O futebol é um lugar cheio de contradições e maravilhas. Há acertos divinos e justiças silenciosas que vão tratando de sarar algumas feridas. Não surpreende então, conhecendo esses velhacos caprichos, que, depois de tantos anos daquele Sporting 5-1 Casa Pia, em 1939 (o primeiro e o último entre ambos para a 1.ª Divisão, na casa dos verdes), tenha sido um avançado (e que debate esse) a transportar a tocha do orgulho, a tal “chama” que Rúben Amorim pediu de volta na véspera. Peyroteo fez quatro golos naquela tarde, no Lumiar, há pouco mais de 80 anos. Esta noite, em Alvalade, Paulinho entrou e tudo mudou.
O avançado canhoto pisou a relva, do lado certo das fronteiras de cal, aos 54’, quando o Casa Pia estava em vantagem e, apenas três minutos depois, empatou o jogo. Pedro Porro bateu na baliza com a canhota, Ricardo Batista não conseguiu sacudir a bola para longe, levantando-a com um gesto defeituoso, e Paulinho empurrou, de cabeça, para a certeza de uma baliza vazia. Foi o primeiro golo do avançado na Liga (o segundo da época: Tottenham). Alvalade, algo despido e cheio de dúvidas até ali, acordou e esqueceu os assobios do intervalo.
Somente dois minutos depois, o Sporting virou o marcador. Marcus Edwards, com mais espaço para jogar agora que andava perto das alas (após entrada de Paulinho), tocou em Pedro Porro na linha. O lateral espanhol cruzou ao segundo poste e ali apareceu Nuno Santos, que bateu de primeira para o 2-1. Alvalade deixava-se beijar pela chama que os jogadores lhe mostravam. Nuno Santos abraçou efusivamente Rúben Amorim, aliviado certamente. Depois das cacetadas na alma que ainda cospem sangue dos jogos com Marselha e Varzim, o que aconteceu nestes não muitos segundos era quase obrigatório... e justo.
O golo que serenou os suspiros e as mãos que se entrelaçam em desespero chegou de penálti, aos 65’, por Pedro Gonçalves, um lance que Amorim preferiu não ver. Paulinho, feliz na generosidade e na influência no jogo, recuperou uma bola impondo o corpanzil, correu alguns metros com a bola no pé e lançou, no timing certo, Edwards pela direita. O inglês, que às vezes parece ter uma cola especial na bota (embora peque no momento de soltar), conduziu a bola até sofrer falta, já na área. Gonçalves aproveitou para marcar o sexto golo no campeonato, 3-1.

DeFodi Images
Os assobios, aquando do apito para o descanso, denunciavam na teoria uma equipa perdida e desligada, mas não foi assim. Hidemasa Morita ia-se assumindo como joker, soltando-se da posição e juntando as peças todas à sua volta. Era como uma fogueira que aquecia as ideias dos outros. Era o futebolista que desequilibrava pelo movimento, pela boa relação com a bola e, claro, com solidariedade para qualquer tipo de tarefa. Marcus Edwards (falhou de baliza aberta, de cabeça, aos 5’), Pedro Gonçalves e Matheus Reis, que subia com a bola, eram os mais perigosos. Porro, pela eterna postura competitiva, era e será sempre um desconforto para qualquer lateral. Os leões iam mordendo à frente, não havia apatia nenhuma.
Do outro lado começou a surgir o guarda-redes, Ricardo Batista, que ia defendendo tudo o que pingava na sua direção. Afonso Taira e sobretudo Romário Baró iam sossegando a equipa quando tinha bola, procurando sempre a melhor solução para a resistência não ser só sem bola. Godwin é um foguete pronto a ser acionado pela esquerda, criou problemas. Clayton, com capacidade de choque, ia andando à bulha com os centrais como podia. Aos 15’, atirou uma bola ao poste, após lançamento de Baró, que fez uma cueca em Ugarte antes de servir o colega. Qualidade.
Francisco Trincão, mais discreto e intermitente que os colegas da frente, rematou por cima, já dentro da área, pouco depois. Foi Morita outra vez a descobrir o espaço. O Sporting perdoava e o Casa Pia ia ressistindo num 5-4-1, com os centrais João Nunes, Fernando Varela e principalmente Vasco Fernandes a ganharem muitos duelos e a resolverem alguns dos maiores problemas. Pela esquerda, Leonardo Lelo deixava alguns apontamentos interessantes. O Sporting não cruzava sempre que podia, parece ser algo que foi visado na preparação do jogo.

Gualter Fatia
Com o Sporting a chegar com menos qualidade à frente, já perto do intervalo, o golo dos visitantes aconteceu mesmo, ameaçando confirmar uma velha máxima do futebol que mete pássaros, situações desavindas oriundas do intestino e cabeças como alvo nos maus momentos que uma equipa vive, ou seja, é uma metáfora para azar ou galo (uma espécie de Lei de Murphy). Foi aos 43’. Morita cortou uma bola que aterrou nos pés do astuto Godwin. O avançado lançou Clayton, um brasileiro de Belo Horizonte que tinha o mais belo dos horizontes à frente. A finalização foi excelente, Adán bem cresceu mas nada logrou naquela ação. Foi o terceiro golo do artilheiro no campeonato. “De Vila Nova traz o samba no pé e muito jogo na asa!”, anunciava o Casa Pia aquando da contratação.
A segunda parte, até à parte já relatada no início deste texto, teve sobretudo dois momentos importantes: a estreia absoluta de Chico Lamba, o menino de 19 anos que substituiu José Marsà, desfazendo assim a defesa composta unicamente por canhotos (também Mateus Fernandes teria direito à estreia na equipa principal, aos 18 anos); e um lance de Trincão, que até antecedeu a sua porventura surpreendente substituição (por Paulinho). O esquerdino fez um túnel delicioso e lento em João Nunes e colocou a bola com aquele arco típico, à Henry vá. O poste tilintou e parecia realmente começar a engordar a tal metáfora dos pássaros.
O Sporting manteve a postura positiva, ficou mais agressiva aliás, cuspiu ainda mais gasolina na chama e cresceu… até que os golos aconteceram. O Casa Pia de Filipe Martins, que trocou o discreto Kunimoto por Neto ao intervalo, cedo começou a defender em 5-3-2, uma mudança que Filipe Martins justificaria com os movimentos de Morita. Durante a partida entrariam também Yan Eteki, Rafael Martins, Vitó e Bolgado.
“Temos de recuperar um bocadinho a chama que sempre tivemos”, atiçou assim as tropas, na véspera deste jogo, o treinador do Sporting, que agora tem cinco vitórias nas últimas seis jornadas. “É o mais importante. Mais importante que os títulos ou o dinheiro que trouxemos, o que trouxemos em termos de chama e ligação entre todos… estamos a perder um bocadinho.”
E tudo mudou quando a chama entrou lado a lado como se fosse a sombra de Paulinho, quem sabe empurrado pelo espírito killer de Peyroteo.