A água não é redonda, a sua lógica tão pouco, mas o mundo que tem na água salgada a sua substância maioritária é redondo e opera consoante vontades misteriosas. Quiseram os mistérios planetários que fosse por uma viagem ao Havai, terra prometida do surf, que Teresa Bonvalot tinha de esperar para o mar lhe retribuir as surfadas bi ou tridiárias, os dias encafuados em ginásios, as horas contadas a limar o físico e a imensurável dedicação com o objetivo que ela há tanto perseguia.
Foi num dos arquipélagos mais remotos do planeta, perdido no meio do Pacífico para ser banhado por ondas para todos os gostos, que a portuguesa tentou ir pescar história: para lá viajou no 5.º lugar do Challenger Series, o último que garantia uma vaga para o circuito mundial de surf. Seria a primeira portuguesa a lá entrar, caso o conseguisse. Aos 23 anos e já com tantos contados a remar atrás deste sonho, Teresa Bonvalot tinha a melhor oportunidade para quebrar uma barreira por demais simbólica.
Jamais uma mulher a fazer vida do surf, nascida no país onde ainda tão poucas mulheres competem lá fora, conseguiu entrar no Championship Tour (CT), o circuito mundial que pára em 10 dos lugares mais felizardos na Terra a receberem as boas-disposições do mar. AEm Haleiwa, na última etapa do Challenger Series, o principal circuito de qualificação, Teresa tinha amealhado pontos suficientes para ir lutando com Sophie McCulloch ao longo dos heats - à medida que a prova foi avançando, a australiana era a única ainda com hipóteses de a suplantar no ranking.
Não estender a disputa nunca poderia ser criticável à portuguesa face ao seu azarado passado recente. A 24 de setembro, retirou-se os ISA Games, os Mundiais de surf onde foi atrás de uma possível qualificação para os próximos Jogos Olímpicos, devido a uma luxação no joelho. “Na vida, temos de lidar com bons e maus momentos. É a primeira vez que não entro num heat em que estou apurada. Não consigo descrever a dor que sinto”, escreveria, no mesmo dia. Esperava “conseguir ultrapassar a tristeza”.
Em coisa de um mês, Teresa Bonvalot tratou da lesão e limou o corpo para voar rumo ao Havai, onde aterrou no final de novembro para competir em Haleiwa, praia repleta de simbolismo para Portugal: foi nessas ondas fieis a quebrarem para a direita e generosas em paredes postas a jeito para um surf de rail, que desenhem largos leques de água, que Frederico Morais logrou a sua primeira qualificação para o CT, em 2016. E três anos volvidos, ‘Kikas’ garantiu o retorno à elite nesse mesmo palmo de areia.

Laurent Masurel/WSL
A surfista de Cascais chegou a Haleiwa no quinto lugar do ranking de qualificação, o último que apurava para o CT. Nas direitas havaianas foi surfando e vendo adversárias esperançosas a irem tombando nas várias rondas, exceto Sophie McCulloch. A persistente australiana chegou à final e, assim que pisou areia após garantir a presença nessa decisão, até aparentou perder a mão ao tico e o teco com o tanto que havia em jogo, quando deu os parabéns à portuguesa na flash interview, gabando-lhe a temporada e o acesso ao CT.
A intrincada calculadora a que o sistema de qualificação exige dava nós até no cérebro de quem mais diz respeito - das sete etapas, contam os cinco melhores resultados para o total e, perante as várias hipóteses de pontuação consoante as possíveis posições finais de cada uma em Haleiwa, as cambalhotas nas contas eram um desafio matemático. E ao entraram na água para os derradeiros 35 minutos, talvez todos esses números lhes estivessem na cabeça.
Teresa Bonvalot demorou um quarto de hora a colher boleia de uma onda, já as três adversárias tinham pontuado, incluindo a menos desejável. Simplificando, Sophie McCulloch só ficaria logo com a vaga de qualificação caso ganhasse a final e a portuguesa terminasse no quarto lugar. A sua tentativa inaugural foi lenta, frouxa e sem poder na manobra que tentou; a segunda melhor, mesmo que ainda algo receosa. À entrada para os últimos 10 minutos, via-se a indesejável parelha no heat de um 1.º lugar de McCulloch com o 3.º de Teresa.
A portuguesa surfava atrás de uma onda que lhe valesse 3.90 pontos.
Mas, com cada vaga domada pela australiana, Teresa parecia abastecer-se com uma âncora a prender-lhe as ações. Mal se fazia a ondas, tinha os movimentos presos quando se punha bípede na prancha, demorava a cravar linhas na água. Na sua última tentativa, já depois de Sophie McCulloch deslizar sobre outra parede, a portuguesa (única goofy, de pé direito à frente na prancha e a surfar de costas para a onda) não sacudiu a impressão de estar presa. Quando a corneta soou, a tristeza confirmou-se.
A pior das combinações de resultados fez Sophie McCulloch vencer a etapa e garantir pontos suficientes para ultrapassar Teresa Bonvalot no ranking. Já com os pés na areia, a portuguesa com licra verde congratulou a adversária e cedeu abandonou essa beira-mar onde a australiana festeja o feito que não esperava. Apesar de terminarem empatadas em pontos, valeu-lhe o critério da World Surf League em premiar quem somou mais vitórias em baterias ao longo da temporada no Challenger Series.
Aos 23 anos, tão perto que esteve, Teresa Bonvalot não poderia ser mais figurativa: ‘morreu’ na praia, o lugar-comum preferido de tantas ocasiões que a surfista portuguesa experimentou no sentido figurativa mais literal que podia haver.
“Não era o meu tempo, é o que é, estou entusiasmada para o ano que vem”, disse Teresa, com o sotaque da tristeza na voz e na face, que acabou a suster-lhe lágrimas: “há poucos dias tive uma pequena estrela a ir para o céu e quero enviar-lhe um beijo”.