Há sempre alguém que chega a um convívio manso e vira tudo do avesso. Já nem se ouvia música e de repente as colunas estão a saltar como salta um coração entusiasmado. E os outros vão atrás, confiados de que podem sugar algum desse jeito de viver e morder com as veias aquela espécie de felicidade esquecida de memória. Léo Pereira, acabadinho de chegar ao Marítimo do Atlético Goianiense, onde foi campeão goiano e fez mais de 60 jogos na temporada, é isso tudo.
Elétrico como os mais potentes cabos de alta tensão, fez esquecer os que o rodeavam que tinham na bagagem 13 derrotas em 18 jogos. Com o diabo no corpo, exibia-se serpenteante pela esquerda, onde só não fez mais mossa porque apanhou talvez o melhor lateral direito do campeonato. Foi seguramente o duelo mais interessantes do jogo. Defensivamente, o extremo foi também generoso e sério. Quando foi substituído, houve uma ou outra vénia, aplausos com sorrisos felizes. Um apanha-bolas levou um cumprimento sincero. Assim nascem os ídolos, sem aviso e artefactos que sobram. E o Marítimo, acreditando ser quem não foi até aqui, venceu o Sporting, nos Barreiros, por 1-0, com um golo de penálti de Cláudio Winck.
Os primeiros 15 minutos dos insulares foram uma maravilha. O dossier de Léo Pereira, de 22 anos, arquivámos nos dois parágrafos iniciais. O peruano Percy Liza era combativo na frente e oferecia movimentos úteis, tal como André Vidigal, filho de uma linhagem bonita no futebol português. Pela direita surgia o canhoto Xadas, refinado e com um radar importante para descobrir colegas através do passe. Rafael Brito e João Afonso iam servindo de tampões no meio. Moises Mosquera e Matheus Costa, os centrais, assinariam uma exibição muito interessante.
Do outro lado, Rúben Amorim apostou em Mateus Fernandes e Arthur Gomes, a fazer a ala esquerda. Os visitantes tiveram muitos problemas até pegarem mais na bola, culpa sobretudo da pressão altíssima dos madeirenses, mas também do bom toque de bola sem memória dos da casa, como se estivessem cheios de confiança. Sebastián Coates chegou a abrir os braços como quem pergunta o que se passava. Manuel Ugarte, Pedro Porro e Gonçalo Inácio seriam durante muito tempo (e talvez até ao fim do jogo) os mais fiáveis com a bola. Paulinho, a servir mais de pivô para saídas longas, ameaçou o golo perto do meio da primeira parte. Depois foi Inácio, e outra vez Paulinho. Mas essas ações não devolveram o bom jogo aos leões, que sofriam com a escassa influência de Francisco Trincão e Marcus Edwards.
Apesar de tantas incertezas e aventuras, o intervalo chegou com um zero-zero no marcador. Quando Mateus Fernandes dava ares de estar mais sereno e confiante, dispensando a desconfiança que o parecia afetar, o jovem futebolista fez uma falta imprudente sobre Liza e o árbitro apitou para grande penalidade. Os sportinguistas desesperavam, pois Pedro Porro acabara de pedir dois penáltis. Cláudio Winck assumiu e fez o 1-0, o segundo do lateral na Liga.
Amorim reagiu prontamente: saiu Arthur, entrou Nuno Santos. Pouco depois, Rochinha por Mateus Fernandes. Não havia jeito de magicar combinações fluídas e respeitadoras da técnica. Os solidários jogadores do Marítimo mantinham o rigor, e o Sporting estava num daqueles dias maus. Xadas já ia pisando terrenos interiores, o que é sempre uma boa notícia quando se trata de um canhoto bom de bola.
O Sporting acabaria por melhorar um pouco, mas não se livrou de um susto quando Vidigal surgiu sozinho na área. Gonçalo Inácio, com uma exibição completa, deitou-se na relva e cortou males maiores. Os cruzamentos começaram a surgir do lado dos lisboetas, preparava-se o assalto final. Não há volta a dar, há mais verticalidade quando Nuno Santos está em campo, é um homem que tem um pacto com os números. Apresenta gráficos e folhas de cálculo irresistíveis para quem gosta de auditorias sumarentas.
Os três da frente continuaram anónimos quase. Como diria o treinador do Sporting no fim do jogo, falhou rapidez e qualidade ao Sporting para aproveitar os momentos em que teve a bola de frente para a baliza adversária, o que aconteceu menos vezes do que é costume graças à pressão e postura dos madeirenses.
E Amorim voltou a mexer: Edwards por Jovane Cabral e Coates, em risco para o Benfica, por St. Juste. O Sporting começou a carregar definitivamente, sobretudo com a participação eterna e quase inesgotável de Pedro Porro. De Nuno Santos, idem. Manuel Ugarte também cresceu nesta fase. Mas os visitantes, com algumas ações perto da baliza de Marcelo Carné, não conseguiram meter a bola na baliza. Havia alguma precipitação e talvez medo de deixar escapar uma boa oportunidade para dar sequência a um trajeto que estava a engordar o orgulho do grupo. Os jogadores do Marítimo iam resistindo, quem sabe inspirados no que o Casa Pia fizera na véspera contra o FC Porto.
Apito final nos Barreiros. José Gomes, que aterrou há pouco tempo na Madeira, garantiu o quarto ponto em dois jogos desde que chegou. Os madeirenses, na penúltima posição, alcançam agora os 10 pontos, graças à segunda vitória em 15 jornadas. O futebol é assim, um dia está-se no inferno, no outro no céu, graças quem sabe às palavras e ideias de um novo treinador, o terceiro da temporada. E, claro, de um ídolo no forno, por ser ou por cair. Veremos o que Léo Pereira, gingão e generoso, vai fazer para ajudar o clube do Funchal a fugir da descida de divisão.