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O dia em que Kelly Slater nos disse que um rei, afinal, tem um prazo

Um ano e meio, sensivelmente. É o tempo que nos resta para vermos Kelly Slater no mar, em competição, e não tanto por lazer. Porque o onze vezes campeão mundial, o quiçá maior desportista de sempre a alguma vez ter tanta influência no desporto que escolheu, anunciou, aos 46 anos, que se vai retirar no final de 2019

Diogo Pombo

Chris Hyde

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Ele está sentado num sofá, com uns auscultadores a pressionarem o gorro que lhe tapa a calvície. Tem calças, camisola e ténis vestidos, não se cobre com um fato de neoprene. Nem está dentro de água, deitado numa prancha a remar ou de pé, a apanhar boleia de ondas, razão pela qual o nome de Kelly Slater é ressonante na cabeça de muita, mas mesmo muita gente, não necessariamente porque acompanham surf - é mais por saberem que há um careca, de olho azul, que já se fartou de ganhar e de ser melhor que os outros.

Quando a superioridade é assim, tanta e sublime, extravasa os limites do simples gosto por esse desporto em específico.

É a razão pela qual é quase cultura geral saber que Michael Jordan significa basquetebol, Michael Schumacher é sinónimo para Fórmula 1 e Pelé uma forma de dizer futebol. A diferença deles para Kelly Slater é que o americano, com um misto de genialidade, abençoada genética, um cuidado extremo com o corpo e uma paciência/paixão por se testar em competição, foi prolongando a sua lenda ao longo das quase três últimas décadas. Não por coincidência, foram os 20 anos que mais popularizaram o surf e lhe permitiram fazer cócegas ao gosto das massas.

Durante esse tempo, Kelly Slater conquistou onze títulos mundiais, cinco deles de forma consecutiva, nos anos 90. Foi jovem, teve cabelo, namorou mulheres famosas, perdeu o cabelo, rapou-o, retirou-se durante uns tempos, voltou e ganhou outra vez (mais uma mão cheia de mundiais, já na primeira década deste século).

Em forma, motivado e focado era, simplesmente, insurfável, uma forma de adjetivar palavras que os americanos usam quando pretendem dizer que é quase impossível competir contra um certo atleta.

No surf, esse atleta sempre foi Kelly Slater. Filho de um proprietário de uma loja de iscos para pesca, nasceu em Cocoa Beach, na Florida, para ser o humano mais dominador com uma prancha num meio que o homem nunca dominará. Ainda é o surfista mais novo (20) e o mais velho (39) a conquistar títulos mundiais no que chamam o circuito de sonho, que leva 34 tipos até aos sítios do mundo onde quebram as melhores ondas.

Jason Childs - JC

Ninguém sonhou melhor esta vida do que ele, vencedor de 55 eventos numa carreira que começou em 1990. Popularizou o surf e foi-se popularizando a ele próprio – chegou a entrar na série "Baywatch" –, tão incisivo a cortar leques nas ondas como a comentar assuntos extra-desportivos. Tornou-se por demais influente, com os anos, dono da voz que todos se calavam para ouvir. Era o rei que estava a falar.

Kelly Slater conquistou o último título em 2011 e tem mais ano e meio para tentar um derradeiro, que desafio as leis do envelhecimento e desgaste corporal, para o despedir em glória. Há quase um ano, o americano fraturou dois metatarsos do pé direito e temeu-se que fosse a desmotivação óssea que o motivasse a encerrar a carreira.

Ele insistiu, regressou mais uma vez e tem surfado, com maior ou menor espetacularidade, até chegar a Jeffrey's Bay, na África do Sul, e nos anunciar esta decisão.

Ganho o primeiro heat em que participou e já vestido, calçado e com o gorro na cabeça, fora de água, o rei falou: "Basicamente, o meu plano é conseguir estar bastante saudável, preparar-se para abril do próximo ano [quando arrancar a temporada] e torná-lo no meu último ano do circuito".

O anúncio surgiu no mesmo dia em que Joel Parkinson, outro campeão mundial (2012), também revelou ao mundo que se vai retirar em dezembro. Para colocar tudo isto em contexto, quando o australiano entrou no circuito mundial, há 18 anos, Slater estava a gozar do seu período sabático entre títulos e conquistas. E assim, num ano civil, sabemos que vamos ficar sem estes dois após já ficarmos sem Mick Fanning.

O talento está a despedir-se da competição, mas o de Kelly Slater tem um peso incomparável: para lá das vitórias, manobras, conquistas e domínio na água, o americano é a ponta da lança que parece guiar para onde o surf deve crescer.

Slater é o dono da melhor patente de piscina de ondas artificiais, que entretanto vendeu à World Surf League e rumores há que venderá ao Comité Olímpico Internacional; é proprietário da Outerknown, marca de roupa ecológica, sustentável e que não toca em materiais poluentes. O circuito mundial já tem uma paragem oficial na piscina de ondas que criou, na Califórnia, a quase 100 quilómetros do mar, e a sua marca já patrocinou uma etapa, em Fiji, no ano passado.

A influência do rei há muito que quebra bem para lá das praias. E certamente que não acabará daqui a um ano e meio.

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