Kaepernick de “falta de respeito”.
Falta de respeito ou abuso dos seus privilégios são acusações que o jogador nega, tendo inclusivamente declarado este domingo que se sente “abençoado” pela posição em que se encontra. “Fui abençoado por chegar tão longe, fazer o dinheiro que faço e ter os luxos que tenho. Mas não posso olhar-me ao espelho e ver pessoas a morrer nas ruas que deviam ter as mesmas oportunidades que eu tive e dizer que consigo viver comigo próprio. Não posso, se simplesmente ficar a olhar.”
Sobre o futuro e as reações que tem obtido, negando importar-se se houver reações negativas de patrocinadores poderosos como a Jaguar ou a MusclePharm Corp, o jogador esclarece que vai continuar a sentar-se “ao lado das pessoas oprimidas”. Por agora, o desporto está com ele: o porta-voz da liga, Brian McCarthy, esclarece que “os jogadores são encorajados mas não obrigados a levantar-se durante o hino nacional”. A equipa, que não foi avisada do protesto previamente por “não precisar de aprovação”, lembra que “o hino nacional é e será sempre uma parte especial da cerimónia pré-jogo”. “É uma oportunidade para honrar o nosso país e pensar nas grandes liberdades que conquistámos enquanto cidadãos.”
São esses princípios, defende Colin, que não estão a ser defendidos – pelo menos não para todos os cidadãos norte-americanos de igual forma. Se perder o que conquistou até aqui por causa da tomada de posição, provará que tinha razão, acrescenta, defendendo que “há muitas pessoas que não querem ter esta conversa porque têm medo de perder o seu trabalho ou de não conseguir patrocínios. Estou preparado para enfrentar isto”. Até que as coisas mudem. “Quando houver uma mudança significativa e sentir que a bandeira representa o que é suposto representar neste país, levantar-me-ei. As pessoas estão a morrer em vão porque este país não lhes dá o que prometeu.”